O último transporte

A imagem da mulher gorda na janela ficou em minha mente. Com tanta coisa acontecendo, me fixei justo nela. A última nave de transporte deixava a terra, dei uma última olhada e segui meu caminho.

Eu não fui, queria morrer no chão onde nasci, agora uma terra morimbunda, onde não havia lugar para os fracos. Não estava só, tinham ficado criminosos, doentes, velhos, opositores políticos e malucos como eu.

Os cientistas tentaram uma última cartada para corrigir o clima, jogando toneladas de cianobactérias transbiológicas, combinação de DNA de bactérias fósseis com nanomáquinas, nos oceanos. No início parecia que tudo ia dar certo, depois vieram resultados inesperados, com oscilações violentas e muito rápidas no clima que acabariam tornando o planeta inviável para a vida. A previsão é de dois a cinco anos para extinção da vida superior. O tempo que me resta.

Uma esquadrilha de naves militares cruzou os céus da terra.. Não haveria mais leis, ética ou moral.

No últimos meses, me preparei armazenando armas leves, munição, alimentos e remédios, muito bem escondidos.

Anoitecia, hora do jantar. Corri para uma adega próxima, já estava sendo saqueada. Lembrei de um mercadinho meio escondido, havia uma família tomando posse.

_Olá !

Fui recebido a bala. Fim da ingenuidade; era matar ou morrer. Atirei nas lâmpadas. Uma chuva de balas traçantes veio em minha direção. Corri o que pude e voltei ao esconderijo. Não queria gastar meus mantimentos, mas não tinha alternativa. Comi e saí novamente, era mais seguro de noite. Procurei uma tocaia num edifício em ruínas, me ajeitei e passei a noite alí. No dia seguinte, enrolei uns trapos no rifle para evitar reflexos e me cobri com uns panos velhos fedorentos. Daquele ponto eu tinha uma visão formidável da entrada do mercadinho. Teria que pegar um a um para não ser localizado. O dia todo e ninguém. No fim da tarde um homem saiu rapidamente, estava só. Esperei até que parasse e atirei na cabeça. Foi um choque, fiquei horas imóvel questionando sobre a merda que estava fazendo. Ouvi ruído de latas, voltei à realidade. A mulher chamava pelo homem, não estava armada. Atirei próximo aos pés, para assustar. Queria capturá-la viva. Entrou.

Esperei a noite para entrar novamente no mercadinho. Mais uma vez, recebido a bala. Apenas crianças assustadas. Atirei no mais velho, atingi o braço de raspão, o suficiente para que largasse a arma. Restava apenas a mulher e uma criança. A mulher devia ter uns 25. Pedi uma trégua. Ela aceitou. Acerquei-me com cuidado, falando pausadamente para dar confiança a eles.

_O seu marido foi morto.

_Era meu irmão mais velho, esta é minha filha de 8 anos e este meu outro irmão. Meu marido morreu num protesto contra o governo e nossa família foi considerada terrorista.

Fiz um curativo no menino e tomei-lhe a arma, temporariamente.

A imagem da gorda não saía da minha mente...

Bye bye loneliness, hey hey happyness... cantava a mulher, acompanhada pelo menino ao violão.