Histórias de (supostos) super-heróis em Salvador (2)

A repórter Laura Macedo havia sido designada para investigar o chamado “Mendigo de Aço”. Contudo, ela logo direcionou seus esforços para as duas vítimas fatais no ônibus onde houve o assalto evitado pelo morador de rua com superpoderes. Entrevistou familiares de um cobrador que havia sido jogado para fora do veículo em movimento, junto com um dos bandidos. Também conversou com a deprimida mãe da criança atingida por uma bala que teria ricocheteado no corpo do super-homem.

A atitude de Laura desagradou seus superiores. E numa manhã em que chegava à redação, foi chamada à sala por Eric Almeida, o editor. Eric gostava de jornalismo investigativo, de repórteres destemidos, de reportagens que expunham o lado mais desagradável dos eventos, das obras jornalísticas que desafiavam o poder. Mas ele se dizia um “jornalista pragmático”. Portanto, mais importante do que tudo isso era a manutenção do seu emprego. Laura, no seu entender, estava produzindo obstáculos a essa postura, o que poderia colocar em risco seu uísque no fim de semana.

- Laurinha! – ele disse, assim que a repórter entrou em sua sala. – Por que parou com as reportagens sobre o Mendigo de Aço?

- Eu não parei! Na edição de amanhã...

- Parou, sim. – ele a interrompe. – Eu li sua reportagem de amanhã. São dois protagonistas e nenhum deles é...

- Eu ando conversando com umas pessoas e...

- Nenhum deles é o Mendigo de Aço.

- Senhor, duas pessoas morreram...

- Laura, não queremos receber cartas enfurecidas dos leitores.

Eric explicou que os jornais estavam dispostos a apoiar o Mendigo de Aço incondicionalmente. A população estava chocada com a violência e o surgimento de “cidadãos de bem” com poderes para supostamente proteger a sociedade era muito bem-vindo. Críticas a esses vigilantes poderiam resultar em leitores irritados e, por consequência, em queda de receitas.

Eric sabia que Laura era mais idealista do que pragmática. Então, teve que aplicar um método que ele aprendeu na época em que cobria a polícia. Trata-se de uma espécie de retaliação dos chefes contra detetives desobedientes: tirá-los das ruas e colocá-los em trabalhos burocráticos.

- Vou te colocar em outra pauta. Se você teimar em ir atrás dessas supostas vítimas, vou te tirar da editoria de cotidiano e te colocar em obituários, em que você não vai precisar levantar a bunda da cadeira para nada.

O editor deu uma pasta a Laura com fotos, recortes de jornais e documentos. Ela abriu e viu a imagem de um cara fantasiado de escorpião socando o rosto de um dragão, com o Elevador Lacerda ao fundo.

- O Escorpião Vermelho? Ele sumiu! – disse Laura.

- Sumiu há vinte anos. Verdade! – afirmou Eric, enquanto andava pela sala. – Mas conseguimos encontrá-lo. O endereço está na pasta. Ele vive uma vida solitária e pacata.

- Deixa eu adivinhar. – Laura levantou e mexeu o cabelo com um ar de ironia. – Quer que eu faça uma reportagem sobre a vida desse grande herói. E quem sabe, reabilitá-lo?

- Essa é a minha garota. Menos idealismos e mais realismos, Laura.

- Realismo? Que tal este realismo? O dragão que ele derrubou há vinte anos caiu em cima...

- Opa! Opa! Opa! – mais uma vez Eric lhe interrompe. – Laura, apenas siga a pauta. Olha, eu até gosto da sua postura. Mas não é um bom momento. A hora é de elogiar os heróis. O saldo foi positivo. O Escorpião Vermelho mais salvou do que qualquer outra coisa. Tente entrevistá-lo. Se não conseguir, faça como Gay Talese fez no perfil sobre Frank Sinatra.

Laura saiu da sala de Eric e foi para casa. A reportagem começaria em breve e ela estava com muita vontade de focar nas vítimas colaterais do Escorpião e não no seu heroísmo. Todavia, a ideia de ficar sentada escrevendo obituários de cinco linhas causava nela profundo terror. Então, ela estava disposta a obedecer.

Quando chegou ao seu condomínio, o porteiro deu a notícia.

- Ricardo esteve aqui de novo, dona Laura.

- Você não deixou ele entrar, né?

- Claro que não. Ele parecia irritado. Eu disse que você estava viajando.

- Obrigada, querido.

