Assassinato no Convento
Há muito tempo atrás, num século distante e impreciso, havia numa ilha fria e coberta por um denso nevoeiro, um convento encravado no centro de um grande vale, onde as moças eram enviadas para ter alguma educação, seja para se tornarem esposas prestativas no futuro, ou simplesmente, seguir na carreira religiosa como devotas freiras.
Muito jovens, as moças eram encaminhadas para lá, algumas inclusive, eram abandonadas diante dos pesados portões de ferro e a vida no convento era tudo o que conheciam do mundo.
Uma dessas jovens chamava-se Julianne, e de todas ali presentes, sem sombra de dúvida, era a mais bela. Sua pele era clara e macia como a da mais delicada pétala de uma rosa, suas mãos eram finas e os dedos pequeninos, os lábios rosados e os olhos claros, com pestanas compridas; seus cabelos, extremamente longos, viviam atados numa trança por baixo do sisudo véu que era obrigada a usar. Este véu, também escondia o brilho dourado dos encaracolados fios de ouro.
Nunca em toda a sua vida havia conhecido outro lugar senão aquele e ali era o seu pequeno universo. Fora deixada próximo aos portões numa das noites mais frias que a ilha já experimentara.
Quando foi recolhida, as freiras ficaram encantadas com sua beleza terna, mas ao mesmo tempo receosas, com a extrema fragilidade da criança.
Como todas as outras moças, fora instruída dentro dos princípios cristãos, sabia ler alguma coisa e tecer graciosos bordados, mas seu talento constituía-se principalmente na sua habilidade como musicista, tocava flauta de forma suave e que arrebatava todos os seus ouvintes a um mundo de encantos e paz.
Uma das coisas que a jovem Julianne mais gostava de fazer, era nas suas raras ocasiões de folga, caminhar pelo bosque aos fundos do convento para ouvir os sons da natureza e, talvez desta forma, inspirar-se para tocar com tanta graciosidade o seu instrumento.
Não era de se estranhar, que a madre-superiora ficasse um pouco preocupada com isso, pois enquanto, as outras vinte e nove moças que estavam sob os seus cuidados aproveitavam para sonhar com seus futuros maridos ou dedicar-se com mais afinco aos mistérios da religião, aquela quisesse ficar solta e despreocupada, imersa na solidão do bosque. Mas sua preocupação, ficava apenas nisso, não havia o que temer em outros aspectos naquela ilha, totalmente desabitada e patrocinada por alguns pais que moravam em terras distantes. Ali não havia perigos, pelo menos, do caminho do porto até os bosques aos fundos do convento.
No porto, residia um casal de idosos, que ficava responsável em receber as moças ou mandá-las de volta para suas casas e também receber alguma doação, mas estranho algum tinha permissão para colocar os pés naquela terra. E geralmente, quando aparecia alguma criança abandonada, era encontrada primeiro em barcos que ficavam vagando a deriva ou alguma pessoa que vinha entregar nas mãos do casal, e se retirava sem deixar qualquer informação. Desta forma, o casal deixava a criança na porta do convento, entregue a sorte.
Outra pessoa que residia na ilha, mas que também não oferecia nenhum perigo à integridade das moças, era um velho corcunda e mudo, que vivia envolto num manto escuro para esconder sua feiúra e que cuidava do jardim e da horta de onde todos os residentes da ilha, tiravam a sua alimentação.
Dentro do convento, ainda existiam mais quatro mulheres, também já com idade avançada que cuidavam da alimentação e organização do local.
A única pessoa do mundo exterior que podia colocar os pés naquela ilha de paz era um padre, que vinha a cada seis meses, para realizar algum serviço religioso ou tomar a confissão das moças e, mesmo assim, também era um homem de meia-idade e semblante plácido.
A madre-superiora orgulhava-se destas condições, pois as jovens por ela educadas tornavam-se mulheres respeitáveis quando deixavam a ilha ou se tornavam freiras de um caráter ilibado.
Quando Julianne chegou à ilha, o seu aspecto delicado despertou algo novo no interior da madre, e ela pensou consigo que aquela moça seria uma das que poderia vir a ocupar seu cargo quando ela já não mais estivesse ali. Dedicou-se em torná-la sua principal aprendiz, e tudo a menina fazia com afinco. Também acreditava que a jovem deveria ter alguma missão muito nobre, pois constantemente esta afirmava ouvir a voz de um anjo quando ia ao bosque e ela dizia que este anjo era quem lhe ensinava a tocar de forma tão sublime a flauta. Com toda a sua experiência de vida, a madre-superiora sabia que existiam algumas jovens que tinham capacidade para receber visões ou outros sinais religiosos, a própria Bíblia ensinava que existiam profetizas e que Maria e outras mulheres no Novo Testamento, também receberam a visita de anjos. Portanto, era mais uma coisa para confirmar que aquela jovem deveria no futuro ocupar o seu posto.
No entanto, a madre-superiora nunca mostrou abertamente a sua preferência pela jovem Julianne, tratava a todas de forma respeitosa e com afeto, ora fazendo as cobranças que devia, ora corrigindo-as quando necessário e até punindo quando se era preciso. Sua administração era justa e ela se preocupava com o bem-estar de cada uma delas ali. De certa forma, seu coração se entristecia quando uma dessas moças deveria voltar para seus pais, mas compreendia que assim era vida e em suas orações pedia que o marido que fosse desposar tal jovem, fosse realmente alguém bom e valoroso.
Geralmente quando se sabia que uma moça deveria partir, a notícia era entregue ao casal do porto e este encaminhava a correspondência à madre, outro fator é que sempre tinham conhecimento se iriam para casar ou para um novo convento. Quando a notícia era sobre casamento, todas as outras jovens começavam a se esmerar em elaborar um bonito enxoval para aquela que iria deixar a ilha. Até mesmo o vestido de noiva era feito pelas mãos das companheiras de tanto tempo de reclusão. E quando tudo estivesse pronto, o padre vinha buscá-la para entregar diretamente nas mãos dos pais ou do noivo.
A mais recente jovem que recebera a notícia que iria se casar, chamava-se Kelly. Era uma moça simpática e amiga de todas, e que, com certeza deixaria muitas saudades. Logo, todas as noviças começaram a preparar seu enxoval. Julianne era uma das mais próximas de Kelly, talvez por ter a mesma idade ou alguma afinidade inexplicável. Constantemente, uma auxiliava a outra em suas tarefas e muitas vezes eram vistas a rirem juntas.
Mas, algo iria quebrar toda aquela paz e felicidade reinante na ilha por tanto tempo...
Inexplicavelmente, o velho corcunda desapareceu por alguns dias sem deixar qualquer explicação e, da mesma forma que havia sumido, retornou. Pelo fato de ser mudo e ainda por cima, muito ignorante, a madre-superiora acabou não dando tanta importância a este acontecimento; o importante é que ele havia retornado e continuava a desenvolver o seu trabalho como sempre.
