A Saga de Aba Jeva -Capítulo I

A SAGA DE ABA JEVA

CAPITULO I

PAULO ROBERTO SANTINI

A brisa fria do começo da noite penetrava pelo basculante quebrado, fazendo esvoaçar de quando em vez os papéis desalinhados sobre a escrivaninha antiga. O som rouco da F.M., na verdade um velho rádio enrustido entre os livros, era constantemente sufocado pela voz estridente e alterada daquela senhora gorda,beirando aos setenta ,maquilagem carregada , que brandia uma folha de papel com timbre oficial.

-A verdade é ,Dr.Santini, que estive no Forum .O escrivão deu-me esta certidão que diz claramente que o meu processo foi para o arquivo, porque o senhor deixou de atender um determinado prazo.Quero saber como é que ficamos! Sempre paguei o que o senhor me pediu e olha que já fazem três anos que o inventário começou!

Paulo Roberto Santini acomodou-se na cadeira giratória .A dor na coluna que vinha lhe atormentando há alguns meses fez-lhe balbuciar um pequeno gemido,Quase quarenta anos e insistia em advogar , apesar dos constantes fracassos e da penosa situação financeira em que se encontrava. Procurou os cigarros e inadvertidamente esbarrou no telefone cortado por falta de pagamento.

-O seu telefone está com defeito, Dr.?Faz mais de uma semana que tento ligar para cá e ninguém atende.

-A Cia.Telefônica está fazendo alguns reparos ,Dona Eunice.

-Gozado! O do meu médico,que tem consultório neste prédio funciona normalmente.Bem, Dr.,como é que ficamos ?

-Dona Eunice, a culpa é da associação, que deveria ter me enviado as notificações .Eu tenho mais de cem processos e é totalmente impossível acompanhá-los. Além do mais ,tudo o que a Sra.queria foi conseguido, Liberamos os depósitos nos bancos, a casa foi vendida, as ações transferidas para o seu nome .O que falta agora é mera formalidade legal.Prometo-lhe que amanhã mesmo eu vou pedir o desarquivamento e...

-Amanhã é sábado ,Dr.!

Paulo Roberto Santini sorriu:

-Claro Dona Eunice, segunda feira sem falta está bem ?

Levantou-se e em seguida estendeu a mão, no que foi acompanhado pela senhora de cabelos grisalhos.

-Parabéns,Dona Eunice,vejo que a senhora está emagrecendo.

A velha emitiu um pequeno grito de satisfação e corou:

-O Sr.acha! Por favor, não esqueça, eu não vejo a hora deste inventário terminar. Até logo ,então, Dr.

Quando o odor de perfume francês saiu pela porta,Paulo Roberto dirigiu-se ao arquivo de aço, que sempre se prometia pintar e a pasta de Dona Eunice Pilar Brandão foi fazer companhia às outras nove que lá existiam. Dez clientes compunham o que fora, um dia ,o sonho de ter o maior escritório da advocacia da cidade.

Por uns momentos o advogado ficou ao lado do arquivo, pensativo, mas o anúncio do locutor ,no rádio, da hora, dezoito e quarenta e cinco , fe-lo exclamar:

-Opa! por hoje chega de bordoada.

Fechou a porta,sentou-se. Abriu a última gaveta da escrivaninha .Tirou de lá umas poucas notas que recebera de um cliente a título de reembolso de custas processuais.colocou-as na pasta .Retirou o paletó da guarda da cadeira .Vestiu-o e quando ia se levantar ouviu a voz grave:

-Doutor Santini ?

Em pé junto a escrivaninha estava uma figura estranha. Quase dois metros de altura ,cabelos longos, presos em forma de rabo de cavalo. Vestia algo que parecia um poncho gaúcho feito de um tecido azul, tão brilhante que parecia espelhado, As feições era de um tipo asiático, olhos puxados,boca pequena.Aparentava uns cinqüenta anos, mas na verdade tudo nele era esquisito.

Após o primeiro impacto, Paulo Roberto observou que a porta continuava fechada. Havia nela uma sineta que ao menor movimento tocava.

-Sim, eu mesmo,disse estendendo as mãos .

Recolocou as mãos na escrivaninha , pois o homem não retribuíra ao cumprimento, limitando-se a falar:

-As pessoas que eu represento decidiram contratá-lo como advogado. Posso adiantar-lhe que jamais o senhor pensou em pegar uma causa da importância que esta tem. Neste papel que lhe entrego estão as instruções para o encontro que se realizará as dezenove horas e trinta minutos de sua contagem de tempo.

