O TOCADOR DE FLAUTA
Embora ainda pequeno, ouvia do pai, nos momentos de protestos, impropérios contra o governo e todos os políticos.
Era comum ouvi-lo dizer:
- Esses ratos e ratazanas, até quando vão continuar a destruir nosso país?
Em outras vezes:
- Se eu pudesse acabaria com esses ratos que dominaram Brasília.
E em outras:
- Meu Deus, até quando teremos que ver esses ratos destruindo as riquezas do nosso país?
Aquela criança não tinha ainda condição de avaliar nem tampouco entender o significado de tudo o que o pai falava. Filho que amava o pai ao extremo, ficava à noite em orações, pedindo e rogando a todos os santos que “conhecia”, ajuda para que seu pai acabasse com seus ratos e ratazanas.
Durante as aulas na escola pública que freqüentava, andava disperso, seu pensamento se concentrava nas agruras e sofrimentos do pai que nunca parava de se lamentar e expressar seu sentimento de revolta e ódio contra os " ratos".
Francisco, por ser criança, levava ao pé da letra as palavras do pai e ficava imaginando que tais ratos eram animais reais. Desde aquele dia, passou a ter uma verdadeira aversão pelos roedores. Ficou de certa forma obsessiva a sua vontade em acabar com os ratos que tanto incomodavam o pai.
Um dia pediu à professora:
-Tia, há algum livro que ensina acabar com ratos?
A jovem educadora, sem saber a que se referia seu pequeno aluno, disse:
- Sim, existe, mas o jeito mais eficaz que não provoca males à população e tampouco à natureza é a flauta mágica.
- Flauta mágica?.
- Sim, Francisco, ela existe e pode ser usada por quem quiser, basta tê-la e tocá-la.
- Obrigado, tia, acho que vou ajudar meu pai.
A professora sorriu e seguiu em frente para falar com outro aluno que solicitava sua atenção. Quando ia chegando perto deste, ouviu:
-Tia, como faço para encontrar a flauta?
- Pode deixar que amanhã eu lhe mostro o caminho. Você a conseguirá.
Naquela noite Francisco quase não dormiu, imaginando que ao chegar à escola lá estaria tia Luíza, com uma flauta para lhe entregar e com isso poderia, em definitivo, acabar com os ratos que incomodavam o pai. Quando ele acabasse com os roedores, seu pai voltaria a ter sossego e seria novamente um homem feliz. Ele desejava ver o pai feliz.
No dia seguinte, logo ao chegar à escola, correu em direção à professora que, ao vê-lo,l entregou-lhe um livro e disse-lhe:
-Leia esse livro todo, então poderá entender e descobrir o jeito de achar a sua flauta.
Francisco ficou meio decepcionado, pois teria que ler o livro. Ainda deveria demorar em se livrar dos ratos do seu pai. Mesmo assim pegou o livro, agradeceu e enquanto esperava o início da aula, começou a folheá-lo. O livro era fartamente ilustrado. Ele tinha como título “ O Flautista de Hamelin”.
Como sabia ler muito pouco, não conseguiu pronunciar corretamente o nome do flautista, mas o resto poderia entender depois que lesse e encontrasse a mágica flauta.
Sua mãe era uma mulher de muita fé e quando ia à igreja levava o pequeno Francisco, que assim foi batizado em homenagem ao santo conhecido por se comunicar com os animais.
Tudo que ouvia, fosse real, invenção ou crendice, era logo processado pelo jovem Francisco como uma verdade e com isso ele foi acumulando ao longo de seus 7 anos o conhecimento que já conseguira.
Dias depois, quando fechou em definitivo o livro, após tê-lo lido por três vezes, falou para si mesmo:
- Agora estou preparado. Vamos aos ratos.
Quando os jornais estamparam, no dia seguinte, suas manchetes, ninguém entendia o que tinha acontecido em Brasília e em alguns estados brasileiros, estes em sua maioria. Num estado desapareceu praticamente uma família inteira. Era aterrador e incompreensível, mesmo assim grande parte da população se sentia aliviada, parecia que os novos tempos haviam chegado.
Durante semanas e os meses que se seguiram o alvoroço no país foi geral, enquanto alguns esperavam um pedido de resgate outros respiravam aliviados, faziam festas e cantavam.