No entanto, mais preocupante ainda foi o fato de que, numa das ocasiões em que Kelly saiu para buscar Julianne no bosque, ouviu-se um grito de extremo pavor e logo em seguida, as duas retornaram, sendo que a última estava inconsciente e teve de ser transportada com o auxílio da amiga.
A madre-superiora tentou descobrir através de Kelly o que havia acontecido, mas esta se recusava a comentar qualquer coisa. Foi punida, e nem assim falava, era como se, de forma inesperada, tivesse ficado muda.
Julianne, por sua vez, não sabia o que havia acontecido. Sabia que esteve inconsciente no bosque, mas a seu ver, havia sido fruto do cansaço pelas tarefas do dia, e a única coisa de que se lembrava, era de que sonhara ouvir a sua flauta sendo tocada.
Depois deste acontecimento, a amizade entre as duas pareceu abalada. Kelly ficava longas horas imersa no silêncio e seus olhos sempre pareciam estar apavorados, já Julianne sentia-se muito triste, e mais de uma vez em que procurou a amiga para tentar conversar, esta repelia qualquer contato. Então, a jovem loura, como única distração para sua alma, ia tocar sua flauta sentada em algum banco em volta do convento.
Mas, até mesmo este acontecimento foi sendo deixado para trás com o passar dos dias, e o convento voltou a ser um lugar de calmaria, com todos executando suas tarefas como de hábito.
Só que a paz há muito já havia abandonado aquelas paredes, e o mal silenciosamente ia se infiltrando na vida das religiosas.
Um dia, a hora do jantar, novo grito causou alarme e pavor no convento, desta vez, proveniente da cozinha. Todas se apressaram em chegar até o cômodo, e quando puderam contemplar o que ali havia, imediatamente algumas desmaiaram e outras fugiram para seus quartos, aterrorizadas.
O corpo de uma das cozinheiras foi encontrado na despensa com o pescoço quebrado. Imediatamente, a madre-superiora deu ordens para que as mais jovens fossem para os seus quartos e que ficasse com ela uma ou outra das mais velhas, para ajudar com a remoção do cadáver. Levaram a cozinheira para o seu aposento, e deixaram-na sobre a cama. A madre despediu todas, fechou a porta e foi analisar o que havia acontecido.
Não havia como a mulher ter sofrido uma queda da cozinha até a despensa, a ponto de cair e quebrar o pescoço, por mais que o chão ou as paredes estivessem úmidos, nem sequer havia algum degrau entre um cômodo e outro no local da morte.
Lentamente foi desabotoando a longa veste, e quando foi descer até os pulsos, notou que havia algo preso na mão da mulher. Com muita dificuldade, conseguiu puxar e constatou que era um pedaço de pano de camurça, meio desbotado e que parecia ter sido arrancado a força de algum lugar. Colocou-o à parte sobre a mesa próxima à cabeceira da cama e continuou a retirar a roupa da morta.
De repente, sentiu-se estremecer da cabeça aos pés, e seu coração disparou com o que contemplou. No pescoço da mulher, sinais visíveis de estrangulamento. As mãos que deixaram as marcas eram grandes e másculas. Não poderia ser de nenhuma moça.
Sentou-se na cadeira próxima, e apesar do frio, enxugou o suor da testa. Só havia dois homens naquela ilha, mas sua mente não conseguia aceitar que pudesse ser qualquer um deles. O primeiro era o homem do porto, um senhor de idade, casado, bom cristão e que nunca faria algo deste tipo. O segundo era o corcunda, mas apesar do seu sumiço repentino na ocasião mencionada, era impossível imaginar que fosse ele; com a sua deficiência física ele não teria forças para erguer uma mulher do chão e apertar o pescoço até quebrar. Pensou no padre, e imediatamente, arrependeu-se e se benzeu, era um homem santo, que vinha tão raramente à ilha e que ainda faltava uns dois ou três meses para vir buscar Kelly. Talvez algum estranho tivesse invadido a ilha, pelo lado mais distante, onde a floresta era muito densa. Era uma possibilidade, mas que lhe causava extremo desagrado imaginar, pois durante tanto tempo e até mesmo séculos, aquela ilha era impenetrável. Em nenhum dos registros anteriores à sua administração havia qualquer referência sobre alguém que tenha atravessado a floresta até chegar ao convento.
Sentia o peito doer e a garganta queimar, imaginando a presença de um assassino a solta dentro do seu convento. Não podia aceitar esse acontecimento, mas contemplou novamente a mesinha e lá viu o pano desbotado. Pegou-o, analisou-o e teve certeza que a cozinheira tentou se defender e aquele pano deveria ter sido arrancado da roupa do monstro.
Bateram na porta, e ela se assustou. Pediu mais um instante, e tratou de arrumar ela mesma o corpo da mulher para que ninguém descobrisse o assassinato. Era algo muito sério, e era preciso preservar as jovens que estavam sob os seus cuidados.
Realmente era muito estranho o que estava acontecendo de uns tempos para cá: primeiro, o sumiço e o retorno do corcunda, depois o desmaio de Julianne e o pavor de Kelly, que nunca mais abriu a boca, e por último, a morte da cozinheira. Sentiu que todos esses acontecimentos estavam relacionados, mas não sabia explicar como. Caminhou até a vidraça da janela, e novamente sentiu outro arrepio, pois viu corvos voando baixo na direção da floresta. Eram animais agourentos, e que raramente ela via pela ilha, seria um presságio?
Voltou a se sentar, refletindo que não poderia dar essa notícia às suas noviças, seria criar um clima pior do que já estava, ficou imaginando uma desculpa, pois por mais abominável que fosse mentir, não poderia perturbar aqueles corações tão puros com coisas hediondas. Iria conferir todos os cômodos do convento, tentar argumentar com Kelly e chamaria até mesmo o corcunda, talvez por algum sinal, ele pudesse explicar alguma coisa; e foi o que fez.
Primeiramente, reuniu todas as noviças na sala de jantar e pediu a elas que ali permanecessem, pois a cozinheira morrera por conta de um animal peçonhento que lá se instalara e que ela iria, juntamente com o corcunda, verificar todos os cômodos. Notou o susto das moças, e seu peito doeu pela mentira, pois antes fosse mesmo um animal. Logo em seguida, chamou Kelly e implorou por alguma resposta, mas a jovem tremia e era como se tivesse esquecido como é que se fala. Por fim, começou a chorar, e saiu correndo. A madre-superiora teve certeza de que, realmente, a garota sabia de algo, mas havia sido muito aterrador a ponto de deixá-la em tal estado. Se não conseguisse mesmo arrancar qualquer informação, iria enviá-la para seus familiares, pois não haveria mais nada a fazer.
Chamou o corcunda. Ele veio até a sua sala, envolto em seu manto como sempre, nem sequer havia como contemplar seu rosto por conta do pesado capuz. Ela começou:
- Farei umas perguntas, e como sei que o senhor não é surdo, poderá me responder fazendo gestos com a cabeça, tudo bem?
Ele assentiu.
