O ABRIGO (PARTE FINAL)

 

*O SEGUNDO DIA*

 

Após as apresentações, o pequeno grupo de refugiados ficou em silêncio. Todos tentaram falar pelos celulares com parentes, amigos e conhecidos, porém isso se mostrou inútil, pois as paredes impediam os sinais de telefonia móvel.

 

Ao fim de um bom tempo olhando o celular, um cabisbaixo Tomás finalmente fala.

 

- Talvez as antenas geradoras de sinal tenham sido destruídas...

 

Ninguém ousava sair do porão por medo de simplesmente evaporar. Como saber se a casa toda não estava cheia da nuvem mortal?

 

Quando o fenômeno ocorreu a tarde estava apenas começando. As pessoas no porão evitam falar umas  com as outros. Todas perdidas em suas preocupações. 

 

O tempo passa e todos terminam dormindo no chão, menos a escritora idosa que dormiu no velho sofá, que Tomás vinha usando para tentar relaxar.

 

O dia amanhece no porão abafado.

 

- O que vocês acham que aconteceu? Será que foi só aqui ou também ocorreu em outros lugares? – Tomás perguntou, mas não esperava obter muitas respostas, pois percebia o semblante tenso e angustiado das pessoas.

 

- Não tenho a menor ideia do que pode ter causado isso, só queria ir embora daqui. Pode ter sido um vazamento de alguma substância, sei lá. Deu até saudade das aulas da universidade agora ... Todo mundo deve ter evaporado por lá.

 

- Eu acho acho que foi um atentado terrorista. Podem ter usado uma arma misteriosa, algo novo que evapora as pessoas. Agora, para ser bem sincero, nunca ouvi falar de uma arma assim.

 

- Ah, pode ter sido um tipo de ataque extraterrestre...  Prosseguiu o estudante universitário...

 

- Não sei o que foi que causou tudo isso e nem como ainda estamos vivos. – Izabel falava mais para si do que para os outros.

 

- Fico pensando porque nós escapamos, será que isso não é uma espécie de provação? Um desígnio divino?

 

- Calma padre! Não tem porcaria nenhuma de provação! O que tem é que houve um maldito ataque e um monte de gente morreu.

 

- Sou pastor e não padre! Filho, sei que você é policial e tem a tendência a achar que tudo se resume à violência, mas ...

 

- Ah não! Que provação é essa que para acontecer tem que morrer um monte de gente? Eu só ia para uma aula, não estava indo para provação nenhuma!

 

- Calma, gente! Agradeço muito a Deus o fato de estar viva ... Se Isabel não fosse mais rápida com a cadeira de rodas ... Mas vamos manter a calma e ficar unidos. Vamos pensar em uma alguma coisa para fazer.

 

*O TERCEIRO DIA*

 

O dia amanheceu trazendo uma preocupação terrível: o que seis pessoas iriam comer e beber?

 

Quando todos entraram no porão haviam lá dois pacotes de biscoito, algumas barrinhas de cereal e uma garrafa de água. Estavam ali apenas porque Tomás não queria subir para pegar alguma coisa para beliscar. Ele estava lá para curtir a sua tristeza quando tudo começou e jamais imaginaria que iria ficar preso naquele cubículo com o risco de morrer de inanição.

 

As barras de cereais, os biscoitos e a garrafa de água foram consumidos rapidamente e todos contemplavam a fome.

 

- Eu estou morrendo de fome, gente! Tem quase dois dias que não como nada. O que nós vamos fazer? – Alex falava isso e olhava para o policial.

 

- Acho que podemos aguentar mais um pouco ...Acho extremamente arriscado ir lá fora – Leandro era um homem alto, de voz forte e com uma presença física que impunha respeito.

 

- A gente pode aguentar um dia ou dois, mas e depois? Vamos comer o fígado uns dos outros? Lá em cima minha geladeira e a dispensa estão cheias. Acho que deveríamos arriscar subir e pegar algumas coisas.

 

- Acho muito arriscado. E se a sua casa estiver cheia da nuvem? – Percebia-se o medo na forte voz Isabel.

 

- Sair e morrer pela nuvem ou ficar e morrer de fome? É uma decisão não muito difícil porque o fim é um só, a morte. Será que não há um meio de vermos como está lá em cima?  Ponderou Augusta Stein.

 

- Dona escritora, acho que sei como podemos ver lá fora. Mas aviso logo que não vai dar para ver muita coisa.

 

- E qual é a ideia? Não vai colocar a gente em perigo? Perguntou Izabel.

 

- A gente abre um pedacinho da porta do porão e coloca um celular com a câmera ligada por alguns segundos e depois tira rapidamente. Tenho um suporte para celular comigo, nem a mão de quem vai colocar irá se expor. Acho que vai dar pra saber se tem alguma coisa de nuvem na casa.

 

*O QUARTO DIA*

 

Quando os refugiados viram que não havia nenhuma nuvem na casa, rapidamente saíram do porão e vedaram todas as janelas e portas. Para a sorte de todos, havia muita fita adesiva, guardada em uma pequena caixa, esquecida pela ex-esposa de Tomás. Pano e algodão ajudaram a vedar tudo

 

Havia energia energia e comida para vários dias, em compensação os celulares estavam sem sinal. Todos têm alguém lá fora com quem se preocupar, Tomás percebe, no entanto, que ninguém olha mais os celulares com a mesma frequência de antes.

 

O pequeno grupo de pessoas está mais confiante. A convivência forçada obrigou-os a se conhecerem melhor.