Laura chegou em seu apartamento. Nem tirou a roupa e deitou na cama. A preocupação com Ricardo era como uma neblina que obnubilava seus pensamentos sobre a pauta imposta por Eric. Ricardo era seu ex-namorado. Viviam felizes, ela lembrou, até que um dano colateral provocado por um super-herói soteropolitano atingiu a irmã dele. Depois disso, a relação descambou. Ricardo começou a usar crack, ficando agressivo e paranoico. Ele passou a fazer parte de uma milícia que se dizia “caçadora de heróis”. Seu ódio por super-heróis o levou a maltratar Laura, a quem acusava de ser “serviçal do sistema capacho dos heróis”, só porque ela trabalha no jornal que glorifica heróis. Ricardo foi ficando mais agressivo até atingir a violência doméstica. Laura saiu da casa dele e foi viver sozinha. Mas Ricardo descobriu onde ela mora e de vez em quando tenta encontrá-la no condomínio. Depois das reminiscências, Laura dormiu.

No dia seguinte, ela nem passou na redação. Foi direto para a casa do Escorpião Vermelho. Ele vivia na rua direta de Cosme de Farias, um bairro violento e dominado pelo tráfico de drogas. Porém, coincidência ou não, na rua onde ele vivia quase não havia violência. Por alguma razão, e os moradores não sabiam qual era, os bandidos temiam aquele lugar. Tem sido assim há uns vinte anos. Laura pesquisou e constatou tudo isso e por isso estava super tranquila ao perambular por ali.

Cosme de Farias também era um bairro pobre. Não por acaso o Escorpião morava em um apartamento dentro de um prédio xexelento. Laura entra e conversa com a porteira.

- Bom dia! Sabe se o homem do apartamento 18 está? – ela questiona.

- Bom dia! Ele está e não está.

- Quê?

- Te confundi, né?

- É, mas eu...

- O homem do 18 é uma pessoa paradoxal. – disse a porteira, que se identificou como Andreia. – Eu o vejo assim.

- Por quê?

- Quem é você?

- Laura Macedo, sou jornalista.

- Eu sou matemática, além de porteira.

- O que está fazendo num lugar desses? – Laura questiona, pensando numa outra pauta.

- Sabe como é? A cidade não dá muita oportunidade. – Andreia disse isso e baixou um pouco a cabeça, como se estivesse aflita. A verdade é que tocar nesse assunto traz de volta alguns traumas, como alunos marginais de escolas públicas.

- Por que você diz que ele é paradoxal?

- Ele é aflito e alegre, cálido e frio, amoroso e indiferente e, o mais importante, ele está em casa, mas não está em casa. Tudo isso ao mesmo tempo.

- Suponho que ele está em casa agora. Contudo, não está em casa.

- Exato!

- Ele está em casa, porém não quer que ninguém saiba que ele está.

- Você é esperta, moça.

- Eu só quero uma entrevista com ele.

Laura subiu para o primeiro andar. Andou até a porta do apartamento 18. Bateu e nada. Bateu de novo. Nada.

- Escorpião, eu sei o que o senhor vive aí. O senhor é um herói.

Alguns minutos se passaram e Laura estava prestes a ir embora, quando a porta abriu.

- Quem é você e o que você quer? – uma voz roufenha falou atrás da porta entreaberta.

- Eu... estou...

- Como sabia onde eu moro? – o homem estava intimidante.

- Só quero conversar sobre sua carreira de herói...

- Vai embora e nunca mais volte aqui. Não sou quem você procura. Está me confundindo com outra pessoa. – disse o suposto herói antes de bater a porta na cara de Laura.

***

No dia seguinte, Laura voltou ao prédio. Desta vez, Andreia estava desenhando algo intrigante no papel. Parecia o desenho de um androide ou de uma pessoa com armadura robótica.

- Aqui tem poucos clientes. – disse Andreia. – Preciso me distrair. Ah, ele não está em casa. Agora eu estou sendo literal.

- Você disse que o cara do apartamento 18 é paradoxal. – questionou Laura.

- Sim, eu disse. – afirmou Andreia. – Veja esse mecanismo na mão da máquina, uma piscadinha e apaga-se os últimos minutos da memória mais recente da vítima...

- Interessante. Mas você sabe o nome dele...

- Ele se identifica como E. – disse Andreia.

- Por que ele é paradoxal?

Andreia explicou que a postura de E, o suposto Escorpião, era contrastante em relação a duas concepções distintas. Em relação ao coletivo, E era afável, protetor, heroico, aberto; em relação ao indivíduo, ele era indiferente, anti-heroico, fechado. Laura teorizou que essa era a postura de um autêntico herói. Mesmo que o Escorpião salve uma única pessoa, ele entenderá que está fazendo isso pelo coletivo. Não é algo pessoal. Na verdade, a visão de heroísmo dele estava ligada à impessoalidade.