- O senhor, por acaso, está insatisfeito com alguma forma de tratamento que lhe destinamos aqui no convento?
Negou.
- O senhor se retirou recentemente, não foi?
Confirmou.
- E da mesma forma que foi, também voltou, não é mesmo?
Confirmou.
- Para onde o senhor foi?
O corcunda levantou o braço, envolto por baixo do manto, e apontou na direção do porto.
- Foi até o porto?
Assentiu.
- O senhor entrou em contato com alguém, além do casal que lá reside?
Negou.
- Viu algum desconhecido ou algum acontecimento estranho por aqui?
Continuou negando.
- Sei que o senhor já trabalha conosco há muito tempo, mas realmente eu preciso lhe fazer estas perguntas. Desculpe-me. Alguma vez, o senhor entrou no convento, talvez para pegar algum objeto ou algo para as plantas?
Negou novamente.
- Já viu alguma jovem passeando pelo bosque?
Confirmou.
- E mais de uma?
Confirmou novamente.
- Houve uma ocasião em que uma das jovens saiu correndo do bosque, carregando a amiga desmaiada. Lembro-me que o senhor adentrou o bosque na ocasião. Viu algo suspeito?
Negou.
- O senhor tinha contato com a cozinheira que faleceu?
Negou.
- Como o senhor conhece muito sobre as plantas, a vegetação aqui da ilha, já percebeu que, recentemente, temos corvos esvoaçando sobre a floresta?
Assentiu.
- Será que algum animal morreu?
O corcunda sacudiu os ombros, em sinal de dúvida.
- Poderia o senhor, numa hora em que estiver com um pouco de folga, dar uma conferida pelo bosque?
Assentiu.
A madre-superiora, então caminhou com o corcunda por todos os cômodos do convento, analisando minuciosamente cada objeto, cada reentrância, todos os vãos escuros.
Por fim, entrou no quarto de Julianne, e dentro do baú de roupas da moça, encontrou um tecido muito fino, uma seda muito delicada, de cor vermelha. O objeto deixou-a intrigada. Quando a garota era pequena, fora abandonada na ilha e não tinha pertence algum. Nem mesmo as jovens de descendência mais elevada ali, possuíam um corte de tecido daquela qualidade, e ainda por cima de cor tão vibrante. Guardou-o novamente, mas iria conversar com a moça sobre a origem do pano.
Despediu o corcunda para seus afazeres e, enquanto ele se virou para partir, a madre-superiora contemplou o seu manto, era de camurça, também desbotada, muito semelhante ao tecido encontrado na mão da cozinheira. Teve um sobressalto. Teria ele mentido durante seu interrogatório? Mas procurou se acalmar, esse tecido era muito comum nas regiões frias, inclusive, já tinha visto tanto o homem do porto, quanto o padre com um manto parecido.
Enterraram o corpo da cozinheira e fizeram os ritos fúnebres, pois não haveria tempo até a chegada do padre. A madre-superiora reuniu as moças e proibiu todas de saírem dos seus cômodos durante a noite e de caminharem sozinhas até mesmo dentro do convento. As portas dos quartos deveriam ser trancadas a chave, e só abertas quando ela passasse chamando uma por uma. Passeio no bosque era uma coisa que deveria ser esquecida. Todas essas medidas, segundo ela, era para evitar que outra moça fosse atacada pelo animal peçonhento, que ela acreditava ser uma cobra, mas que estavam sendo tomadas todas as providências para resolver o caso.
Todas as jovens confiavam nela, e nenhuma se arriscou a desobedecer. A mais aborrecida era Julianne, por não poder mais desfrutar do ar livre e da companhia da voz daquele anjo que a ensinava tocar flauta. Preocupada, foi até a madre e expôs a questão; a senhora muito tranqüilamente, respondeu:
- Minha filha, se realmente há um anjo que dá a você os ensinamentos da música, e sendo ele um enviado de Deus, por que não viria ensiná-la dentro destas paredes santas, não é mesmo?
Julianne baixou a cabeça e assentiu. Mas o questionamento ficou na alma da madre, seria mesmo um anjo? Novamente, mandou chamar Kelly e disse-lhe:
- Minha filha, sei que você se recusa a falar, mas tem acontecido coisas que eu preciso saber para poder ajudar todas nós aqui dentro! E meu coração me diz que você sabe alguma coisa, mas não quer me contar! Hoje não permitirei que você fuja de mim, eu preciso saber a verdade... o que foi que você viu no bosque?
A moça tremia, contorcia as mãos e seus olhos, como sempre, estavam apavorados. Tentou balbuciar algo com os lábios, mas não saía som.
A madre-superiora insistiu, percebendo que, talvez, conseguiria saber algo:
- Responda-me, filha, havia mais alguém ali? Havia alguém com sua amiga Julianne?
As lágrimas passaram a correr pelo seu rosto, e a moça murmurou a palavra “anjo!”, para depois cobrir o rosto com as mãos, e começar a gritar desvairada:
- Terrível... terrível... tenho muito medo... não quero mais ficar aqui... quero embora me casar... eu vou morrer... eu sei!!
A madre-superiora tomou um choque em sua cadeira, não conseguia entender o que aquela garota pudesse estar tentando lhe dizer, mas já fizera muito para a sua mente inexperiente e frágil. Correu e abraçou a moça, que tremia e estava gélida, consolando-a com palavras ternas, e depois a levou para seus aposentos, onde iria descansar da emoção que experimentara.
De volta ao seu gabinete, a madre começou a tentar traçar algo para dar significado aquela confissão confusa, e seu pensamento, de súbito, ligou-se à idéia do suposto invasor da ilha, do anjo que Julianne dizia ouvir e do tecido vermelho. Estremeceu! Haveria um homem na ilha e que talvez estivesse seduzindo a jovem?
Em pânico, correu até o aposento da noviça e obrigou-a a contar se conhecia algum homem e de quem ganhara o tecido. A garota ficou perplexa, nunca tinha visto outro homem senão o corcunda e nem sequer se aproximara dele. Alegou que sempre dizia do anjo, mas que era uma voz que ela escutava dentro dela, era uma coisa impossível de se relacionar com a presença de um homem, e quanto ao tecido, ficou assustada, não sabia do que se tratava.
A madre-superiora, em desespero e já com raiva, pois sentia como se a jovem mentisse, abriu o baú e começou a jogar tudo o que encontrava de lá para fora. Não havia tecido algum. Agarrou os braços de Julianne gritando:
- Eu sei que estava aqui, eu vi, eu o segurei nas mãos, jamais mentiria uma coisa desse tipo! Por que você está me escondendo a verdade, Julianne? Diga-me? De quem ganhou aquele pano?
- Eu não sei, madre... não sei de pano algum... tudo o que tenho é o que a senhora jogou ao chão... eu nunca mentiria para a senhora! – sua voz estava embargada, e as lágrimas começavam a escorrer pelos cantos dos olhos.
Irada, a madre desferiu-lhe uma bofetada na face, que de tão branca e delicada avermelhou-se imediatamente.
