CAÑA BRAVA NA CORDILLERA - (Contra-contos #18)
CAÑA BRAVA NA CORDILLERA
Choli levava vida muito simples, muito dura e primitiva -- mas não sabia disso, não sabia que sua vida, caso observada, causaria misto de espanto, pena, indiferença impotente, desprezo, resignação, satisfação e mesmo reconforto junto a observadores instalados na existência com bens, posses, progresso e todos os sinais de 'bem estar e civilização'.
Era indiozinho peruano filho de mulher paupérrima, nascido em habitação que mantinha fora do vento e do frio a maior marte desse vento e desse frio, feita com todos os materiais imagináveis e disponíveis naquele canto das serras.
Uma tapera, toca de animal, aos olhos de homens mais evoluídos do 'gobierno', da professorinha que uma vez passara por ali em tentativa de recenseamento promovido pelo 'gobierno', em companhia de outros funcionários.
Bebia leite das 'llamas' asselvajadas a pastarem o ralo musgo verde e o ralo verde das 'cordilleras', comia ovos encontrados, a comida que a mãe conseguisse e algumas batatas doces, raízes -- qualquer coisa.
Morava na 'sierra', fora e longe de qualquer povoado, vagava por essas terras montanhosas e sem dono, deviam ser do 'gobierno' porque ninguém as chamava suas nem parecia querê-las para si, o "haciendero"(*) mais próximo ficava a meio dia de caminhada com descidas e escaladas.
A vida de Choli e sua mãe, naquelas paragens, constituía verdadeiro milagre sobre vivencial -- pago às duras penas de alimentação a mais reduzida, economia de energias, simplicidade de corpo e espírito -- se alguém pudesse atribuir algum espírito ao indiozinho franzino que uma rajada de vento certamente lançaria por despenhadeiro qualquer.
Seu único pertence, afora a roupagem bruta de couro costurado e restos de tecidos desde muito tornados incolores, era a flauta de 'caña' brava que a mãe trouxera de uma ida à 'hacienda' Montenegro, a mais próxima.
E por anos Choli se limitou a soprar naqueles furos, procurando extrair sons que a mãe lhe mostrara como extrair, soprando de determinado jeito em um dos furos e tapando outros com os dedos.
Choli não podia ser distinguido da escassa fauna local, até as 'llamas' o fitavam com a mais fria indiferença, seu cheiro era conhecido e não espantava animal algum, os sons saídos da flauta como se tornavam parte da composição geral do trecho da 'cordillera' onde a tapera ruíra e eles se haviam refugiado em caverna, a entrada tampada por trançado de varas flexíveis amarradas a anfractuosidades por tiras de couro.
Tinham uma bilha grande na qual juntavam água das neves derretidas ou de algum córrego degelado na época mais quente.
E Choli se punha a fitar as distâncias, o voo das poucas aves, a trajetória altaneira do condor, a chegada da mãe com mãos raramente vazias -- mesmo uma serpente servia muito bem para matar e comer, índios sabem como aproveitar tudo quanto alimenta.
Assim decorria a vida para ambos, a mãe às vezes convidando o filho para irem à 'hacienda' longínqua e recebendo sempre o olhar distante e calmo como negativa.
Choli não sentia desejos de ver a 'hacienda', após a vez em que um cachorro o mordera; tê-lo-ia estraçalhado por tão pequenino e indefeso, não fora a intervenção do 'peón' que desferira um golpe no animal agressivo, assustado ante a pequena presença estranha, de cheiro tão surpreendente e desconhecido.
Foi em semana de frio intenso, forte vento e temporal que Choli aprendeu a soprar a flauta de modo diferente do anterior, trazendo-lhe a surpresa de um som diferente dos antes extraídos da vara de 'caña' brava.
E em muitos aos silvos e uivos do vento cortante que fazia dos dias sem vento estiradas de doçura tão suave e amena, onde valia a pena estar vivo para desfrutar o sossego dos elementos.
Os sons novos se multiplicaram quando Choli, aproveitando a nova posição dos dedos e modo de soprar, saiu-se com toda uma faixa nova que antes lhe ficara proibida.
A flauta e Choli tornavam-se agora mais íntimos, muito mais íntimos, mais próximos e unidos e capazes do que um par de amantes, outra coisa inteiramente fora do mundo e das cogitações do pequeno índio Choli solitário na 'cordillera' andina.
Sua mãe, atenta aos novos sons que o filho e flauta emitiam em acordo mútuo, ficou satisfeita por ter lembrado de trazer-lhe um dia aquele presente, o único desde que o pequenino nascera, em noite de ventos regelados e assobiantes.
Julgava mesmo ouvir, nos sons novos que saíam do filho e da flauta, a estranha melopeia que lhe parecera estar silvando no vento ao nascimento do filho.
O encontro inesperado com a criatura luminosa, em sua caminhada pelas trilhas mais fundas da 'sierra'!
O calor e a doçura que a empolgaram quando a criatura a tomara nos braços e com ela se deitara na areia macia!