- Você sabe aonde ele foi? – perguntou Laura. – O que faz da vida?

- Não faço ideia. – respondeu Andreia. – E se eu soubesse, não ia dizer. São coisas muito pessoais.

- Sabe quando ele volta?

- Também não sei.

Laura esperou duas horas e nada do suposto Escorpião. Cansou de aguardar, pegou seu carro e foi para casa. No trajeto, notou que um carro parecia estar seguindo-a. Acelerou o veículo, entrou em alguns becos e despistou o suposto perseguidor. Chegou ao condomínio em segurança.

***

Pelo terceiro dia seguido, Laura foi à rua direta de Cosme de Farias, para tentar entrevistar E. Chegou mais cedo que o normal. Mais uma vez, ela topou com Andreia.

- Você é mesmo uma jornalista. – disse Andreia. – É persistente.

- Você não tem folga? – perguntou Laura.

- Não se pode sair do lugar, senão o caos volta.

Foi uma frase que deixou Laura pensativa. Mas ela estava preocupada com outra coisa. Antes que ela perguntasse sobre E, Andreia respondeu.

- Hoje você deu sorte. Ele foi comprar pão e já volta. – disse Andreia.

Laura saiu e ficou na entrada do prédio. A alguns metros, alguém a observava de dentro de um carro. Ela havia sido seguida. Desta vez não percebeu. Contudo, quinze minutos depois, ela conseguiu o que queria. Ficou frente a frente com E. Era um homem melancólico. Olheiras salientes, vestes humildes e surradas, bafo de bebida alcoólica, chinelos.

- Por que você não me deixa em paz? – questionou E. – Não falo com ninguém, muito menos com jornalistas.

Ele foi subindo as escadas e Laura foi atrás tentando conversar.

- Sua história pode inspirar uma nova geração, mostrar o que é ser herói além dos superpoderes.

- Pelo amor de Deus, você tirou essa frase de algum livro idiota de autoajuda? – perguntou sarcasticamente E. – Vocês, jornalistas, só vivem propagando a narrativa de que super heroísmo é tudo de bom. São uns mentirosos, cretinos e omissos!

- Eu gostaria de conversar sobre aquele dia. Quando o dragão caiu em cima daquelas pessoas. – disse Laura.

Quando Laura falou isso, E estava prestes a bater a porta na cara dela, de novo. Mas desistiu.

- Eu estava escrevendo uma reportagem sobre duas vítimas fatais do Mendigo de Aço, enquanto ele tentava ou supostamente tentava impedir um assalto no ônibus. O editor me impediu de publicar. Você tem razão. Há uma condescendência absurda com os super-heróis.

- Entra aí, menina.

Laura entrou. O apartamento de E era esquálido.

- Se o seu editor é um bosta, como vai publicar as coisas que eu disser?

- Nem que eu tenha que montar meu blog.

O homem admitiu que era o Escorpião Vermelho. Que havia derrotado um dragão que parecia o Godzilla no bairro do Comércio em Salvador. O problema é que ele deu um golpe na criatura e ela acabou caindo e esmagando dezenas de pessoas. O dragão havia matado cinco pessoas. O Escorpião acabou matando, acidentalmente, umas 30 pessoas. Seu heroísmo foi mais catastrófico que o próprio kaiju. Ainda assim, o Escorpião Vermelho foi glorificado como herói. Mas E ficou traumatizado, deprimido e horrorizado. Ele abandonou sua armadura de escorpião e nunca mais usou os poderes. Aliás, mesmo que ele tentasse, não ia conseguir. Contou também que adquiriu uma pequena fortuna fazendo “biscates” em que seus poderes eram necessários. Entretanto, ele não quis dar detalhes. Diz que só sai de casa para o supermercado e que usa do seu dinheiro guardado para ajudar os familiares das vítimas de sua imprudência.

- Faz anos que não durmo direito. – disse E. – Tentei me entregar. No entanto, ninguém quer me prender. Ninguém quer punir um suposto super-herói.

O argumento é que, no fim das contas, o Escorpião evitou mais potenciais vítimas. O kaiju matou cinco. Porém, se o Escorpião não o atingisse, ele provavelmente mataria muito mais. Foram uns 35 mortos. Poderia ter sido centenas se o Escorpião não entrasse em ação.

- Eu não sou herói. – ele afirmou.

Laura levantou e o abraçou. Conversaram por horas. Ela garantiu a E que faria de tudo para que todo o seu depoimento fosse publicado, ainda que ela tivesse que escrever um livro para isso. Marcaram para conversar diariamente sobre o assunto. Discutiriam sobre a origem de seus poderes, seu começo de carreira, entre outras coisas.

