Histórias de (supostos) super-heróis em Salvador (1)

Epifânio voltava de seu trabalho em um escritório de direito tributário localizado na Pituba. Ele esperava no ponto de ônibus junto com outras três pessoas. Duas mulheres – uma com uma criança de colo – e um homem sentado com roupas rasgadas, rosto com cicatrizes e um odor corporal nauseabundo, como se estivesse décadas sem tomar banho. Dez minutos, nada de transporte público. Epifânio olhava várias vezes para o homem que parecia um mendigo. Ele temia se tornar uma vítima de violência. Havia uma onda de criminalidade em Salvador e todo mundo morria de medo. Ninguém se sentia seguro nem dentro de casa. Epifânio lembrou do homem que disse na televisão: “meu medo é ir ao banheiro e um marginal sair do vaso sanitário para anunciar o assalto”.

Mais quinze minutos se passaram. Epifânio já olhara para o mendigo umas 60 vezes. O ponto de ônibus tinha dezenas de pessoas – todas reclamando do prefeito e xingando o motorista do transporte que ainda não veio. Impaciente, Epifânio tirou da mochila um livro, “A Idade da Razão”, de Sartre. Há dias ele tenta ler esse livro. Nunca sai da primeira página. O diálogo inicial espirituoso o cativa.

Mais dez minutos se foram. Algumas pessoas desistiram do ônibus e foram buscar meios de transporte alternativos. O mendigo continuava no mesmo lugar. Epifânio também mantinha-se na mesmice: não saía da primeira página de “A Idade da Razão”. Então, contrariando o enredo monótono, o mendigo levantou. Começou a pedir esmolas. Parece que esse homem estava esperando o ponto de ônibus encher para agir como pedinte. É como se ele soubesse que as pessoas costumavam mofar ali.

Epifânio pensou em fazer um jogo de passo e corpo para desviar do mendigo e evitá-lo. Mas não deu. O mendigo chegou nele.

- O senhor intelectual pode me dar qualquer moeda? Só quero comprar pão. Sinto fome.

Epifânio sentiu o bafo de bebida misturado com o odor fedorento de quem não joga água no corpo há algum tempo. Ele pensou em dizer, como em “Idade da Razão”: “eu acho que você sente sede, amigo.”

Porém, não disse.

- Tome 1 real. – disse Epifânio, depois de meter a mão no fundo do bolso.

- Obrigado!

Epifânio se sentia um merda naquele momento. Ele era zoado como um cara sem atitude no escritório. Era o cara que claudicava, que não conseguia ser proativo com os clientes, que tinha boas ideias para enfrentar o maluco sistema tributário brasileiro, mas não elaborava uma proposta assertiva. Era o cara que não decidia que filme ver no cinema.

Sua autorreflexão foi brevemente interrompida pela conversa de dois caras. Eles conversavam sobre “jogos divertidos”. Epifânio escutou os nomes deles: Paulo e Pedro. Os dois vestiam uma blusa branca com gola e bermuda. E estavam com uma única mochila. Parecia que estavam voltando de um clube de tênis. Usavam luvas, Deus sabe lá por quê.

- ... penso que um jogo em que as regras vão sendo desenvolvidas ao longo da partida é mais apropriado. – afirmou Paulo.

- Regras precisam ser antecipadas e rígidas para evitar “viradas de mesa”. – retrucou Pedro.

- Basta elaborar um mecanismo que impeça...

A conversa foi interrompida pelo mendigo que estava pedindo esmola.

- Uma moeda, por favor! Quero comprar pão.

- Quer nada! – respondeu Paulo. – Eu sei o que você quer!

- Que tal um jogo? – perguntou Pedro ao mendigo. – Se você adivinhar o nome e o CPF de todas as pessoas neste ponto, eu te dou mil reais.

- Vocês são dois malucos! – disse o mendigo.

- E você precisa de um banho. – afirmou Paulo.

Logo após o diálogo, o mendigo pareceu estar um tanto irritado. Epifânio viu ele segurar com força uma barra de ferro que sustentava a cobertura e os assentos da parada de ônibus. Depois que o mendigo voltou a sentar no chão, Epifânio olhou de novo o local onde estava a mão do infeliz e viu que o ferro estava amassado, como se ele tivesse feito isso naquele momento. Epifânio não deu muita atenção a isso. De antemão, descartava hipóteses aparentemente impossíveis.

Logo após essa cena, o ônibus enfim chegou. Todos que estavam no ponto entraram – Epifânio, Paulo, Pedro. O mendigo entrou sem pagar, pelos fundos.

Duas paradas depois, um vendedor entrou. A situação econômica está feia. Pedintes, vendedores de tripé de celular e de livros de Nietzsche tentam a sorte nos ônibus. O rapaz vendia tripé. O cara tinha uma carreira de comediante. Arruinada, pois os bares de comédia estavam falidos. Enquanto tentava vender, contava piadas, fazia trocadilhos, brincava com os passageiros… todo mundo ria, inclusive Epifânio, que estava no fundo do veículo.

Então, a merda teve início.

Paulo e Pedro estavam sentados na frente. Quatro paradas depois de terem entrado, os dois levantaram de forma abrupta. O segundo tirou uma arma .257 da mochila e deu uma forte coronhada na cabeça do vendedor, que caiu sangrando.

- Nem preciso anunciar que porra é isso, né, bando de desgraças!? – gritou Pedro. – Meu parça vai passar com a sacola para recolher os pertences de vocês. Tentem alguma coisa e o lavador do ônibus vai limpar miolos no chão e nas paredes!