 

- Dona escritora, que tipo de livro a senhora escreve? Romances açucarados?  Leandro perguntou com um certo desdém na voz.

 

- Meu filho, só uso açúcar nas minhas histórias se ele estiver envenenado ou então causar alguma mutação terrível!

 

O universitário não conseguiu conter um risinho de lado. Escutar aquilo dito por uma senhora idosa em cadeira de rodas era muito divertido e inusitado.

 

- Eu escrevo livros de terror e suspense. Aliás, policiais vivem morrendo nas minhas histórias...

 

Todos perceberam a resposta sarcástica e terminaram rindo. Até Leandro riu.

 

Pedro Pastor liga a televisão e também não há muita coisa. Apenas alguns canais, que parecem operar no automático, porém estes só mostram filmes e documentários, nada além disso.

 

- Gente, que coisa absurda! Olhar um programa na televisão que mostra um mundo que talvez não exista mais. Isso tudo dá uma sensação muito estranha — Izabel falou tristemente.

 

Todos ficaram em silêncio...

 

*OS OUTROS DIAS*

 

Treze longos dias haviam passado. Isolados do resto do mundo, os refugiados se conheceram melhor. Descobriram que Leandro, o policial, gostava de cuidar de plantas, que Pedro Pastor era casado e tinha cinco filhos, que Izabel nutria uma paixão secreta pelo namorado de uma amiga, que Alex colecionava carrinhos vermelhos, que Augusta era neta de um judeu que havia fugido para o Brasil, que Tomás era contador, mas que queria mesmo era ter sido advogado.

 

Tomás nunca tinha sido um homem muito religioso, porém várias vezes já havia se flagrado concordando com Pedro Pastor quando ele começava a falar em “plano de Deus” e outras coisas. “Não dá pra gente ficar aqui para sempre”, essa frase vinha martelando a sua mente nos últimos três dias.

 

Usando a mesma estratégia do celular no porão, o grupo de refugiados filmou rapidamente o que havia fora da casa e verificou que, parecia, não haver vestígio da nuvem assassina.

 

- Gente, sair de um porão para ficar dentro de uma casa é uma coisa, mas sair para um espaço aberto, onde não temos como saber o que existe na próxima esquina, é algo completamente insano. – Argumentou Izabel.

 

O medo falou mais alto e todos decidiram ficar mais tempo na casa.

 

Vinte e oito dias transcorreram. A comida acabou. Ninguém mais olha para os celulares na vã esperança de receber alguma ligação ou captar um sinal, a televisão mostra apenas estática. Todos sabem que, em algum momento, a energia também vai faltar.

 

Eles têm que sair da casa.

 

Está claro, para todos, que uma morte rápida na nuvem é uma alternativa melhor do que morrer de fome.

 

Pedro Pastor solicita que todos façam um minuto de orações. De mãos dadas o grupo escuta o choro baixinho de Izabel.

 

Lentamente Tomás abre a porta de sua casa. O sol da manhã invade o ambiente da sala onde estavam.

 

Eles saem para a rua.

 

O pequeno grupo de pessoas anda devagar, todos está tensos. O céu está claro e nem um sinal da nuvem mortal é percebido. As ruas estão sujas e empoeiradas. Nenhuma pessoa é vista, sequer um gato ou  cachorro. A rua está silenciosa e apenas o barulho do vento é escutado de vez em quando. 

 

Decidem entrar nas casas. Nenhum indicio de vida. Supermercados, igrejas, escolas, nada é visto, a não ser muitas baratas e outros tipos de insetos. 

 

- Deus do céu! A cidade está um caos! Tomás tem a voz embargada ao falar.

 

O que se descortina à sua frente é um espetáculo de degradação: restos de incêndios, carros abandonados ou destruídos, ruas alagadas e sujeira para todo lado. Nada ali indicava a presença de seres humanos.

 

Sentada em sua cadeira de rodas, diante de um cenário de desolação, Augusta Stein lembra-se das histórias que seu avô contava: eles precisam manter a esperança.

 

Tentando dar um tom de serenidade em sua voz ela, por fim, fala aos seus companheiros de desventura.

 

- Tem gente que trabalha em porões de shoppings, em instalações subterrâneas ou que estava em cabines pressurizadas de aviões, sei lá. Tenho certeza que há mais pessoas. Acho que a nuvem se espalhou de maneira tão rápida que as pessoas não tiveram a menor chance, mesmo assim, tem mais gente por aí!

 

 

Dois dias se passaram. O grupo de sobreviventes está tenso e angustiado. Decidem que ninguém irá procurar por familiares e amigos sozinho. 

 

Cansados de andar eles param para descansar e comer alguma coisa em uma pequena praça. O gramado, que antes emprestava beleza àquele lugar, está alto e descuidado. Pedro Pastor distribuía sanduiches quando o inusitado aconteceu.

 

Dobrando uma esquina, estava um grupo pessoas. Eles não eram muitos. De longe alguns deles acenam.

 

Nesse momento Tomás sente que uma lágrima caiu de seus olhos ... Eles não estavam mais sós.

 

*EPÍLOGO*

 

Muito longe dali, alheio ao que ocorria no pequeno planeta azul, um cometa se afasta arrastando a sua cauda de milhões de quilômetros. Se um dia ele retornar milhares de anos já terão se passado...  

 

 

 

♦ Este conto teve duas inspirações. Uma foi a obra  de H.G Wells intitulada "Os dias do cometa", a outra foi uma técnica de dinâmica de grupo chamada "O abrigo subterrâneo".

 

 

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 31/03/2025
Reeditado em 31/03/2025
Código do texto: T8298506
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