Despediram-se e ela foi embora. Quando ia saindo, percebeu que alguém a esperava na entrada. Era Ricardo, seu ex.

- Como sabia que estava aqui? – ela perguntou.

- O cara mora nessa merda de lugar? – ele disse, parecendo estar alterado. – Você poderia me trocar por coisa melhor...

- Não é isso que você está pensando...

Ricardo puxa a arma.

- Onde ele mora, amor?

- Ricardo... – Laura gaguejava, não conseguia terminar as frases.

Andreia viu a confusão e iria se meter. Todavia, Ricardo apontou a arma para ela. Depois, obrigou as duas a entrarem para dentro do prédio.

- Não se mete nisso, vagabunda. – ele disse para Andreia. – Laura, me dá a bolsa. Quero ver a foto do meu rival!

Ricardo vasculhou o celular e a bolsa. Acabou encontrando a pasta com as informações do Escorpião. Sua raiva se amplificou quando ele leu as informações.

- Se fosse um cara normal... – disse Ricardo, com um cenho perturbado, que misturava raiva e tristeza. – Mas a porra de um super?

- Ricardo, não é isso que você...

O ex deu outro tapa nela.

- Qual é o número do apartamento dele, Laura?!

- Eu não sei... – disse Laura, chorando.

Ele deu coronhadas e socos nela.

- Diga você, porteira. O número do apartamento do cara! Ou eu mato essa traíra. Nem pense em me fazer de bobo!

Andreia disse. E Ricardo subiu as escadas arrastando Laura pelos cabelos.

- Vou acabar com esse desgraçado na sua frente. ME TRAIR COM UM SUPER!? ELES MATARAM A MINHA IRMÃ! VOCÊ NÃO TEM RESPEITO!?

- Nós não temos mais nada, Ricardo!

Ricardo bateu com truculência na porta do apartamento de E, que a abriu. O ex-namorado violento mandou Laura entrar. Dentro, ele começou a agredir o Escorpião, que ficou assustado.

- Vocês, super-heróis, são aberrações... – gritava Ricardo. – Mataram minha irmã.

O Escorpião com o rosto sangrando questionou:

- Sua irmã estava entre as vítimas no incidente do dragão?

- Não estava! – Laura berrou. – Usa seus poderes.

Quando escutou isso, Ricardo disparou na barriga do Escorpião. Depois atirou várias vezes, matando-o.

- Isso é herói? – Ricardo perguntou com ar de deboche. – Se eu soubesse que o seu namorado era herói, eu viria com minha turma. Mas eu nem precisaria.

O agressor voltou a atacar Laura, que cobriu a cabeça para se proteger. Logo em seguida, ela parou de sentir os golpes. Quando abriu os olhos, viu Ricardo morto no chão. Havia um buraco grande na sua barriga. Dava para ver o chão. Sangue e entranhas para todo lado. Parece que ele foi atingido por um raio laser ou coisa parecida. Laura levantou o rosto e olhou para a porta. Havia uma mulher vestindo uma armadura robótica idêntica àquele desenho de Andreia que ela tinha visto no dia anterior.

O ser metálico mostrou o rosto. Era Andreia. Laura ligou os pontos. Não tinha como aquela área ser pacífica por causa do Escorpião. Ele não tinha mais os poderes. Era outra coisa.

- Não era apenas um desenho. – disse Laura.

- Não era. – afirmou Andreia, que abriu a mão direita na direção de Laura.

- Você vai...? – questionou Laura.

- Eu preciso proteger minha identidade. – disse Andreia. – Só assim continuarei evitando o caos. Você é jornalista. Será só uma piscadinha.

Laura entendeu por que os moradores não sabiam a origem da pacificidade daquela rua. Depois ela só viu a luz emanando da mão de Andreia.

***

Dois dias depois, sua reportagem foi publicada. Não saiu do jeito que o Escorpião queria. Ele foi glorificado como super-herói e seu último ato teria sido se sacrificar para salvar a repórter do namorado abusivo. Nada sobre sua falta de cuidado no incidente que vitimou várias pessoas foi citado.

Laura voltou ao local, o prédio, onde ocorreu a tragédia. Algo a incomodava.

- Não sei, mas algo me diz que não foi o Escorpião que me salvou. – disse Laura para Andreia.

- Claro que foi ele. – respondeu Andreia. – Quem mais poderia ter sido?

- Não lembro. Sei que foi outra coisa.

- O único herói aqui era ele. – disse Andreia, sorridente. – Você sobreviveu! Isso também importa bastante. Não faz diferença quem foi o verdadeiro herói.