Apocalipse
 
            Nossa cultura atingiu alto ponto de desenvolvimento tecnológico. É muito difícil determinar com precisão quando tudo começou, mas o advento da rede mundial de computadores acelerou o processo. As informações passaram a serem trocadas em velocidade quase instantânea. Houve um florescimento das artes, cultura e ciência. O conhecimento cresceu de forma exponencial. A cultura planetária homogeneizou-se e adotamos, para facilitar, uma mesma língua, uma mesma moeda e, após debates progressivos e acalorados, um único código civil.
            A paz foi uma luta que durou séculos. Vencemos nossas diferenças tribais e nos tornamos um só planeta, dedicado a um único objetivo: promover o bem comum. No entanto, era o progresso científico que mais nos encantava. Adotamos o procedimento de aperfeiçoar nossos corpos. A princípio, tratamos de identificar, ainda no útero, quais eram as doenças futuras do novo membro familiar e, a partir disso, começamos a corrigir as anomalias e a acentuar as qualidades físicas, intelectuais e psicológicas da criança que estava por vir.
            E por que não abreviar a infância dotando cada nova criatura de conhecimento intra-útero? Como as religiões se aproximaram do saber científico, a tese do bem comum prevaleceu. Passamos a gravar na memória latente dos nossos fetos uma gama de informações que surgiam do inconsciente e, assim, a inteligência coletiva cresceu em ritmo voraz.
            Para livrar as mulheres do incômodo que vários meses de gestação provocavam, retirávamos os seres, ainda em fase de multiplicação celular, dos delicados organismos femininos e permitíamos que crescessem em câmaras adequadas, muito mais salutares e aconchegantes, onde o mecanismo de transmissão de conhecimento podia ser efetuado com maior aproveitamento.
            A ciência permitia que ampliássemos todos os nossos sentidos e qualidades motoras com implantes cibernéticos. A moda pegou. Passamos a adequar exoesqueletos bioplásmicos que potencializam todas as funções motoras. Viramos uma super-raça. Sem doenças, extremamente inteligentes desde a fase intra-uterina, sem os incômodos que a natureza levou anos para criar.
            A própria sistemática da reprodução adquiriu contornos mais dinâmicos e interessantes. Descobrimos que o sexo está na mente. Criamos máquinas e programas computacionais que reproduziam a intensidade do prazer. O contato físico se tornou desnecessário e todas as fertilizações ocorriam ¨in vitro¨. Nossos organismos, desde a concepção, passaram a receber os implantes cinéticos e assim nossa natureza evoluiu de humana para sobre-humana.
            Infelizmente nem tudo era perfeito. Aprendemos a respeitar o meio-ambiente e a utilizar com extrema racionalidade os recursos naturais. A dinâmica do processo permitia um aproveitamento quase integral de todas as fontes disponíveis, mas com o crescimento populacional, mesmo sendo controlado durante muitos séculos, urgia que nos lançássemos ao espaço em busca de recursos novos.
            As proteínas sintéticas não supriam as necessidades fisiológicas da mesma forma que as naturais. Tentamos, inutilmente, substituí-las. O pouco de natureza humana que nos restava nos traía. Lançamos então nossa visão para outros orbes na imensidão do espaço.
            Descobrimos canais de navegação entre as estrelas. Verdadeiras correntezas onde nossas naves, construídas para viajar a assombrosas velocidades, poderiam deslocar-se em curtíssimos espaços de tempo entre os vários mundos conhecidos. Mapeamos os que poderiam sustentar vida orgânica e iniciamos a exploração. Alguns eram habitados por seres humanos; como fomos um dia.
            A questão da sobrevivência e do bem comum prevaleceu. Por que não eliminar uma cultura atrasada, que não se desenvolveria a contento, em prol de uma adiantada e fulgurante? Calamos nossas consciências e adotamos a prática de colonizar vários mundos.
            Chegou a vez de um pequeno planeta azul, muito agradável, chamado pelos habitantes de Terra. Durante séculos temos enviado sondas que monitoram o crescimento da população e o avanço da cultura. Atingiram um estado perigoso, inclusive com a produção de armamento nuclear e lixo altamente tóxico. Manifestam pouca preocupação ambiental, reproduzem-se de forma alarmante e ameaçam esgotar recursos que seriam muito úteis para nós.
            Apesar de enviarmos sondas que inocularam psiquicamente questões ligadas à ética da preservação a vários líderes, o efeito desejado não foi sentido. O planeta ameaça degenerar-se e galgar um processo irreversível. Se não agirmos, transformar-se-á em um deserto. A população já está condenada. Calculamos que não faríamos mal em acelerar o processo. Deve-se encurtar a vida dos seres inferiores para que não sofram mais.
            Sondas foram enviadas e vírus nocivos se espalharão pela atmosfera atingindo tão somente os humanos. Em poucas décadas o planeta se revigorará e estará pronto pra um uso racional. Para eles será o apocalipse, para nós, uma nova esperança...