Paulo e Pedro não eram assaltantes comuns. O maior catalisador da violência urbana é o tráfico de drogas. Mas esses dois jovens não tinham nada a ver com isso. Na verdade, eles diziam sentir nojo de “drogados”. Eles acreditavam que haviam formas de excitação sem ter que recorrer a alterações químicas – o “jogo” era uma dessas maneiras. Eles diziam sentir uma euforia inefável, algo que nenhum estado quimicamente alterado poderia oferecer. Os dois irmãos assaltavam, tocavam o terror e matavam por pura diversão e sensação de adrenalina. Não tinham escrúpulo algum. Suas origens eram obscuras assim como ninguém sabia de onde provinha tamanha maldade. Alguns poucos sortudos que toparam com essas figuras, e sobreviveram, especulavam que eles eram produtos de um tal de “Haneke, o Jogador”.

A perversidade de ambos ficou ainda mais patente quando Paulo chegou em uma mulher sentada e puxou o seu cabelo com truculência.

- Sua putinha! Que tal um jogo? Quero que você diga o nome e o CPF de todos os pracinhas brasileiros que morreram na Itália durante a Segunda Guerra. – berrou Paulo em seu ouvido. A mulher chorava e gritava e logo começou a receber tapas e puxões. Paulo tentou arrancar seu sutiã. – Se você errar, sabe como isso vai acabar né?

- Paulo, isso não está nas regras! Deixa ela em paz.

- Você sabe... eu crio minhas regras...

- Então, era para isso? – questionou Pedro. Uma maldade pouco maior que a sua o deixou chocado.

O que estava havendo ali era um duelo de maldades – uma maldade estruturalista contra uma maldade adaptativa.

Pedro foi moldado como um “arquiteto de jogos” que prefere a previsibilidade e a segurança. Era adepto de uma crueldade com limites e expectativas desde o início, para que os jogos saíssem conforme planejados. Paulo zombava dele, chamando-o de “burocrata”. Ele se defendia dizendo que era apenas um “força imparcial” e “impessoal”.

Paulo, por outro lado, possuía uma perversidade adaptativa. Ele se via como um “pragmático”, que gostava de experimentar, “inovar” e de se adaptar às circunstâncias. Aquela mulher passageira era uma jogadora que Paulo via como uma cobaia para testar suas novas e emergentes regras. Esse “dinamismo” e imprevisibilidade foram herdados de seu pai, um homem instável que contava diversas histórias a passageiros do metrô, como aquela em que o “dono da Petrobras” o havia chamado para ser sócio.

Paulo não seguiu as recomendações do parceiro e continuou atacando a moça. O ônibus seguia em movimento e não parava em ponto algum, conforme a ordem dos assaltantes. Epifânio assistia tudo estarrecido. Ele era o homem hesitante. Mesmo que os marginais estivessem desarmados, ele não faria nada. Os gritos daquela mulher o perturbavam, mas ele sabia que era suicídio tentar qualquer coisa. “É uma pessoa sendo atacada, porra!”, ele pensava. “Faz qualquer coisa!”. Ele levantou e iria fazer algum gesto. O mendigo não deixou. Encostou a mão no peito dele e disse: “não faz essa besteira”.

Enquanto Paulo tentava violentar a mulher, o mendigo se aproximou dele.

- Ô fedorento! – gritou Pedro, apontando a arma. – Não se mete nisso.

O mendigo fechou a mão e deu um soco tão forte que arrebentou a cabeça de Paulo e espalhou seus miolos sobre as pessoas e sobre Pedro. O resto do corpo foi lançado com virulência na direção do cobrador. Foi uma porrada tão inacreditável que tanto o cadáver quanto o cobrador foram lançados para fora do veículo em movimento. Não teria como o pobre trabalhador ter sobrevivido àquilo.

Todos ficaram embasbacados. Desesperado, Pedro atirava várias vezes no mendigo. Porém, as balas batiam e rebatiam no corpo dele, como se estivessem se chocando contra uma parede de aço. Uma delas atingiu o corpo do mendigo e ricocheteou para um assento, atingindo a cabeça de uma criança de colo.

- Você saiu dos culhões do superman!? – disse Pedro, que disparou até a munição acabar.

O ônibus freou bruscamente. Pedro caiu no chão e tentou fugir. Um muvuca teve início e os passageiros o cercaram e começaram a espancá-lo. O mendigo aproveitou a confusão para sumir.

Epifânio também aproveitou a barafunda para encerrar as hesitações e cair fora dali. Essa foi a primeira de suas atitudes. Não queria passar horas na delegacia. Chegou em casa, tirou a roupa. Voltou a ler “A Idade da Razão”. Desta vez, saiu da primeira página. Mesmo cansado, leu 50 páginas na mesma noite.

O mendigo o inspirou. A sua natureza vacilante estava se apagando. No outro dia, leu em todos os jornais sobre o “mendigo de aço” que salvou os passageiros. Ele ficou conhecido como um “herói” de Salvador. Contudo, os jornais não falaram da criança e do cobrador mortos, tampouco da dor de seus familiares. Essa desproporcionalidade não foi levada em consideração por Epifânio, que queria aplicar a atitude do suposto herói poderoso em todas as esferas da sua vida.

Alguns meses depois, ele foi demitido do escritório. Sua proatividade era tão obstinada que começou a espantar a clientela.