Nas conversas entre amigos o que mais se ouvia era a frase:
- Graças a Deus, estamos livres dessa corja.
Depois que desapareceu o presidente, seus ministros, noventa por centos dos deputados e senadores e outros milhares de cargos ficaram vazios pelo desaparecimento de seus ocupantes o que mais se questionava era:
Como pode desaparecer tanta gente numa só noite e depois de mais de seis meses não se tenha notícia nem pista alguma do paradeiro deles?
Apesar de a polícia federal, haver pedido ajuda ao FBI, CIA, MI-5 e quase todos os serviços de inteligência de diversos países do mundo, toda a busca tinha sido infrutífera e nenhuma pista indicava o rumo dos possíveis seqüestradores.
O que mais intrigava a polícia era imaginar como manter tanta gente no cativeiro sem ser descoberto. Outra grande preocupação era com a logística que teria sido usada para deslocar milhares de pessoas para um cativeiro, em uma só noite, sem que ninguém tivesse visto nada...
Além destas perguntas que ninguém conseguia responder, o sumiço da quase totalidade da cúpula governamental, do Senado, da Câmara, algumas Assembléias Estaduais e Câmaras municipais, assim como governadores, vices, prefeitos e outras centenas de pessoas, em diversas partes da sociedade, intrigava.
Todos haviam desaparecido numa hora qualquer da noite sem deixar pista.
Apesar do alvoroço e da comoção pela possível insegurança a que estávamos sujeitos diante do desaparecimento de tanta gente, em outra vertente, havia milhões de brasileiros que respiravam aliviados e rezavam ou oravam pedindo a Deus que eles nunca mais voltassem.
O Brasil havia-se livrado de uma só vez, sem violência aparente, de milhares de pessoas, ocupantes de cargos públicos sem deixar pistas.
No poder judiciário houve uma verdadeira limpeza, com o desaparecimento de vários ministros, desembargadores e juízes, além de promotores, advogados e outros que ocupavam cargos de confiança.
Enfim, o País respirava aliviado muito embora tenha sido difícil encontrar naquele momento de comoção nacional alguém disposto a aceitar o cargo de Presidente, mesmo em caráter provisório, uma vez que novas eleições seriam marcadas para um futuro próximo.
No cenário mundial e nacional muitas teorias absurdas foram aventadas tentando encontrar um responsável pelo desaparecimento de tanta gente, sem deixar rastros.
Para os EUA, o grande vilão continuava encarnado na figura de Bin Laden, apoiado por seus asseclas, Irã, parte do Iraque e além da Coréia do Norte, aparecia em sua lista, os membros do Al-Fathah e do Hesbolhah .
O Papa, como sempre ao emitir sua opinião, dizia que aquilo teria sido a obra de satã. Já outros achavam que tudo aquilo era uma verdadeira obra de Deus, ao livrar o País de tantos malefícios.
Enquanto alguns choravam ou trocavam farpas, acusando a oposição do sumiço de tanta gente, outros a defendiam dizendo que também havia desaparecido muitos da oposição. Outros, no entanto, diziam que o desaparecimento de políticos da oposição servia apenas para desviar o foco das investigações da Policia Federal.
Apesar de tanta opinião divergente e depois de infrutíferas investigações, alguns setores da sociedade chegaram à conclusão de que eles teriam sido abduzidos. Outros, por questão de fé e por professarem religiões radicais, diziam que eles teriam sido levados ao céu pelo Senhor Jesus.Teriam sido arrebatados, já que entre os desaparecidos havia muitos pastores.
Alguns contra-argumentavam e diziam:
- Como pode ter ido para céu tanta gente ruim?
Outros iam ainda além:
- Se assim for, por que algumas pessoas que só fazem o bem dentro de nossa sociedade não foram arrebatadas para o céu?
Todos os dias, durante nove meses, os jornais se fartaram de notícias, especulações e outras milhares de teorias, que tentavam de uma maneira racional explicar o desaparecimento de milhares de políticos e figuras de destaque do cenário nacional.
