NAUFRÁGIO

Abandonei o KAHEV em um bote salva-vidas, numa noite escura e sob intensa tempestade. Não tive tempo de juntar suprimentos, pois tudo aconteceu numa fração de segundos. O vento forte e uma gigantesca onda fizeram com que o barco fosse arremessado de encontro a um paredão de águas pesadas e escuras, adernando para estibordo. Então, tudo o que estava ao meu redor foi tragado pela espuma ; que já tomava conta de todo o convés. Sempre considerei o KAHEV uma embarcação segura e resistente, mas, naquele instante, percebi o quão frágeis são as obras humanas.

Sob a quilha do bote, a 2 mil ou 3 mil metros, jaziam os segredos do fundo do mar; distância impensável, quando não se tem referência alguma diante dos olhos. Profundidade infinita se comparada à nossa insignificância flutuante naquela imensidão de água salgada. Em breve o KAHEV estaria sepultado, definitivamente, naquela profunda e eterna escuridão.

Algumas semanas antes do naufrágio, as primeiras nuvens escuras começaram a despontar na linha do horizonte. Nada que me levasse a cogitar na possibilidade de uma perigosa tempestade; afinal, já navegava há muitos anos por estes mares da vida e nada poderia ameaçar o traçado de meu rumo.

Engano, quando se é jovem, somos levados a pensar que nada nos impedirá de alcançar nossos destinos; pensamos de forma concreta e dedicamos pouca ou nenhuma atenção à nossa intuição. Erramos por orgulho e por excesso de confiança em nós mesmos. Se tivesse prestado atenção em mais alguns detalhes, talvez pudesse ter evitado a rota direta que me fez navegar para o meio da trágica tempestade. Subestimei, também, a mutável e imprevisível capacidade da natureza de modificar seus fenômenos.

O mar bravio e a água gelada transformaram meus pensamentos num caldo de medos e incertezas. O vento soprava de todas as direções, as ondas e a escuridão encobriam qualquer possibilidade de ver à frente a direção em que estava sendo empurrado. Não sabia se a tempestade me conduzia para a morte ou para a vida; minha única certeza, naquele momento, era de que estava com muito medo e totalmente desorientado.

Havia perdido a noção do tempo desde o início da tormenta. Minha única atenção estava voltada, agora, para o bote salva-vidas que se enchia de água cada vez mais. Era descomunal a força das ondas, o bote estava sendo jogado por cima de uma e de encontro a outra. Jorros de água elevavam-se a metros acima de minha cabeça. Usava todas as partes do meu corpo para manter-me agarrado ao bote quase cheio d’água. A noite parecia interminável.

O desespero tomou conta de mim e comecei a jogar ao mar tudo que pudesse representar algum peso. Foram-se os remos, as cordas, um galão de água e um estrado; joguei ao mar aquilo que eu era, entreguei minha coragem, meus amores, meus desejos, minha sabedoria, meus conhecimentos, minha história e até minha personalidade se foi; por último, entreguei minha própria fé.

O fim parecia cada vez mais trágico e conhecido, meus braços e pernas não suportavam mais tanta força para manter-me dentro do bote; estava cansado. A chuva e o vento continuavam impiedosos, as ondas pareciam querer tragar-me a qualquer instante. Então; inesperadamente, fomos arremessados de encontro à alguma coisa sólida e cortante. O bote partiu-se ao meio. Meu corpo foi jogado de encontro aos rochedos.

Quase não sentia mais as minhas pernas, meus braços mal podiam elevar-se fora d’água; as forças haviam me abandonado. Mas graças à corrente que ia em direção da praia, consegui chegar, semivivo, até à areia. Um verdadeiro farrapo humano, a carne em retalhos, os músculos fadigados, a pele macerada pela água fria e salgada e minha auto estima decomposta.

Acho que fiquei deitado na praia, adormecido ou desmaiado, por quase um dia. Estava exausto e meu corpo dolorido pela luta travada contra a fúria da tormenta. Quando consegui sentar e olhar ao meu redor, achei inacreditável a visão que tive; estava numa ilha desconhecida pelas cartas náuticas. Não tinha qualquer idéia do quanto havia me afastado da rota do naufrágio.