- Eu sei que você está mentindo, Julianne! E já que você não quer ser verdadeira comigo, você irá sofrer as conseqüências disso! – afirmou a madre, despregando um saquinho que ficava por dentro do seu manto.
Dentro deste saquinho, havia certa quantidade de pedras pequenas e pontiagudas, que imediatamente a mulher lançou ao chão, dizendo:
- Levante suas saias e se ajoelhe sobre elas, em penitência! Você só sairá dela quando eu autorizar!
Retirou-se, batendo a porta violentamente.
Julianne sentia as lágrimas escorrerem pelo seu rosto, queimando toda a pele, e principalmente no lado da face em que fora atingida pela mão de sua superiora. Não conseguia entender nada do que lhe acontecera. Por que a madre pensava que o doce anjo que embalava seus sonhos pudesse ser um homem? Era uma coisa impossível, não havia homens ali além do corcunda e o que morava no porto. E também o comentário sobre o tecido vermelho; nunca vira pano algum em seu baú, não conhecia ninguém que pudesse lhe dar um presente desses. A revolta crescia dentro dela e não conseguia se concentrar nas orações, não saía da sua cabeça tamanha difamação e, muito menos, de vir da boca da mulher que era a única mãe que ela conhecia. Tentava compreender as coisas, mas também, a dor em seus joelhos causada pelas pedras, tirava sua concentração e teve de se segurar com as mãos à mesinha para conseguir se manter na posição, pois sentia que estava sangrando no local.
Naquela noite, as noviças não viram ao jantar nem Kelly, nem Julianne. A madre fez a oração de costume e fez sua refeição no rígido silêncio, que ninguém tinha coragem de romper.
No dia seguinte, uma carta chegou endereçada à Kelly, eram notícias de sua família, dizendo que em breve iria buscá-la e que adiantasse os preparativos do seu enxoval. Para a jovem, a notícia foi restauradora, voltou a sorrir, embora ainda fosse um sorriso melancólico, e até mesmo voltara a conversar com as outras moças, mas quando alguém perguntasse o motivo que a deixou muda durante alguns tempos, calava-se ou mudava de conversa.
Julianne foi encontrada inconsciente em seu quarto dois dias depois, as pedras perfuraram-lhe gravemente os joelhos e perdera muito sangue. Foi acometida de uma febre aguda que a deixou de cama durante algumas semanas. A madre sentiu-se culpada desta calamidade, poderia ter perdido a jovem, mas que outra coisa poderia ter feito, se esta se recusava a lhe falar a verdade? Tratou-a com muito amor e carinho no seu período de convalescença, mas nunca deixava a jovem descobrir que era ela quem pessoalmente lhe tratava.
A madre também tentava descobrir algo em meio ao delírio da febre, mas a jovem apenas soltava gemidos.
Tão logo Juliannne se recuperou, embora as cicatrizes nos joelhos perdurassem, Kelly puxou-a para uma conversa a sós, onde as duas fizeram as pazes, perdoando-se mutuamente. Nada foi dito sobre o passado. A partida de Kelly estava próxima, não havia que se perder tempo com ressentimentos. Parecia que toda aquela aura de terror iria se dissolver. Mas era apenas uma impressão, a madre mal conseguia dormir a noite, em vigília, preocupada com suas noviças e Julianne, que nunca mais conversara com ela, parecia ressentida e até mesmo evitava lhe lançar qualquer olhar.
Enfim, numa noite, o vestido de noiva de Kelly ficou pronto e todas as jovens alegremente passaram a comemorar. Queriam que ela experimentasse, e a moça feliz e encantada com tão belo presente, correu aos seus aposentos para preparar uma surpresa às outras. Assim que a viram vestida, todas festejaram ao seu redor, e a madre-superiora tranqüilamente lhe permitia aquele momento de distração, era realmente necessário para afastar todos os fantasmas dos meses anteriores.
Kelly não possuía toda a beleza divina de Julianne, mas seu semblante de felicidade, ressaltado pela pureza e brancura do vestido e de suas rendas, parecia um doce anjo a iluminar as demais. A jovem, preocupada em não sujar ou amarrotar o vestido, retirou-se para mudar de roupa.
Lentamente, voltando para seu quarto, pensava em sua vida, e naquele instante não conseguia recordar os meses de terror. Realmente estava feliz, tinha amigas preciosas no convento, tinha uma acima das outras que mais lhe acalentava o coração e fizera as pazes com ela, iria se casar e seria feliz, não havia o que temer.
Na sala onde todas festejaram, as outras moças começaram a ficar impacientes com a demora de Kelly em mudar de roupa, talvez estivesse tendo algum problema com os laços ou algum alfinete. A mais velha das jovens foi procurá-la, quem sabe poderia ajudar.
Mas, repentinamente, ouviu-se um grito aterrorizante. A madre-superiora sentiu todos os seus nervos se retesarem e a pressão cair, mas lutou contra a vertigem, e correndo com ânimo a frente das moças, subiu as escadas que levavam aos quartos e já no corredor parou estática.
A moça que fora chamar Kelly estava agarrada à parede tremendo de horror e apontava em direção a porta do quarto da outra. O sangue da madre-superiora pareceu congelar nas veias, e como um fantasma ela foi caminhando em direção ao local. Avistou o pé da jovem a prender a porta, e quando se encostou a ela para abrir, quase caiu.
Outras jovens agarraram a madre, e lançaram um olhar para a alcova, mas começaram a gritar apavoradas. Julianne desmaiou, sendo amparada por uma que estava as suas costas.
A madre-superiora, com muito sacrifício recuperou suas forças e contemplou a jovem.
Não conseguia aceitar o que estava vendo. Atravessado no peito de Kelly, uma das barras de ferro da janela havia sido fincada e lhe perfurara o coração, manchando quase que totalmente seu longo vestido branco. O sangue ao seu redor formava poças e tremendo, a madre deu ordem para todas se afastarem e voltarem imediatamente para a sala onde estavam, e ficassem juntas. Chamou as faxineiras para ajudá-la, e enquanto aguardava a chegada delas, contemplava a cena do crime.
Sem dúvida, havia um assassino dentro do convento! Olhou o rosto desfalecido da jovem, e não agüentou segurar o pranto. As lágrimas deslizavam silenciosas por seu rosto. O homem se escondera no quarto, e com tamanha força conseguira até arrancar uma das barras de ferro que protegiam as janelas. Com certeza, logo após cometer tamanha monstruosidade, fugiu escondendo-se, provavelmente em outro quarto.
Sentou-se na cama, cruzou as mãos e fez uma oração pela alma da jovem, mas, ao levantar os olhos, ficou petrificada, não havia notado antes, mas atrás da porta havia alguma coisa, havia uma frase escrita com o sangue de Kelly.
“Ela sabia demais!”
Aproximou-se para ver com mais nitidez, e confirmou o que havia lido antes. “Ela sabia demais!” Mas sabia o quê?
