ANÔNIMO

Sofreu o acidente. Foi um terrível acidente! Passando em uma rua da cidade em que morava, um viaduto caiu sobre ele. Suas pernas, seu braço esquerdo até a altura do ombro, foram arrancados com o peso das vigas de concreto do viaduto. O tronco e parte do peito, além de parte de seu crânio, da face até o meio da cabeça havia sido partida. Desacordado, devido as extremas complicações de seu estado físico, mesmo assim, sentia que estava ali, mas não demonstrava nenhuma reação a não ser que ainda estava vivo. Apenas ele encontrava-se naquela situação. As outras vítimas, cerca de 17, haviam caído com seus veículos quando o viaduto desabou. Anônimos todos, que convergiram suas vidas naquele momento trágico. Apenas ele estava passando a pé por baixo daquele esquecido viaduto e foi abocanhado pelo mesmo.

Por passar por baixo, foi o mais afetado. Correndo risco de morte, apenas ele estava. Ali esmagado por toneladas de concreto e aço que perderam suas funções ao desabar sobre aquela vida. Um trabalhador, amante da vida e de outras vidas. Estava ali, meio vivo, destruído, parte por parte sob os restos de um viaduto mal conservado.

Só souberam que havia alguém sob os escombros, quando viram um rastro de sangue que não pertencia a nenhum daqueles que haviam sido resgatados sobre os escombros, apenas com leves escoriações. Por que aquele indivíduo estava ali? Era por aquele lugar que todos os dias a pé, passava para ir ao colégio, em que era professor, por vinte anos.

Com poucas capacidades de retirar os escombros, as pessoas que ali estavam, ao saberem daquele corpo sem vida debaixo de todo aquele amontoado de concreto e aço, apesar do grande esforço, não conseguiram fazer muita coisa.

O resgate daquela vítima só começou a ter resultados, quando a polícia e os bombeiros chegaram, pois com seus equipamentos e a ajuda de máquinas, como retroescavadeiras e pás carregadeiras, começaram a retirar todo aquele concreto e aço, que eram os restos de um viaduto há muito tempo passível de desmoronar, devido a não existência de vistorias sérias e a má conservação por parte dos responsáveis do poder estatal.

Aquela vida humilde que era resgatada com pouca esperança de ser salva de fato, não importava mais do que realmente ela era, um voto. Era importante apenas para quem o amava de alguma forma. Para quem representava apenas um voto, era apenas um voto.

Vivia todos os dias, uma vida de propósito. Guiar quem precisava, por alguns caminhos da vida. Os melhores possíveis, profissionalmente guiados por princípios éticos que valiam muito todo o esforço do mestre. Muitas vidas haviam sido mudadas e ajudadas por aquela vida que se esvaía sob aqueles escombros, daquele viaduto, daquela cidade que parecia com todas as outras do Brasil, esquecidas por quem deveria cuidar. Cuidar da praça, das plantas, das ruas, das redes de drenagem de água, das redes de esgoto, das escolas, dos hospitais, das pontes e dos viadutos. Cuidar, apenas cuidar. Cuidar das pessoas, ainda que fossem anônimas, trabalhadoras, jovens, velhos, pessoas com um coração no peito que palpita, toda vez que surge uma nova possibilidade de viver melhor. Pessoas normais, como eu e você, que vivem neste mundo para viver bem. Viver bem é o maior propósito de muitas vidas humanas, e que, na maioria das vezes, passam por toda a sua existência, de forma anônima.

Sofreu o acidente. Era evidente que estava muito mal. Estava realmente muito mal. Sem culpa, foi pego em uma arapuca do destino. Ali, sob os escombros daquela via suspensa agora caída, sofria. Sofria suspenso em um êxtase de sua consciência confusa. A dor excedia a racionalidade. Estava em pedaços.

Quando conseguiram chegar até ele, aquele professor, eram partes desmembradas do tronco e cérebro a mostra. Incrivelmente respirava! Respirava como quem buscasse por uma chance de continuar vivendo, ainda lutava, com intensidade visível. Era o fim ou o início de uma boa história.

Os bombeiros auxiliados por um paramédico, conseguiram colocá-lo na ambulância, e esta, era equipada com o mínimo possível de aparelhos que permitia ao mesmo, continuar vivendo. Incrédulos pelo que viam, ou por ser na verdade o primeiro caso em suas vidas, atuando onde atuavam, em que um ser humano desmembrado por um evento tão trágico, ainda estava vivo, e que parecia estar por uma vontade e força incalculável em não querer se entregar ao fato mais óbvio, a morte.

Eles imaginavam que, ainda que chegasse ao hospital com vida, essa não demoraria em deixar aquele corpo ou o que restava dele. Como ainda poderia estar vivo, naquelas condições? Era com certeza uma das perguntas que faziam a si mesmos. Entretanto, havia esperança.

O levaram ao hospital mais equipado da cidade. Ali já aguardava uma equipe médica, precavida com antecedência das condições em que se encontrava o paciente.