Depois de observar com cuidado cada detalhe da vista, amassei nas mãos um punhado de areia e comecei a chorar como um garoto assustado; ainda havia medo dentro de mim e estava me sentindo totalmente solitário e perdido. Descobri, neste momento, que minha vida já não era mais a mesma de antes da partida. Sentia-me estranho e com um imenso vazio no peito. Era como se eu mesmo não me reconhecesse, estava vivo, mas completamente diferente do que eu era.

A ilha era uma formação vulcânica, totalmente rochosa. Por entre as pedras brotavam diversas espécies de vegetação e muitos, muitos espinhos! De alguns arbustos estranhos brotavam frutos de sabor amargo e bastante diferente. Não avistei nenhum animal ou réptil; o que seria natural num lugar como este; o que me fez concluir que a ilha era muito recente. O mais impressionante, é que não avistei um único coqueiro. Sempre imaginei que nas “ilhas dos náufragos” existissem altivos coqueiros para tornar a vida um pouco mais romântica; descobri que os livros e os filmes mentem.

Caminhei em torno da ilha durante uma ou duas horas. Realmente a ilha era muito pequena para ser vista de longe e insignificante para ser mapeada pelos métodos convencionais. Conclusão: estava perdido numa ilha desconhecida e fora dos mapas.

O lugar não era tão horrível assim; possuía duas grutas naturais bem próximas uma da outra onde improvisei um abrigo na maior delas. Tive, então, o privilégio de montar minha primeira casa de frente para o mar, na melhor parte da praia; o que deixaria com inveja outros ilustre náufragos da literatura.

A única praia da ilha ficava há alguns metros diante das duas grutas; era formada por uma areia muito fina e muito branca. Media uns duzentos metros e foi o meu lugar preferido para caminhar, quase todas as tardes e manhãs durante os meses em que lá fiquei. Gastava meu tempo procurando coisas pela ilha. Encontrei conchas, caramujos gigantes e pedrinhas coloridas. Meu maior desejo era encontrar estrelas do mar; não tive sorte, jamais encontrei uma se quer.

CertA manhã, depois de uma noite tempestuosa, alguns objetos vieram dar à praia; algumas garrafas de vinho, um pedaço de rede, velas rasgadas, cordas e restos de madeira de alguma embarcação. Durante dois dias outras coisas continuaram sendo jogadas à praia pelo mar. O mesmo que me aprisionou naquela ilha.

Meus dias eram sem graça. No primeiro mês tudo foi novidade, inspecionei cada centímetro da ilha, cada fresta nos rochedos. A partir do segundo mês não restava muita coisa para fazer a não ser correr, dormir, ficar olhando o horizonte e mergulhar num conflito emocional que me fazia chorar durante horas. Era um exílio forçado ao que a vida me condenara. Sem companhia, sem um afago de carinho, sem sorrisos de incentivo, sem a vida.

À noite, quando o silêncio do cosmo animava um espetáculo de luzes no céu, eu costumava ficar admirando, por longo tempo, os astros que reluziam no breu do infinito. Haviam milhões de estrelas cintilantes, uma mais linda e diferente do que as outras. Ficava imaginando qual delas estava mais próxima de mim, qual delas poderia captar as súplicas do meu coração e me resgatar neste fim de mundo. Me sentia totalmente abandonado naquela ilha. Então, ficava contando estrelas até adormecer; antes que os primeiros raios de sol viessem iluminar a paisagem desértica do lugar.

Quase todos os dias, ao cair da tarde, abatia-se sobre a ilha uma forte chuva que regava os rochedos, alimentando a cadeia nutritiva das plantas e armazenando água em diversas bacias naturais cavadas na pedra pela natureza. Graças a este fenômeno, pude me alimentar e saciar a sede; que era muito intensa. Sentia diversos tipos de sede; sede de água, sede de ajuda, sede de companhia, sede de tudo que pudesse me ligar ao mundo real e que foi deixado para trás.