Então, como se também recebesse uma punhalada, lembrou-se da confissão desesperada da jovem, que dizia que iria morrer. De fato, ela sabia de algo de extrema gravidade que estava acontecendo lá dentro e não podia revelar, e por conta disto havia sido silenciada. Quem deveria ser o monstro que invadia o convento, um lugar santo, para cometer esses horrores? Quem era o demônio que levava a vida daquela menina e por que motivo?
Sua mente, ao pensar na palavra demônio relacionou-se ao corcunda. Não! Como poderia ser ele? Era o único homem que estava ali, e fazia parte do convento muito antes dela se tornar madre-superiora, ela já era de idade avançada e ele provavelmente muito mais, como teria forças para cometer tais crimes?! Escutou a batida nos portões de ferro e novamente se sobressaltou. Alguém estava ali.
Deixando o corpo com as faxineiras, a madre correu a atender a porta. Quem estaria no convento em tal hora? Teve medo quando estava próximo da porta, talvez fosse realmente um erro trazer tantas jovens para um lugar deserto e ter somente dois homens velhos por toda a ilha. Perguntou com voz firme quem era, e notou que era o casal que morava no porto. Imediatamente, abriu os portões e os introduziu no convento. O homem parecia assustado, bem como a mulher. Ele foi logo dizendo:
- Minha senhora, perdoe-nos vir incomodar tão tarde, mas é que, realmente é um assunto grave e de seu interesse!
A expressão de pavor estampada no rosto dos dois preocupou-a mais ainda, saberiam eles do assassinato que acabara que ocorrer ali ou traziam notícias ainda piores? Autorizou que o homem continuasse falar.
- A senhora sabe que minha obrigação é cuidar do nosso porto, e sabe que sempre fiz isso com muita dedicação, e que nunca permiti que outra pessoa além do padre colocasse os pés aqui... mas algo de muito estranho deve estar acontecendo... tenho um cão de caça, e recentemente ele me apareceu com um pedaço de osso que me pareceu muito suspeito... preocupado, tomei o osso e junto com o cachorro fomos em busca de onde ele havia encontrado o objeto... a senhora não imagina o meu espanto quando ali encontrei um corpo, já em avançado estado de putrefação!
- Meu Santo Deus! – murmurou a madre-superiora.
- E creio, minha senhora, que os despojos são do jardineiro do convento!
- Não é possível!
- A senhora sabe que eu o conheço há muito tempo, e mesmo o corpo estando comido de vermes e repleto de corvos arrancando as carnes, não haveria como me enganar... espantei as aves, e mesmo com o cheiro fétido me aproximei o máximo que pude... tenho certeza que é o jardineiro!
- Isso é impossível! Eu o vi hoje mesmo!
O homem deu um salto, e a esposa se benzeu. Ele continuou:
- Justamente por isso que estou aqui, minha senhora! Pelo estado em que encontrei o corpo, o seu jardineiro faleceu na mesma ocasião ou um pouco antes daquela cozinheira! Esse homem que está aí não pode ser ele! Seu jardineiro sempre me tratou muito bem, apesar de todas as suas deficiências, mas este aí foge ao meu contato.
- O senhor tem certeza do que está me dizendo? – disse a madre, alarmada.
- Tenho! Não podem ser a mesma pessoa!
- Preciso lhes mostrar algo! Disse a madre.
Ela os levou até o aposento de Kelly e os dois ficaram atônitos, a mulher teve uma vertigem e o homem exclamou:
- Foi o que eu disse! Esse homem conseguiu adentrar pela outra parte da ilha, pode ser algum maníaco, algum prisioneiro abandonado para morrer ou algum pirata! O antigo jardineiro jamais cometeria essa abominação! Precisamos todos nos unir e nos proteger, tentar enviar algumas delas de volta para suas famílias ou até mesmo para outros conventos. Esse homem invadiu o convento.
- Eu não consigo crer, é muito assustador!
- Vou provar para a senhora! Irei agora mesmo à casinha do jardineiro! – E o homem se retirou o mais rápido que pôde.
As duas mulheres ficaram a sós no quarto de Kelly, até que a madre chamou a outra senhora para ficarem juntas com as noviças, pois seria mais seguro. As jovens estavam alvoroçadas e não aceitavam ficar sem explicações. Falavam todas ao mesmo tempo, até que a senhora do porto, pediu-lhes silêncio, para que aguardassem apenas mais alguns instantes que tudo seria esclarecido.
O homem retornou ofegando e lívido, exclamando no meio de todos, sem se importar com a confusão:
- Foi o que eu disse, minha senhora! Na cabana do jardineiro não há nenhum sinal! Não há ninguém ali! Se a senhora quiser, farei a vistoria em todos os quartos imediatamente! – como a madre assentiu, o homem foi cumprir sua missão o mais rápido que pôde.
A madre cobriu o rosto com as mãos, sentindo uma mistura inexplicável de sensações: medo, dor, angústia, vergonha. Mas, teria que ser mais forte, pois as moças novamente começavam a balbúrdia e era preciso esclarecer os fatos e colocar ordem. Bateu palmas, e todas se sentaram silenciosamente ao seu redor, para ouvi-la:
- Minhas queridas filhas, não fui sincera e peço perdão a Deus e a vocês por isso. Agi de forma indigna, tentando lhes ocultar a verdade, acreditando que desta forma estariam protegidas, mas me enganei. E vou agora relatar os fatos: Nunca houve um animal peçonhento aqui, nossa cozinheira foi assassinada por estrangulamento e Kelly, da forma brutal como vocês puderam ver. O homem que fingia ser nosso jardineiro na verdade é um impostor. O jardineiro verdadeiro foi encontrado morto, e pelo visto desde a ocasião em que a cozinheira também se foi. Chegamos à conclusão que algum invasor penetrou nesta ilha desejando semear o mal e aqui se refugiou. Não sei como isso aconteceu, mas é com muita dor que venho lhes comunicar o fato de que nosso convento já não é um lugar seguro para nenhuma de nós, estamos indefesas e por conta disto, hoje mesmo estarei elaborando uma carta para cada uma das famílias que possui filhas aqui para que venham buscá-las, e aquelas que são órfãs, estarei enviando para outros conventos.
Quando terminou seu discurso, as moças estavam pálidas, silenciosas e assustadas. Também não podiam conceber em suas cabeças inexperientes que aquele lugar que fora sempre tão seguro fora conspurcado pela mão de um assassino demoníaco. Depois do silêncio inicial houve choro, lamentos e tristeza.
Julianne, ainda tão bela, por entre as lágrimas, fazia uma prece silenciosa para que seu anjo a procurasse para protegê-la daquele mal e em nome de Deus não permitisse que mais atrocidades ocorressem e ela e suas companheiras não tivessem de ir embora.
O homem retornou cansado e ofegante, e garantiu que o assassino havia fugido, pois vistoriou os quartos e nada havia, encontrou uma porta que dava para o bosque escancarada. Imediatamente fechou e pôs um peso para que não pudesse ser aberta pelo lado de fora.