Foi logo conduzido à sala de cirurgia. A ideia era fazer todos os levantamentos possíveis da viabilidade de reabilitar aquela vida. Recuperar e ver a possibilidade de repor membros, analisar as dimensões das lesões cerebrais e nos outros órgãos também. O certo era que aquela vida, queria viver. Os sinais vitais estimulavam a equipe médica a fazer todo o possível para que aquele paciente sobrevivesse.

Naquele dia, foram horas de cirurgia, desde a reconstrução de vasos sanguíneos, até a recolocação de membros arrancados do corpo pela violência da queda do viaduto. Foi uma semana de intervenções cirúrgicas e no início da semana seguinte, por unanimidade da equipe médica, foi levado a um centro mais desenvolvido na capital. O objetivo era, fazer com que a recuperação fosse feita tendo como suporte um centro médico mais bem equipado.

Ao chegar em uma UTI, muito mais equipada, foi monitorado pelos mais desenvolvidos e possíveis tratamentos médicos do país. Não abria os olhos, mas os sinais vitais eram pulsantes. Havia esperança.

Seu cérebro não deixou de coordenar todo o corpo. Sua mente era vibrante. Naquele novo ambiente, queria explorá-lo, assim o fez pelo menos em seu universo mental. Conectou-se aos aparelhos que estavam conectados a ele. Como um software, instalou-se nos equipamentos médicos e utilizando a internet, foi além! Seu corpo estava ali, sua mente estava conhecendo o mundo.

Viajou pela primeira vez como queria, e como queria ter viajado antes do ocorrido. Agora percebia que era capaz de fazer e ser o que sempre quis. Podia estar em um telefone de alguém no Japão, em um data center de uma grande corporação na Europa ou EUA. Mas podia também, estar em um equipamento médico que sustentava uma frágil vida no Camboja ou no Brasil. Podia melhorar de diversas formas as máquinas que funcionavam em conexão à internet.

Fazia com que dívidas de quem trabalhava e era honesto fossem melhor analisadas pelos sistemas criptografados dos bancos e possibilitava que as pessoas fossem desafogadas de suas dívidas. Fazia investimentos públicos serem melhor investidos e recolocava na linha de investimentos para a coletividade, valores desviados pela corrupção.

No que se referia a corrupção, neutralizava todas as formas de desvios que ocorriam e utilizavam a rede de internet para se consolidarem. Simplesmente pegava todos os valores e reinvestiam em programas ou criava programas que alcançassem o maior número de beneficiários realmente necessitados. Assim, passou a ser onipresente na vida de muita gente, espalhadas por todos os continentes.

Líderes corruptos, ou juízes corruptos, eram varridos seus investimentos e seus proventos alcançavam sempre pessoas que realmente necessitavam e estavam espalhadas nos vários rincões do planeta. Tornava-se o Noel na vida de crianças, adultos e velhos, onde na grande maioria das vezes, eram desamparados pelos Estados que sugavam até as últimas forças dessas pessoas por meio de tributos, taxas e contribuições diversas que sufocavam a criatividade, o empreendedorismo ou simplesmente a capacidade de trabalho e sobrevivência das pessoas.

Viu aquilo como uma dádiva divina para ajudar de forma universal todos àqueles que sofriam de alguma forma, ainda que fossem apenas por não acreditarem em si mesmos. Aquele corpo aparentemente sem vida, fortaleceu-se na Web e na Web fez-se o onipresente do bem, combatendo o mal e fazendo o mundo um pouco melhor a cada dia.

Em um determinado dia, percebe que não necessitava mais do corpo físico e transfere sua consciência para o mundo virtual, onde agora viveria para sempre, guiado pelo bem e para fazer o bem. Anônimo mudava o mundo para melhor.

Passou a desenhar um novo modo das pessoas utilizarem a Web e na internet, passou a melhorar a relação entre as pessoas. Os sistemas educacionais mundiais foram direcionados para o fortalecimento das boas relações entre as pessoas. O respeito, a tolerância e o bem pautado na honestidade e na ética conduziam a humanidade a um mundo cada vez melhor. Anônimo mudava o mundo e melhorava a todos. Era a mão divina atuando por meio de sua existência virtual, para melhorar a vida de milhões de pessoas.

Era também o grande fiscal das obras públicas e privadas, um incrível e invisível engenheiro que desenvolvia de forma grandiosa e perfeita a infraestrutura em todas as regiões do planeta. Países pobres evoluíam e resolviam seus problemas. O equilíbrio mundial alcançava níveis melhores a cada ano. Onipresente, resolvia os problemas do mundo de forma anônima, pois nunca quis, desde criança, nada mais do que viver bem e feliz. Fazer o bem de forma anônima, era sua maior recompensa e seu projeto de vida eterna. Quem era ele? Não sei. Sei apenas que era um anônimo, como muitos de nós.

Valdemarí Morais
Enviado por Valdemarí Morais em 19/01/2025
Reeditado em 19/01/2025
Código do texto: T8245061
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