Apesar de encontrar algum tipo de alimento entre os rochedos, meu prato preferido encontrava-se dentro das piscinas naturais, formadas após a maré baixar. Inúmeros tipos de peixes e crustáceos marinhos ficavam presos; à minha espera. Era só entrar com a água pelos joelhos, abaixar-me e enfiar as mão dentro d’água; algumas tentativas após e o almoço estaria secando ao sol, sobre alguma pedra quente.

Estar numa ilha deserta nos faz mergulhar, profundamente, dentro de nós mesmos. Pude refletir, durante meses, sobre tudo o que aconteceu na minha vida; meus relacionamentos, minhas conquistas de vida; meu trabalho, meus fantasmas interiores, meus sonhos para o futuro e, principalmente, neste novo indivíduo em que me transformei e que mal sabia administrar suas emoções. Verdadeiramente, foi como nascer de novo depois daquele naufrágio; joguei fora tudo que havia em mim. Agora, estava tentando recriar uma nova estrutura. O tempo estava ao meu favor.

À noite, enquanto ficava esquadrinhando o céu a procura de uma nova estrela , tentava pensar em coisas boas; sonhava o tempo todo em ser avistado e retirado daquela ilha por algum barco; sonhava com um lindo veleiro navegando em direção da ilha; sonhava em voltar a ter uma vida normal; tentava lembrar dos rostos e do lindo sorriso das mulheres da Irlanda; da sua música, das montanhas verdejantes. Estes sonhos funcionavam como um bálsamo para meu espírito.

Os dias foram passando e eu sentia melhoras dentro de mim. Aos poucos fui me acostumando com a solidão da ilha e aprendi a encontrar paz e felicidade nas pequenas coisas e nos momentos de contato com o silêncio. Já podia ouvir o som das estrelas durante as noites e acreditava, então, que, em breve, meu chamado poderia chegar até elas. Aprendi a contar os dias juntando pedrinhas e colocando-as, enfileiradas, na entrada da gruta; isto me animava a cada dia que passava. Cada pedrinha a mais no meu rústico calendário significava, também, um dia a menos para a minha partida da ilha.

Neste dez meses tive muito medo de me aproximar do mar, conseguia chegar até a beirada da água, mas jamais entrei com segurança além do nível dos joelhos; tinha medo de ser afogado ou de ser, novamente, jogado de encontro às pedras por alguma onda inesperada. Durante todo este tempo foi como se eu vivesse uma condenação auto-imposta: O mar - A vida - O medo do mar. A solidão.

Sentia-me inseguro ao chegar à praia e ficar frente a frente com aquela imensidão verde-azulada, que mais parecia um misto de céu e mar; não fosse uma linha infinita no horizonte; um limite tênue entre dois universos; o das estrelas do mar e o das estrelas do céu. Um mar forte e poderoso, cujo choque das ondas contra os rochedos retumbava em ecos nos meus ouvidos; um estrondo que mais parecia um rugido lembrando a criatura que, outrora, quase me devorou.

Ficava ali, parado, imaginando em como vencendo o medo, venceria o mar; e tendo este vencido, reencontraria a própria vida em algum lugar:

- A vida; é um imenso mar de incertezas onde ondas inesperadas estouram em série, na proa de nossos sonhos e onde aprendemos a navegar usando apenas a força dos nossos sentimentos. Todo marinheiro sabe que o pior naufrágio é não poder partir; é não poder lançar-se ao mar e conquistar o desconhecido. O que seria da fama dos grandes navegadores se não fossem o mar bravio e a fúria das grandes tempestades?

Este pensamento motivava meus dias e durante as noites, eu continuava a clamar às estrelas e a alegrar-me com os meus sonhos. Mas meu corpo foi se cansando de tanta espera, minhas forças, antes recuperadas, cediam lugar a uma fraqueza inexplicável e cada vez maior. Talvez houvesse, mesmo, um limite de sobrevivência sob aquelas condições; talvez minhas chances estivessem diminuindo e, com isso, novamente, me aproximava da inimiga morte.

Perdia-me cada vez mais nos meus sonhos. Fraco, já definhara quase metade do meu corpo. Água, peixes e mariscos já não eram tão saborosos; a paz da ilha tornara-se uma desconfortável prisão. Estava enjoado de tanta solidão,chegava a ter febre vez que outra.