A madre-superiora acolheu o casal em seu convento e encaminhou as moças para seus dormitórios, dando novamente a instrução para trancar a chave e não abrir senão sob suas ordens.
Julianne lentamente foi seguindo as demais, o coração apertado pela perda da grande amiga. Tentava entender por que alguém faria mal a uma jovem, e sua mente, num turbilhão, lembrava dos meses em que estivera brigada com a amiga. Nunca poderia imaginar o que havia acontecido no bosque naquela ocasião. Lembrava-se apenas, de que, como num sonho, ouvira uma flauta tocar com maestria e adormeceu, acordando somente quando estava no castelo. Será que talvez o maníaco tenha tentado se aproximar dela durante o sono e Kelly a tenha defendido? Nunca poderia saber, mas sentiu o peito apertado.
Entrou em seu quarto e viu que havia uma claridade tênue, não se lembrava de ter deixado a vela acesa. Trancou bem a porta, e quando se virou para o interior, viu um pano sedoso e de uma cor viva aberto sobre o seu baú. Estremeceu, e pegou levemente numa das pontas que se arrastava até o chão, era de fato, um belo tecido. Então, seria esse o tecido pelo qual havia sido ela castigada, mas não entendia como ele havia parado ali, seria uma brincadeira de alguma de suas amigas, ou pior, seria um presente do assassino que andava a solta pelo convento?
Sentiu uma vertigem, talvez promovida por todas as emoções daquele dia. Era como se a névoa que circundava a ilha, passasse a invadir o seu quarto ou os seus olhos, e como numa visão, viu um homem sair de dentro do baú, enrolado no pano vermelho. Esfregou os olhos para verificar se realmente era verdade, mas já não conseguia distinguir realidade ou ilusão.
Nunca havia visto outro homem em sua vida senão o jardineiro corcunda ou o homem do porto e sentiu suas pernas tremerem. Era uma criatura belíssima, alta, de ombros largos e braços fortes, pernas rígidas e uma pele branca e aparentemente sedosa. Possuía cabelos negros e lisos que lhe cobria em parte a testa e o canto dos olhos, que também eram escuros. Sorria, e era um sorriso envolvente.
O homem adiantou-se e abraçou-a por trás. Seu abraço era irresistível, e ela sentiu as pernas novamente estremecerem e seu coração palpitar intensamente. Ele puxou o véu que cobria os cabelos dourados, e mergulhou o rosto neles. Em seu abraço, com uma das mãos deslizava pelos seios da jovem e seu abdômen, e com a outra agarrava-lhe o pescoço, sorvendo o perfume dela.
Julianne nunca experimentara tamanha sensação de prazer em sua vida, nem mesmo os êxtases religiosos ou o contato com a natureza propiciavam todo esse calor que se irradiava pelo seu corpo.
O corpo do homem colado ao seu era quente e terno, não havia como resistir. Num impulso, ele a virou de frente para si, e começou a despi-la. Enquanto os trajes de noviça e até mesmo os trajes íntimos caiam ao chão, ela não conseguia sequer envergonhar-se, pois a sensação prazerosa era intensa.
Sentia seu sexo queimar e deixá-la úmida, e era algo novo, indefinível. De repente, o homem colou sua boca na dela, e tudo ao redor pareceu sumir, numa onda indefinível de delícias. Quando tornou a abrir os olhos, ele a apertou mais ainda contra seu corpo e foi lhe conduzindo até a cama de solteira.
A jovem deitou-se, e não conseguia parar de fitar os olhos daquele ser, e ele devolvia o olhar com extremo desejo. A jovem sentia que queria mais, mas sequer sabia o que era esse mais.
Novamente ele a cobriu de beijos da cabeça aos pés, e ela apenas se entregava pensando que se tudo aquilo fosse um sonho, seria o melhor de todos que ela já havia experimentado. Deixou com que ele usasse seu corpo da forma que bem lhe aprouvesse. Então, ele abriu suas pernas com profunda delicadeza, como que saboreando aquele momento, e introduziu algo volumoso e quente no seu interior; Julianne sentiu uma mistura de dor e prazer intensos. E quanto mais o homem em cima dela se movia, maior era sensação de deleite, até culminar num êxtase intenso, onde ela sentia todo o seu corpo pulsar. Escorriam lágrimas dos seus olhos, mas eram lágrimas de quem não conseguia esconder nem nomear tudo o que estava sentindo. Por fim, dentro de si, sentiu o homem expelir jatos quentes e relaxar. Então, ele deitou-se ao seu lado e continuou a lhe dar carinho.
Embevecida com todo aquele prazer que ele lhe proporcionara, ela se ergueu e passou a devolver cada beijo que ele lhe deu pelo corpo todo, com paixão. O homem gemia baixinho, como se, assim como ela, estivesse delirando com toda aquela sensação. Sentiu que ele a puxava para que ficasse por cima, e com calma, ele a conduziu até seu membro e fez com que ela se sentasse e passasse a se mexer por sua vez. Novamente, depois de algum tempo ela sentiu a explosão das ondas de prazer percorrer o seu corpo, e caiu sobre ele abraçada, murmurando:
- Agora sei quem você é... eu pedi que você estivesse aqui esta noite, e você atendeu meu pedido...
Ele sorriu, e com uma voz grave e ao mesmo tempo suave, a mesma voz que ela ouvia em seus sonhos, respondeu:
- Sim, eu vim... estou aqui porque eu te amo! – e beijou novamente a sua boca.
Aquelas três últimas palavras que ele dissera, ficaram reverberando em sua alma, e ela as reproduziu:
- Sim, eu também te amo... não me deixe... tenho medo... me proteja!
- Protegerei.
Logo após, adormeceu nos braços daquele que ela julgava ser o seu anjo protetor, e quando acordou na manhã do dia seguinte, ele não estava mais lá. Estava sozinha e nua em seu quarto, enrolada no pano vermelho, e notou que seu lençol também tinha uma pequena mancha vermelha; pensou que talvez suas regras tivessem chegado, e tratou de ajeitar tudo.
Quando terminou, agarrou-se ao pano vermelho como se agarrasse ao seu dono que estivera ali à noite passada. Com medo que a madre-superiora encontrasse o pano e a castigasse novamente, escondeu-o por baixo do colchão.
Mal havia feito isto quando a madre adentrou em seu quarto parecendo muito pálida e assustada:
- Julianne, você recebeu uma carta!
- Carta? Mas de quem minha senhora? Não conheço ninguém lá fora!
- Mas alguém a conhece! Veja isto!
A carta dizia que a moça em questão pertencia a uma família muito nobre, mas que para protegê-la, tiveram de omitir o fato quando foi enviada ao convento. E que agora, a família iria buscá-la, pois um outro lado da família estava procurando a jovem para tentar usurpar o poder.
- Nossa, nunca poderia imaginar tal coisa... o que a senhora me diz?
- Bem, acho que devemos deixar suas coisas no jeito, e aguardar que apareça alguém no porto com uma carta de recomendação para levá-la!
