O segredo de Thomas Krause

Thomas Krause arrumava a mesa para ir para casa, eram quase 5 da tarde, mas deixar o escritório em ordem era sua prioridade. Estava no segundo andar de um prédio velho, patrimônio histórico, no centro de cidade onde, desde 2047, era proibido o trânsito de veículos particulares; somente transporte público. Deixou tudo preparado para iniciar a análise de mais um romance de ficção científica do século 20. Bateu o cartão e deixou aquele Thomas para trás. Retomaria no dia seguinte.

Há uns dois anos, grupos conservadores convenceram o congresso a aprovar uma série de leis obrigando os livros e filmes, inclusive de fantasia e ficção científica, a obedecerem leis e princípios científicos. Os que não cumpriam a lei eram processados. Os julgamentos de plausibilidade atraiam multidões e davam grande audiência na TV.

Isso não fora surpresa para Thomas. Para ele era um desdobramento natural de outros movimentos civis que eliminaram a violência, sexo, drogas, preconceitos, crimes etc de toda a literatura. A literatura mundial foi reescrita ou simplesmente destruída para atender às leis e quem oferecesse resistência era punido severamente. O mesmo ocorreu com outros tipos de arte e entretenimento.

A vez da ciência da ciência chegara.

Thomas não queria julgar o mérito, não cabia a ele. Ex-cientista desempregado, conseguiu um cargo de censor e dava graças a Deus por ter algo para fazer naqueles dias monótonos. Melhor do que trabalhar no metrô.

Seu trabalho era verificar se uma determinada obra, um livro – ele só trabalhava com livros, feria alguma lei da física. Em caso afirmativo, ele preenchia um formulário, RPP- Requerimento de Prova de Plausibilidade, que era anexado ao processo e enviado aos procuradores. Certamente a mesma obra passava por outros especialistas, como psicólogos, químicos, biólogos etc.

Ao final da análise, com o processo já maior que o livro, o autor era chamado para se explicar. A audiência normalmente resultava em um acordo extra judicial. Na prática significava uma retratação publica e uma revisão na obra literária. Caso não concordasse, a obra iria para julgamento. O juiz responsável poderia, dependendo do conteúdo e das solicitações dos advogados de acusação, ordenar a prisão preventiva do autor. Durante o processo o livro não circulava.

Thomas gostava do seu trabalho porque podia ler muito e, ao longo de uns anos, já não se sentia mais satisfeito só em ler. Começou a ficar atraído pela literatura de forma integral. Pensava no fazer – queria escrever. Só que ele não tinha licença de escritor e, pela natureza do seu trabalho, isso não lhe seria permitido. Exercer qualquer atividade sem licença era crime naqueles tempos. “Vivemos em uma sociedade altamente civilizada”. Pensava.

Começou a imaginar um mundo hipotético onde as pessoas pudessem escrever o que lhes aprouvesse. Poderia ser em outro planeta, ou no futuro. Qualquer um poderia escrever, não seria uma transgressão. A literatura seria vista como arte, como uma atividade nobre. Seria permitido escrever qualquer coisa, sobre impossibilidades, sobre incoerências, sobre acontecimento fantásticos, sobre entes imaginários. Outras maneiras de viver, outras fontes de felicidade, outras alegrias. E tristezas também, nada seria proibido.

Embalado pelo sacolejar silencioso do maglev, Thomas imaginou até maneiras de divulgar esses escritos : um varal cultural na praça da cidade, leituras em eventos, bibliotecas públicas, telas eletrônicas no metrô. Aproveitava aquele tempo no transporte entre casa e trabalho para imaginar.. Sabia que esses pensamentos eram proibidos no mundo em que vivia. Algumas vezes até se sentia culpado por desejar transgredir numa sociedade quase perfeita. Ele sabia que aquelas regras eram pelo bem da coletividade,. Ele concordava, tinham feito um bom trabalho, a criminalidade era muito baixa e não havia mais miséria. Todos tinham educação e uma vida digna.

“Se eu pudesse vir de carro poderia parar em algum lugar ermo e escrever. Em lugares públicos é arriscado.”. Esse era o segredo de Thomas, era um escritor clandestino.

O que havia de tão atraente no pecado de escrever ? Não sabia . Simplesmente estava sendo arrastado ladeira abaixo . Seria um proscrito, mas não oferecia resistência. Deixava-se levar como se dependente de uma droga fosse. Thomas passou a pensar em maneiras de escrever secretamente. Queria tornar reais aqueles mundos que ele criava no metrô e o assombravam nos sonhos. Queria preservar aquelas loucuras e, quem sabe, compartilhar com outros. Mas como ?

Improvisou um cantinho no porão da sua casa. Uma mesa, uma cadeira e um pequeno computador portátil. Pronto! O paraíso era ali.

Um dia, absorto em seus devaneios, esqueceu o aquecedor ligado e foi trabalhar. Um curto-circuito iniciou um pequeno incêndio, se é que se pode chamar assim. Praticamente só gerou fumaça. Uma pequena perturbação na vida certinha das pessoas, como uma gota em um lago num dia sem vento. Uma pequena perturbação que logo se dissiparia.

Os bombeiros vieram, Thomas foi descoberto e preso. Estava acabado, sua vida terminava ali. Estava confuso com seus sentimentos, não se sentia preocupado, estava até um pouco aliviado por deixar de desgraçar a vida dos escritores.

Na prisão, descobriu um mundo diferente, sem regras. Não podia sair mas podia fazer coisas que não faria lá fora, seria preso.

Consegui uma vaga na cozinha, lugar estratégico. A comida sempre é moeda de troca na prisão - tinha lido isso em um livro. Isso lhe deu meios de obter lápis e papel. Depois peças de computadores, até que conseguiu montar um. Criou uma espécie de biblioteca virtual na prisão. Na sala do computador se reuniam os escritores presos. E havia muitos por lá. Podiam conversar abertamente nas horas de recreação.

Ali, preso, Thomas encontrou sua liberdade.