O Último Quadro de Tinta

O mundo em 2080 era silenciosamente brilhante. Os prédios se auto limpavam, as ruas eram patrulhadas por drones educados e os cafés sabiam exatamente como você queria o cappuccino antes mesmo de você pedir.

Mas algo havia morrido. E não era só o improviso — era a emoção.

A arte, que por séculos havia sido o espelho torto da alma humana, agora era impecável. Quadros digitalmente pintados com perfeição de luz, sombra e composição. Poesias geradas por algoritmos que misturavam Pessoa, Drummond e Gibran em segundos. Romances com arcos narrativos matematicamente envolventes.

E, mesmo assim, ninguém mais chorava diante de uma tela. Ninguém mais sentia um nó na garganta ao ouvir uma música.

Foi nessa era que Seu Osvaldo, um velho artista de 72 anos, decidiu resistir.

Morava em um bairro esquecido pelas atualizações do sistema urbano. Seu ateliê era pequeno, coberto de telas e papéis — manchas de tinta por todo canto, um cheiro de óleo e café velho no ar.

Seu Osvaldo não usava IA. Não por limitação, mas por escolha.

— “A arte que não erra, não respira”, ele dizia.

A mudança começou numa manhã de setembro, quando Ayla, uma jovem de 19 anos, encontrou um quadro dele numa feira de trocas livres. Era o retrato de uma mulher de olhos fechados, cabelos molhados pela chuva, como se chorasse por dentro.

Ela ficou parada diante do quadro por longos minutos. Um aperto cresceu no peito. Aquilo não era bonito, nem tecnicamente perfeito. Mas era real. E por alguma razão inexplicável, Ayla começou a chorar.

Na etiqueta, havia um endereço. Naquela mesma tarde, ela bateu à porta de Osvaldo.

— “O senhor... pintou aquilo?”, perguntou, com os olhos ainda marejados.

— “Acho que sim. Ela também chorava?”, sorriu ele, tirando os óculos para limpar as lentes.

Ela assentiu.

— “Me ensina?”

Seu Osvaldo não hesitou. Pegou um pincel velho, uma tela em branco e apontou.

— “Pinta tua tristeza primeiro. A alegria é fácil. A dor é que revela quem você é.”

Sem que esperassem, surgiram outros. Bruno, um ex-programador de interfaces neurais, apareceu com blocos de madeira. Queria aprender xilogravura. Luciana, uma influencer que abandonou as redes automatizadas, passou a escrever à mão. E Elias, um músico que foi recusado por todos os bots de produção, decidiu tocar no metrô da Zona Central — onde ninguém parava, mas ele tocava mesmo assim.

Começaram a se encontrar em praças, garagens, becos. Improvisaram exposições. Fizeram saraus com microfone aberto. A regra era simples: nada de IA. Tudo precisava vir da mão, da voz, do erro.

E, aos poucos, começaram a ser chamados de “loucos”. Depois, de “puristas”. Depois… de algo novo:

“Os Artesãos da Alma.”

Numa dessas noites, no velho ateliê, todos estavam reunidos em volta de uma lareira elétrica (a única coisa automática permitida ali). Luciana leu um poema, emocionada:

“Escrevo torto,

mas com o peito.

Meu verso não rima,

mas sangra.”

Houve silêncio. Depois, aplausos. E lágrimas.

— “Você percebe?”, disse Ayla. “Eu sinto isso. De verdade.”

Seu Osvaldo sorriu, segurando um retrato inacabado.

— “A arte voltou a respirar.”

O movimento cresceu. Começaram a surgir pequenos centros culturais em antigas estações de trem, escolas abandonadas, galpões sem uso. Jovens trocavam seus assistentes criativos por lápis, pincéis, cadernos.

As grandes corporações tentaram silenciar o movimento, acusando os Artesãos de retrocesso, de sabotagem emocional, até de “propagação de imperfeição intencional”.

Mas era tarde. As pessoas estavam começando a sentir de novo.

Em 2083, Seu Osvaldo morreu em seu ateliê, segurando um pincel, diante de uma tela onde havia apenas uma frase escrita a carvão:

“A arte é o último lugar onde a alma se esconde.”

Seu funeral não teve inteligência artificial. Mas teve lágrimas, música feita na hora, e um coral que desafinava lindamente. Como ele gostaria.

E naquela noite, em sua homenagem, ninguém acessou a internet.

Pintaram. Escreveram. Tocaram. Amaram.

Erraram.

E foi perfeito.

marcostextos
Enviado por marcostextos em 19/04/2025
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