Então a madre levantou-se e encostou a porta para falar com mais privacidade junto à sua noviça:
- Sabe, Julianne... eu também estou impressionada com esta história, nunca imaginei que isso pudesse acontecer algum dia... e vou te confessar algo... sempre desejei que você ocupasse meu cargo quando eu não mais estivesse por aqui... não se assuste... é verdade... talvez até por isso eu tenha sido mais rígida com você do que com as outras... agora me sinto perdida em meio a todos esses acontecimentos dos últimos tempos...
- Madre, fico muito lisonjeada em saber da sua vontade... mas, e agora, o que pretende fazer?
- Já enviei as cartas para as famílias e para outro convento... e em poucos dias, todas deveremos partir... estou apavorada com esse homem... não sei como ele conseguiu entrar em nosso convento e destruir nossa paz... três vidas foram desgraçadamente destruídas por suas mãos... e não posso fazer outra coisa senão fugir... sinto-me velha e cansada... ah, Julianne, minha querida... você tem certeza que não sabe de nada?
A jovem engoliu em seco, como poderia revelar sobre o pano vermelho ou a presença do anjo na noite passada em seus aposentos, a madre ainda poderia encará-la com desconfiança. Refletiu e achou melhor nada dizer.
A madre continuou:
- Bem, se você também não sabe, o que posso eu fazer? Você era minha única esperança... deixe suas coisas arrumadas, minha filha, não sabemos ao certo quando virão lhe buscar, mas garanto que será em breve.
Quando a madre-superiora retirou-se dos seus aposentos, a jovem ficou encarando a parede cinzenta da sua alcova, sabia que estava omitindo algo, mas nem mesmo ela entendia ao certo o que estava acontecendo, e tinha medo, que se revelasse tudo, o seu protetor não mais voltasse a lhe visitar nos poucos dias que restavam para ela naquele recinto. Sequer ficava imaginando a família que nunca conheceu, apenas queria sentir novamente todo o turbilhão de emoções que experimentara na véspera.
O desejo de Julianne foi concretizado, e quando retornou à noite para sua alcova, lá estava ele lhe esperando, e tornaram a se amar, de forma ainda mais intensa. Depois do amor, recostada em seu peito, a jovem revelou sobre a carta, e sentiu que seu companheiro estremecera.
- O que aconteceu, meu amor? – perguntou ela.
- Nada! Mas sei que não posso lhe perder... Diga-me, meu anjo, você será sempre minha?
- Mas é claro!
- Confiaria em mim com todo o seu coração?
- Com todo o meu coração e a minha alma.
- Até mesmo se fosse preciso conhecer as terras da morte para estarmos juntos?
Ela sobressaltou-se, mas ainda sorrindo respondeu:
- Sim, eu lhe seguirei em tudo!
Ele tornou a beijá-la, mas ela percebeu que havia lágrimas em seus olhos. Teve vergonha de perguntar o motivo do pranto, e calou-se, para enfim repousar nos braços do amado.
Quando a madre-superiora passou batendo de porta em porta para despertar as jovens, achou estranho que Julianne não atendesse ao seu chamado, e com sua chave-mestra adentrou no recinto. O coração da mulher estremeceu, o quarto estava organizado como se nem mesmo alguém estivesse repousado ali, mas uma coisa chamou-lhe profundamente a atenção: o pano vermelho estava sobre a cama, como uma colcha, e sobre ele, um pedaço de papel.
Com uma letra que não era a de Julianne, havia o seguinte escrito:
“Encontre-me em seu gabinete ao entardecer!”
A madre-superiora levou as mãos aos olhos e começou a chorar. Agora tinha certeza, o maníaco levara Julianne. Seria então ele um dos membros da família que desejava usurpar o poder e havia tramado todo aquele plano ardiloso para capturá-la? Mas como teria ele reconhecido quem era a jovem?
Como não quis causar pânico entre as outras jovens, alegou que Julianne estava indisposta e que ninguém fosse perturbá-la em seus aposentos. A madre superiora, de fato, não teve coragem de subir até o seu gabinete antes do prazo determinado. O coração doía-lhe profundamente no peito, desesperada sem saber o paradeiro de sua noviça. Trancou-se no seu quarto de descanso, mas sequer conseguiu sentar, andava de um lado para o outro, imersa em orações pela alma de Julianne, rogando desesperadamente ao seu Deus que a protegesse de todo mal.
Quando chegou o momento, foi caminhando como num estado sonambúlico até seu gabinete, e quando entrou não encontrou outra coisa senão o ambiente escuro. Acendeu uma vela, sentou-se, mexendo em alguns papéis que estavam sobre a mesa. Mas, de repente, sentiu que não estava só ali, viu um vulto por trás da porta e logo ele se moveu e trancou o gabinete. Foi caminhando até ela, e sentou-se numa das cadeiras destinadas a algum convidado.
A madre-superiora ficou surpresa. Sentado ali com ela não havia um monstro disforme nem um homem com aspecto de maníaco, pelo contrário. Sentado a sua frente, um homem de semblante belíssimo e muito bem trajado sorria de forma amistosa.
- Quem é você? Perguntou ela, sentindo que sua voz tremia.
- Posso ser muitas pessoas, mas vou me apresentar como você quer me conhecer: sou o assassino do convento!
A mulher esforçava-se para não demonstrar o seu pavor, e por baixo das vestes, torcia, angustiada, as mãos.
- Não é preciso que fique nervosa, não farei mal à senhora! Mas preciso contar primeiro minha história.
Recostou-se tranqüilamente no encosto da cadeira, e começou a narrar os fatos:
- De fato, sou um dos parentes de Julianne! Quando ela nasceu já estávamos predestinados um ao outro, mas nossas famílias entraram num conflito devastador, que resultou em muitas desgraças, sendo uma delas, o fato da mãe de Julianne ter de se desvencilhar da filha para poder protegê-la, e assim, Julianne veio parar aqui, neste convento. Meus pais também conseguiram me esconder e preservar, mas quando me tornei homem e tomei conhecimento da minha história decidi me vingar e sair em busca daqueles que destruíram toda a minha paz, mas já era tarde, muito tempo havia se passado, fui preso durante alguns anos numa masmorra infernal, e lá experimentei todo o tipo de humilhação que pode ser infringida a um ser humano. Dentro de mim cresceu um ódio desmesurado e eu sentia que devia procurar minha noiva, pois somente ela poderia trazer a paz novamente para as duas famílias. A única coisa que eu sabia sobre ela era que estava num convento, mas existiam tantos, seria impossível saber. Consegui fugir da masmorra, e junto com piratas cruzei os mares. Foi quando numa ocasião ouvi falar do convento escondido numa ilha assustadora, era quase uma lenda e todos diziam que as meninas enviadas para este lugar eram preservadas de todo o mal exterior e que ninguém poderia atingir a ilha, embora muitos tenham tentado e morrido nas densas florestas que a protegiam. Senti que era esse o lugar, e que eu precisava alcançá-lo, nem que para isso perdesse a vida. Os piratas desembarcaram-me nesta ilha, deram-me provisões e eu pude a cada dia, tentar me embrenhar selva a dentro.