Permanecia quase todo o tempo sentado diante do mar, observando o movimento das ondas no horizonte. Passei os dez meses mais longos de minha vida naquela ilha; conhecia cada metro quadrado daquela praia. Muitas vezes, cansado da espera, adormecia na praia e ficava lá durante dias, prostrado na areia, a espera do destino. Foi num dia como este que, no final da tarde avistei, distante, o velame de um barco refletindo os raios dourados do poente.

- Estou salvo! Pensei.

- Estou salvo! Murmurei.

- Estou salvo! Salvo ! Gritei com o resto de minhas forças.

Levantei-me com certa dificuldade e corri, cambaleando, para cima das rochas, onde poderia ser avistado com mais facilidade. Acenava com os braços e gritava de alegria. Vi que o barco singrava as ondas em direção à praia. Não tinha mais duvidas, fora localizado.

Alguns minutos depois, já podia observar a imponência da embarcação, com todo o seu velame içado. Por sorte a baía em frente à praia estava calma; o que permitiu que o veleiro lançasse âncora bem próximo da areia.

Corri para receber meus salvadores. Entrei no mar com água até a cintura e pude ler na lateral do casco, em letras enormes, o nome HÓRUS, e na sua proa, imensos olhos azuis desenhados, como que procurando enxergar tudo à sua frente. Olhos de um deus salvador, que a tudo vê e tudo conhece. Pensei comigo.

Era um lindo veleiro branco, majestoso, idêntico ao dos meus sonhos; parecia que ele havia se materializado ali, bem diante de mim. Continuei a apreciar cada detalhe do barco, o casco, as velas, suas cores e aqueles imensos olhos azuis; os olhos do HÓRUS.

Procurava pela tripulação, quando uma voz feminina gritou do “cockpit” do barco:

- Suba a bordo homem, estava à sua procura!

Mal pude acreditar no que meus olhos viam e no som daquela voz. Uma mão delicada esticou-se para me ajudar a subir pela borda do barco, de onde pendia uma pequena escada; seus olhos grandes, seu cabelo ruivo me perdia em divagações. Já dentro do barco, parei alguns segundo diante daquela inesperada mulher enfiada dentro de um casaco amarelo, admirando aquele rosto feminino que sorria; mais parecendo o brilho das estrelas das minhas noites do que um marinheiro; o que me fez lembrar as Irlandesas dos meus sonhos.

A mesma mão cobriu-me com um cobertor e indicou-me um lugar para sentar ao lado do leme. Calmamente, depois que a âncora fora recolhida pela comandante, o veleiro começou a manobrar, silenciosamente, iniciando o retorno ao alto mar. O velame retesou com o vento e uma imensa e colorida vela balão foi içada na proa do barco.

Neste instante, a comandante assumiu o controle do leme e mirou o horizonte, como que procurando o rumo desejado.

- Para onde vamos comandante? Perguntei.

- Vê aquela estrela brilhante lá ao fundo, acima da linha do horizonte? Perguntou ao mesmo tempo em que apontava a estrela com o dedo e esticava o braço para frente.

- Sim. Respondi afirmativamente. O seu brilho é bastante forte; parece ser a única no céu.

Ela olhou para mim, com um sorriso irradiante no rosto e com um olhar tão sereno e profundo; que me deu muito conforto e segurança na sua resposta:

- É para lá que vamos; marinheiro. É lá que começa a vida!

Neste instante, percebi que o veleiro flutuava no espaço e sobre as ondas. Não me preocupei com isso. O mais importante, naquele momento, era a segurança daquele sorriso, o calor do cobertor e o olhar de quem sabia a quem havia encontrado.

Juntos; passamos a mirar a estrela no horizonte enquanto o HÓRUS deslizava sobre as nuvens.

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P o r t o A l e g r e , 3 0 d e S e t e m b r o d e 1 9 9 8 .

Carlos Evandro Corezola
Enviado por Carlos Evandro Corezola em 28/03/2008
Código do texto: T921157
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