Enquanto a discussão se prolongava, o país era dirigido por um homem de bem. Finalmente encontrara o caminho do desenvolvimento, sem os corruptos e corruptores em seu seio. Outros que tinham o hábito de corromper, se retraíram, pois haviam entendido o recado, mesmo que este tivesse sido dado de forma tão estranha.
O pai de Francisco era todo sorriso, o Brasil havia se livrado de uma casta de políticos e bandidos que haviam tomado conta do poder.
Sempre que alguém o questionava ou perguntava sobre o destino dos desaparecidos, ele respondia:
- Meu amigo, deve ser obra dos ETs. e se assim for, que façam deles bom proveito, desde que não mais nô-los devolvam.
Francisco ainda não entendia toda a satisfação do pai, pois ele ainda não conseguira acabar com os ratos, já que no dia anterior vira um, correndo em seu quintal, por isso foi perguntar ao pai.
- Pai, por que o senhor está tão feliz, se ainda não conseguimos acabar com os ratos?
- Como assim, filho? Eu não estou entendendo!
- O senhor vivia dizendo que queria achar um jeito de acabar com os ratos de Brasília, lembra-se?
- Sim, e dai?
- Eles acabaram?
- Claro, por isso estou tão feliz!
- Mas, pai, ontem mesmo eu vi um rato correndo no quintal de nossa casa...
Quando ouviu o que o filho havia dito, soltou uma sonora gargalhada e disse:
- Filho venha cá que lhe vou explicar o que eu queria dizer com “acabar com os ratos de Brasília”.
Durante mais de meia hora explicou detalhadamente ao filho o que ele queria dizer e o que havia acontecido e, quando terminou perguntou ao menino:
- Entendeu agora?
- Xiiii pai! acho que eu sou o culpado de tudo.
- Culpado, você?
- Sim, eu mesmo, pois fui eu quem acabou com seus “ratos".
- Ora, filho, eu não estou entendendo nada! Explique pro papai.
Francisco sentou-se e depois disse:
- Agora é minha vez, assente-se.
Depois de assentar-se, o pai do menino foi ouvindo atentamente a história, mas, ao final, retrucou:
- Filho, isso é só uma estória inventada, que tinha como objetivo criar preceitos morais. Ela não é real. E acrescentou:
- O Flautista de Hamelin nunca existiu, é apenas uma criação dos irmãos Grimn para crianças e, além do mais, se ele tivesse existido de verdade, seria numa época muito distante e hoje não estaria vivo.
- Pai, o senhor está enganado, eu falei com ele e quando pedi que acabasse com os ratos de Brasília, ele me perguntou:
- Quais?
E eu disse:
- Dos ratos que meu pai reclama.
Então ele falou:
- É isso mesmo que você quer?
- Sim, é o que mais quero, pois desejo ver meu pai feliz. Foi assim que tudo aconteceu.
- Filho, embora eu seja um homem feliz com a atual situação do País, pelo desaparecimento dessa corja de corruptos e ladrões, não posso acreditar na sua história, ela é absurda e só existe no imaginário das crianças.
- Mas, pai, minha mãe diz que devo ter fé e acreditar. Que tudo que eu quiser posso fazer. Então?
- Mesmo assim, filho, por mais estranho e absurdo que possa ter ocorrido com tanta gente desaparecida, é mais fácil acreditar na Providência Divina do que acreditar na sua história.
- Tá, bom pai, então não precisa acreditar, mas se eles voltarem a culpa não será minha.
- Não, filho, por favor, diga para seu amigo, o flautista, para não trazê-los de volta, nunca mais! Combinado, filho?
- Está combinado, pai, mas o senhor me paga um sorvete bem grande?
- Só um? Até a sorveteria inteira!
Quando saíram, ao fechar a porta, o pai de Francisco não viu que atrás desta, um homem sorria, enquanto polia calmamente um instrumento de sopro. Segundos depois, como num passe de mágica, foi-se desvanecendo até desaparecer por completo.
Sobre a mesa, uma pequena flauta reluzia, um presente ao pequeno que acreditara e tivera fé suficiente para fazer a felicidade de uma nação inteira.
Uma criança anônima, que assim continuaria até que houvesse a necessidade de invocar novamente o tocador de flauta.
15-05-08- VEM