“Foi quando ouvi o som da flauta de Julianne. Desconfiei que era ela, nossa família tinha um talento impressionante para a música, não deveria ser diferente com minha noiva. Mas eu precisava vê-la para ter certeza, e como também eu portava uma flauta, cativei-a pelos sons e consegui atingir sua mente, fazendo com que ela pensasse que eu era um anjo protetor. Então eu a vi, também trazia comigo uma foto da mãe de Julianne, herança dos meus pais, e simplesmente as duas eram iguais. Não tive dúvidas, senti meu coração disparar e eu precisava fazer alguma coisa para resgatá-la. Numa noite, rondando pelas imediações do convento, o velho jardineiro corcunda me avistou e tentou me delatar, não podia permitir que isso ocorresse sem que eu tivesse dominado completamente os pensamentos de Julianne, e tive de matá-lo! Aproveitando-me da condição privilegiada que ele tinha em estar próximo do convento, tomei o seu lugar e passei a imitá-lo em seus gestos e modos, ninguém desconfiou. Consegui cada vez mais me aproximar de Julianne, fazendo com que acreditasse nos seus sonhos juvenis de anjos e bondade, e numa ocasião, em que ela foi ao bosque consegui hipnotizá-la ao som da flauta, e ela caiu inconsciente. Quando me aproximei, a sua amiga me viu e começou a gritar, achando que, na realidade, quem se aproximava de sua amiga era o velho corcunda. Tive de fugir, mas deixei-a sob ameaças. A jovem passou a espreitar cada um dos meus movimentos, e protegia dia e noite a amiga, mas fingia estar brigada. Ela não queria falar, ao menos que me pegasse. Então para atemorizá-la, intensifiquei minhas ameaças. Até que, na ocasião em que tentei entrar a primeira vez no convento e a cozinheira me descobriu e tentou me enfrentar, também foi preciso silenciá-la. Consegui entrar no convento depois de nova tentativa, e desta vez a noviça me viu; foi na ocasião em que tentou falar com a senhora, mas o medo a paralisou. Não havia mais como ela permanecer viva, sabia demais e poderia facilmente me prejudicar agora que eu conseguira entrar. E, para dificultar ainda mais meu trabalho, a senhora estabeleceu muitas normas, como a de não deixar nenhuma moça andar sozinha pelo convento. A única ocasião que pude alcançar a jovem, foi no dia em que todos, distraídos a deixaram sozinha por um minuto. Ela tentou lutar, mas foi em vão. Consegui, por fim, entrar na alcova de Julianne e a tornei mulher, mas não esperava que a família a encontrasse aqui. Ela contou-me tudo, acreditando que eu era seu anjo, e eu tive de protegê-la ao meu modo. Essa parte da família que escreveu a carta, era justamente o lado que queria destruir Julianne. Queriam recuperá-la para arrancar toda a fortuna que ela nem sequer sonhara ou se importara em ter. Tive de defendê-la novamente, e assim como havia me entregado o seu corpo, também me entregou a alma..."
- O que você está me dizendo?! Matou-a também? – A madre superiora estava atônita com toda aquela história repleta de reviravoltas, traições e mortes.
- Matei a mim mesmo, antes de fazer isso!
A mulher observou-o sem compreender.
- Sim, matei-a, mas por que ela me entregou a sua vida. E se a senhora quiser, posso levá-la até o seu corpo! Mas com uma única condição!
- Qual? – perguntou a madre, já com os olhos marejados.
- Eu nunca teria tirado a vida de ninguém se não fosse para proteger Julianne, nunca teria tirado a vida dela se não fosse para protegê-la de todos os horrores que a estariam esperando quando retornasse para a família amaldiçoada. Preferiria mil vezes acabar com minha vida a ter permitido que tudo isso tivesse acontecido, mas foi o único jeito que encontrei para salvá-la...
- Somente Deus salva uma pessoa...
- Se realmente seu Deus tivesse se importado alguma vez, as coisas nunca teriam chegado ao patamar que chegaram! Eu não seria um assassino! Julianne não estaria morta! Você quer ou não vê-la?
- Quero!
- Prometa-me primeiro que ninguém saberá desta história! Quando os familiares de Julianne chegarem aqui na ilha, diga a eles que ela morreu no mesmo dia em que a trouxeram para cá. Faça com que eles pensem que ela nunca existiu!
- E para que farei isso?
- Porque Julianne sim era um anjo, era um anjo que traria a paz que eles não queriam. Não quero que sequer saibam que eu existi. Tudo ao final foi em vão, mas a memória de Julianne eles não poderão conspurcar, entende?
- Agora, entendo... você quer preservar a imagem de Julianne, mesmo depois de morta!
- Sim, antes acreditem que ela não tenha suportado os rigores do inverno quando era criança do que ter sido entregue ao homem a quem estava destinada.
- Leve-me até ela, então!
Esgueirando-se pelos corredores mais sombrios e escuros do convento, o rapaz conduziu a madre-superiora por uma entrada secreta, até uma trilha escura, floresta adentro, e quando ela atravessou todo aquele percurso, avistou um barco junto a margem. Ele apontou-lhe a direção, e ela caminhou cambaleante pela areia. Quando olhou seu interior, ali jazia o corpo angelical de Julianne, envolto num vestido branco e com várias flores ao seu redor. Pensou consigo: “Teria este rapaz feito de tudo mesmo para salvá-la de um destino pior que esse?”.
A madre-superiora tornou a encarar os olhos do assassino, mas notou que eles estavam marejados d’água e o arrependimento dele parecia sincero. O rapaz desamarrou as cordas que prendiam o barco, e pulou para dentro dele.
- Preciso partir com minha irmã! Perdoe-me!
Abraçou o corpo sem vida de Julianne, e o barco saiu flutuando pelas águas. Durante algum tempo, a madre superiora ficou observando o barco se afastar, inerte. Mais que noivos, eram irmãos! Talvez estivesse justificada tanta desgraça causada no seio da família e na própria vida dos que conviveram com Julianne. Mas ainda assim, nada precisava ser do jeito que era. Muita dor, muita lágrima, o fim do seu convento, as mortes, não teria Deus outro meio de resolver tamanha situação?
De repente, notou que o barco havia parado, e esfregou seus olhos para confirmar o que estava vendo, estava afundando. A mulher correu até a margem tentando ver mais adiante, mas tudo o que viu foi a embarcação afundar nas águas escuras, com os dois irmãos que estavam destinados a se amar como homem e mulher. Talvez houvesse mesmo sido melhor Julianne partir sem saber qual a identidade do seu protetor, antes pensasse mesmo que era um anjo.
Afinal, a vida tinha mais mistérios do que um ser humano poderia imaginar, e mesmo para coisas sem razão ou extremamente condenáveis talvez houvesse um motivo além da compreensão. Então, a madre-superiora fez o sinal da cruz, e voltou ao seu convento pela última vez.