O homem que vendeu uma nação

O doutor Albert Feuchtwanger levou o visitante ilustre, até a amurada que protegia a escavação arqueológica em Bete-Seã, outrora conhecida por Citópole. No fundo da área escavada, eram visíveis bases de colunas quebradas e parte de um belo mosaico colorido, mostrando pavões à beira de um lago.

- Aqui ficava o átrio da vila de Kallimedon, um sírio que foi uma espécie de empresário "avant la lettre" do ramo de hospedagem na época da Judeia romana - explicou o professor ao representante do ministério da Propaganda. - Mas esse Kallimedon não foi somente um empreendedor; ao que tudo indica, ele teve um papel destacado na expulsão dos judeus da Palestina, durante o reinado de Tibério.

- Ah, então Kallimedon foi o primeiro a ter a ideia - aprovou o visitante. - Notável que o nome dele não tenha tido maior divulgação na Alemanha; isto seria de grande interesse para o meu ministério, como pode imaginar.

- A descoberta desse provável vínculo é recente, Herr Buchberger - desculpou-se o arqueólogo. - Começou a ser inferida a partir de cartas enviadas ao Senado romano pelo governador da Síria, no ano 96. Alguém teve a ideia de guardar cópias em ânforas lacradas num porão, e elas foram encontradas há cerca de dois anos, nas ruínas de Citópole. Provavelmente estão lá desde o terremoto que destruiu parte da cidade, no ano 363.

- Mas afinal, que papel teve esse hoteleiro na diáspora judaica? - Questionou Buchberger.

- Pois então; - prosseguiu Feuchtwanger - pelo que conseguimos apurar, um neto desse Kallimedon cobrou a renovação da concessão de alguns pontos comerciais na Judeia e Samaria, em caráter de exclusividade, e o governador teve que dar esclarecimentos ao Senado sobre o papel exercido pelo avô do querelante na Guerra Romano-Judaica de 35-45, que resultou na derrota e expulsão dos judeus. O próprio Senado ficou surpreso, porque não era sabido que, de algum modo, Kallimedon havia feito com que os judeus tentassem incriminar os seguidores de Cristo, matando romanos com dardos marcados com a frase "Amicus Christi" - amigos de Cristo.

- Eu soube dessa história, mas pensei que apenas Pôncio Pilatos houvesse sido morto desta maneira - ponderou Buchberger.

- Não; aparentemente outros legionários da V Coorte também foram mortos com dardos marcados - prosseguiu o arqueólogo. - Os romanos, obviamente, logo perceberam que se tratava de um truque dos zelotas, já que vários deles foram capturados no próprio acampamento da V Coorte, atacado em 35.

- E aí, o peso do chicote romano desceu com toda força no lombo dos judeus - Buchberger agora havia escancarado um sorriso.

- Exatamente - assentiu Feuchtwanger. - Houve centenas de crucifixões, milhares foram levados para serem usados nos jogos em Roma, outras dezenas de milhares vendidos como escravos. Praticamente, a Palestina ficou livre de judeus.

- Mas o Senado não ficou revoltado em saber que um sírio contribuiu para um ataque às suas tropas, culminando com a morte de Pilatos? - Questionou Buchberger.

O arqueólogo deu de ombros.

- Aparentemente, concluíram que não adiantava mais ir atrás de culpados; já havia se passado mais de 50 anos dos fatos, e o suposto responsável, Kallimedon, estava morto. Também, muitos dos senadores beneficiaram-se com a construção das novas cidades e vilas na Palestina romana, não lhes interessando remexer em detalhes embaraçosos do passado. A petição do neto do hoteleiro foi atendida.

- E cá estamos, quase dois mil anos depois, de volta ao começo - avaliou Buchberger, arqueando as sobrancelhas. - Os judeus retornaram à Palestina... com a nossa ajuda.

Feuchtwanger fez um gesto positivo com a cabeça.

- Por conta dos interesses maiores do Großes Deutsches Reich, naturalmente.

- Sim, que isso fique bem claro - assentiu Buchberger, deixando transparecer uma ponta de exasperação na voz. - Tínhamos um problema com os judeus e eles queriam voltar para a Palestina; creio que ambas as partes ficaram felizes com a solução encontrada.

- Talvez apenas os ingleses e seus aliados árabes não tenham ficado assim tão satisfeitos - ponderou o arqueólogo, mão no queixo. - Mas não dá para agradar a todo mundo, afinal de contas.

Buchberger abriu outro sorriso.

- E, em última análise, transformar a Palestina num protetorado do Reich foi a melhor iniciativa que poderíamos ter para a região - avaliou. - Nos permite ter uma base segura para mantermos todos os vizinhos árabes na linha e sob estrita vigilância; e nada podem fazer contra os judeus, pois nós garantimos a segurança destes.

- Além do que, creio que a maioria dos cristãos parece de certo modo aliviada, pelos judeus estarem na terra que dizem ser deles, - ponderou o arqueólogo - e não dividindo o espaço conosco, na Europa ou nas Américas.

- E tudo começou com esse Kallimedon - concluiu Buchberger, contemplando mais uma vez o mosaico que emergia da terra pardacenta. - Pergunto-me como ele se sentiria agora, se soubesse que os judeus acabaram voltando para o lugar de onde haviam saído.

- Kallimedon era um homem de negócios - replicou o arqueólogo. - Provavelmente, diria que já havia recebido as suas trinta moedas e nada mais lhe importava...

Buchberger voltou-se para o arqueólogo, com uma expressão ambígua:

- Algo me diz que, neste caso, foram bem mais de trinta moedas. Afinal, ele vendeu uma nação.

- [31-12-2024]