Jamais conhecera tanto carinho, tanto amor.
E no devido tempo o ventre que se tornara volumoso trazia à luz o pequenino ser tão terno, puro e sereno, a que ela própria dera carinhosamente o nome de Choli...
Quanto lhe custara a gravidez!
Cortara-lhe o fôlego para andar e buscar na 'hacienda' os parcos mantimentos com que se mantinha isolada em sua tapera, depois na caverna onde as 'llamas' se vinham abrigar nas tempestades e noites mais frias.
Na 'hacienda' nem mesmo haviam notado a gravidez, a prenhez que lhe avolumara um pouco o ventre e retardara os passos.
Condición, assim a chamavam os poucos seres que via, nem mesmo haviam notado a gravidez singular -- jamais imaginara quem poderia ser aquela criatura misteriosa e resplandecente que a detivera por minutos, após os quais sua vida de tal modo mudara.
Choli vinha agora brindá-la com a melodia estranha e singular que por certo ouvira o vento lá fora tocando com as quebradas e arestas, curvas, reentrâncias e gumes das pedras e matacões, caminhos e 'sierras'.
Mas as notas vinham mais suaves e melodiosas do pequeno músico e seu instrumento simples de 'caña' brava.
Que o menino na 'hacienda' viera tocar para exibir-se com ela, e depois lançara fora, irritado, ao terminar a graça de uma exibição que não lhe granjeara a atenção esperada.
Condición ouvia espantada -- estaria novamente com criança no ventre?
Não seria aquilo um sinal dos deuses da 'cordillera', dizendo que se preparasse, outra criatura nasceria ainda como fruto daquela cobertura espantosa e silente de anos idos?
Assustou-se e temeu, sabia que não haveria como criar mais um filho naquela agrura e pobreza.
Mesmo assim a música a embevecia, quando deu por si estivera parada muito tempo, enfeitiçada pelos sons vindos da flauta de 'caña' brava.
Passou-se mais tempo, Choli e a flauta pareciam experimentar um ou outro, disputavam amavelmente um com o outro, porfiavam entre si no esmero e procura de novos sons.
As aves acostumavam-se àquilo e o condor fazia círculos amplos e altos sobre o vale, ouvindo a cantilena frutificada de um menino e sua flauta, outras aves se apresentavam e cantavam também ou emitiam gritos estridentes e alegres ou curiosos ao ouvirem os sons.
Pequenos animais surgiam das rachaduras e alegres ou curiosos pareciam ouvir, lagartos e roedores atendiam ao que parecia um chamado sonoro.
E ficavam ao sol e ao vento, ouvindo aquela fieira de sons.
Foi num desses dias que Choli falou.
Desde o nascimento não pronunciara uma só palavra, de seus lábios e garganta não saíra som algum, senão com a flauta, aquelas notas inicialmente primitivas e limitadas, depois evoluídas para sequências tão doces.
Mas naquele dia Choli falou.
Esperava a mãe, partida cedo para a 'hacienda', enchera com água do córrego a bilha que constituía talvez a maior riqueza daquela caverna.
Estava sozinho, portanto -- e ainda falou.
Ninguém jamais soube o que Choli disse.
Suas palavras se perderam até para ele mesmo, que as pronunciou sem se dar ao trabalho de ouvi-las, eram ditas em caráter terminante, mas por obrigação que por prazer ou necessidade.
E o ser luminoso se apresentou, sentou-se diante de Choli na estrada da caverna.
Para ele Choli tocou flauta de 'caña' brava e executou seus sons, por horas seguidas, sem pressa e sem parar.
O ser da luz ouviu sem se mover, olhar flamejante nos lábios do menino.
E quando Choli afastou dos lábios de flauta simples de 'caña' brava o ser luminoso permaneceu parado por algum tempo.
Imóvel, como de pedra, entalhada na rocha.
Condición chegou ao anoitecer -- e algo lhe disse para não estranhar a ausência do filho Choli.
Limitou-se a apanhar a flauta de 'caña' brava e levá-la ao peito, chamando-a a si como se chamara o pequenino ser dela nascido, encostá-la nos lábios.
Nunca mais alguém a viu, pois ali ficou na caverna, imóvel, até que o corpo estivesse inteiramente regelado, morta.
Em outra paragens, a flauta e o flautista levavam, a muitos, o refrigério da música/som próprios da mais elevada divindade.
E dos seres mais simples, dos entes mais elementares.
Choli se tornara O Flautista do Orbe Maior.
E em sua música lhes narrava as coisas do Planeta Azul.
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(*)-"haciendero" não se usa em espanhol,
se usa em inglês/tagalo das Filipinas.
O correto seria "hacendado" ou "estanciero".
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Valpii 860430-810212
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CAÑA BRAVA NA CORDILLERA
Forma parte da Coletânea
CONTRA-CONTOS, de Affonso Blacheyre, (1928-1997),
cuja biografia está publicada no RECANTO..
Trata-se do décimo oitavo dos contos da coletânea.
(editado por Gabriel Solis.)
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Affonso Blacheyre