O advogado pegou o papel cuja consistência estranhou.Parecia um tipo de papel pergaminho,porém extremamente suave como nunca tinha visto igual. Impresso como se fosse uma fotografia tal a nitidez, nele se via um mapa e um endereço.

Conhecia o local .Ficava bem retirado da ,nos limites do município."Na sua contagem de tempo", aquela figura estranha devia ser algum louco.

-Sinto muito, Sr...?

-Ashaverus.

Ashaverus, pensou , era o nome do judeu errante, que por não ter ajudado ao Cristo carregar a cruz ,fora condenado a vagar pelo mundo, eternamente.

-Como dizia , Sr.Ashaverus, deve compreender que existem despesas para se efetuar uma diligência como a que o Sr. me pede e...

O estranho o interrompeu:

-Dr.Santini ,faça o favor de abrir o estrato bancário. Como o advogado hesitasse , insistiu :

-Por favor, apesar de parecer um pedido insólito, abra-o por favor!

Santini pegou o envelope e abriu ,já imaginando quanto iria encontrar, salvo se sua mulher não tivesse emitido algum cheque lá no interior onde estava com sua filha. Correu direto a parte final onde se lia saldo atual.Cem milhões e dez.Atônito releu.Cem milhões e dez. A sua mente trabalhava em rápida velocidade. Ia da euforia ao medo .Seria algo ilícito? Deveria ser , pois quem pagaria tanto dinheiro se não estivesse numa encrenca dos diabos.Mas o que tinha feito até agora senão defender pequenos ladrões, estelionatários e velhas corocas, que não viam a hora de botar a mão no dinheiro do marido.Nada ganhara com isso .Decidiu.Iria ao encontro.

Muito bem, Sr.Ashaverus...

Parou.O estranho não estava mais lá. A porta continuava fechada. A sineta não tinha feito barulho. Pegou o extrato e verificou o saldo.

Não havia dúvida aquela dinherama toda fora depositada na sua conta. Pegou o papel com o endereço e saiu apressado.Quem quer que pagasse tanto dinheiro por um advogado, deveria estar desesperado e certamente mataria por isto.

Milagrossamente o elevador estava no seu andar.Apertou o botão e torceu para não encontrar no térreo a figura do Sr.Osvaldo,o zelador. Certamente , iria cobrar os condomínios atrasados.Seis meses.Só para contrariar , ele não estava lá.

Correu para o carro e deu partida.Olhou pra o relógio.Sete horas .na nossa contagem de tempo.

Calculou que levaria cerca de quinze minutos até o local do misterioso encontro,tinha ,portanto tempo de sobra ,mas mesmo assim acelerava o carro. Talvez por medo .Tudo aquilo era muito estranho.Ashaverus.A porta que não ouvira abrir.O papel do mapa, a vultuosa conta bancária.

A radio transmitia o noticiário oficial do governo.Sabia que quando terminasse o noticiário geral seriam 19:30 horas .

Chegou ao centro do bairro em dez minutos.Parou em frente uma padaria na praça e resolveu verificar o mapa. O local de encontro era no fim de uma estrada de terra que saía de traz de uma favela. não tinha mais dúvidas certamente estaria tratando com perigosos marginais.

Desceu do carro para comprar cigarros. Normalmente comprava uma marca mais barata, mas decidiu por uma mais cara, Espantou-se com a sensação de estar realizando uma última vontade. Tomou um café, olhou para um bolinho de carne que lhe parecia apetitoso, mas achou por bem desistir da idéia.

Ascendeu um cigarro e deu partida no carro.Olhou o relógio.l9:20 horas.Logo encontrou a tal estrada . Pessimamente conservada ,percebeu que levaria mais tempo do que imaginara.Se estão interessados ,que esperem, pensou.

A estrada fazia uma curva em declive e ao fim ,uma imensa área plana. Era o projeto de um grande loteamento , que havia sido abandonado, certamente por falta de dinheiro.A companhia encarregada havia efetuado os serviços de terraplanagem e posteriormente iniciara o arruamento, mas era só. não havia iluminação pública e a noite sem lua ,transferia ao local um ar de deserto nuclear, com montes de lixo espalhados aqui e ali , misturados com carcaças de automóveis, enferrujados pelo tempo.Ali era o local do encontro.

Parou o carro, Saiu ,pois seria uma temeridade permanecer no seu interior ,De fora poderia aperceber-se caso alguém se aproximasse e se fosse o caso correr. Olhou em volta esperando a aproximação de algum veículo, não havia nada.Nem carro. nem viva alma , só o ruído da cidade distante.No carro , o locutor anunciava o fim do noticiário geral.Eram dezenove horas e trinta minutos.