A CIDADELA DOS ROBINSON

Ao retornar de uma de suas expedições exploratórias, o pai trouxe um antigo binóculo militar para o filho. A primeira coisa que o menino fez, naturalmente, foi observar a paisagem pela janela do quarto. Devido a duas paredes externas, sua visão do horizonte era reduzida, mas podia ver no topo de uma colina, uma árvore seca, desprovida de folhas. Árido e estéril também era o solo ao seu redor. Havia algumas lápides antigas com o nome das pessoas ali sepultadas. Agora ele podia ver detalhes que antes não eram possíveis, como a cor e a textura do tronco da árvore, a forma dos galhos e as cicatrizes de onde as folhas haviam caído. Podia distinguir com mais clareza o nome das pessoas nas lápides. Um deles era o da avó, Vânia, falecida pouco antes de seu nascimento, e do tio, Breno, além de outras pessoas que ele não chegou a conhecer.

Olhar pelo binóculo era divertido e interessante, mas Vânio ainda não estava satisfeito, queria mesmo era liberdade, livre arbítrio. Passou dias amuado e para agradá-lo, Helena, sua mãe deu ordens para Isaac levá-lo a visitar os outros cômodos do prédio que ele ainda não conhecia. Saíram ambos pelo corredor até que, longe da mãe, o menino parou e estendeu a mão para o androide.

— Dê-me as chaves. Não precisa me acompanhar, posso ir sozinho.

— Recebi ordens para acompanhá-lo. É meu trabalho instruí-lo e protegê-lo de acidentes.

— Não sou mais criança que precise de proteção. Já tenho 10 anos, sei cuidar de mim mesmo.

— Recebi ordens para cuidar de você desde que nasceu e cuidarei quando for necessário.

— Não dá pra ignorar essa ordem que mamãe lhe deu? De ficar grudado em mim?

— Não posso ignorar as ordens que seus pais registraram na minha memória, tampouco as 3 leis da robótica. Vamos continuar nossa visita. As ordens de seu pai são para manter tudo organizado e limpo. O primeiro cômodo que iremos será aquela porta que abre para o depósito de ferramentas. Recomendo não mexer em nada.

Isaac abriu a porta com uma chave que tirou de um compartimento do cinto de couro sintético, revelando uma sala espaçosa com ferramentas penduradas nas paredes, espalhadas sobre uma mesa comprida e organizadas em prateleiras de armários.

— Isso é um museu?

— Não exatamente. Seu pai coletou esses objetos pelas ruínas das cidades. Ele guarda tudo que pode para gerações futuras.

Eles seguiram para a sala das artes. Vânio já conhecia algumas pinturas em livros e pouco se interessou por elas, passou uma vista de olhos pelas estatuetas e esculturas, indagando-se por que o pai fazia tanto esforço para possuir aquelas velharias. Em seguida, entraram na sala de documentos, que o pai considerava preciosos, mas para ele eram só papeis velhos. Depois de visitar a sala de equipamentos eletrônicos coletados ao longo de 19 anos, desde a construção do prédio, explicou Isaac, chegaram ao complexo de captação de água, fabricação de vitaminas, sais minerais e aminoácidos e medicamentos. Vânio assistiu com interesse todo o processo. De uma plataforma, observou a enorme caverna, com túneis, de onde todo o minério era extraído. As salas vetadas a sua entrada, foram a sala do gerador de energia elétrica, o laboratório da mãe e a oficina do pai. O final do passeio terminou no pátio interno.

— Eu queria sair, mas mamãe disse que tem monstros lá fora. É verdade ou é mentira dela? — perguntou Vânio, sentado num banco. Isaac sentou-se ao lado dele apenas para fingir que era humano.

— Estou incapacitado de opinar sobre questões que possam afetar suas virtudes e trazer consequências danosas para o seu equilíbrio psicológico.

Às vezes o menino não entendia as palavras do robô, mas sempre tinha outra pergunta pronta.

— Você já viu algum monstro?

— Seus pais acreditam que a radiação nuclear possa ter criado pessoas degeneradas, desumanas, por isso eles proíbem que você saia do prédio. Na sala de recreio, há muitos filmes e brinquedos para você se distrair. Tem livros interessantes na biblioteca. Não precisa ir lá fora.

— Mas papai sempre sai para buscar alguma coisa.

— Positivo, mas ele usa roupa protetora e sai armado. Seu pai é adulto, sabe se defender.

Vânio chegou à conclusão de que Isaac não o ajudaria a desobedecer às ordens dos pais. Mesmo na adolescência, ele foi proibido de sair da cidadela.

Assim, o mundo de Vânio se restringia àquele prédio abarrotado de tudo que uma pessoa precisava para viver em conforto e segurança. Claro que ele ansiava por escapar daquela prisão imposta pela mãe, que se achava no direito de criar o filho como bem-quisesse, mesmo negando-lhe a liberdade, que era para o bem dele.

Não podia ultrapassar os muros; sempre havia um guarda-robô no portão para impedi-lo de sair. Nas suas andanças pelo edifício, era acompanhado por Isaac. No entanto, aquelas caminhadas pelo interior da cidadela se tornaram aborrecidas, e ele voltou a passar seus dias na biblioteca, lendo, assistindo a vídeos e filmes de um mundo que não existia mais.

Vânio tinha 17 anos quando o pai faleceu. Morreu durante o sono. A esposa, percebendo que o marido não acordava, sacudiu-o pelo ombro e descobriu que estava morto. Abalada, chorou muito. Depois, controlando-se, precisava ser forte, dirigiu-se ao quarto do filho. Abraçou-o e explicou o que havia ocorrido. Vânio recebeu a notícia com tranquilidade. Confortou a mãe dizendo que cuidaria dela.

Após se acalmar, Helena iniciou os preparativos para o velório e posterior sepultamento. O rapaz, no entanto, tinha outros planos. Fingiu um desconforto súbito e queixou-se de enxaqueca. A mãe, solícita, pegou remédio na farmácia para ele tomar, mas Vânio se meteu debaixo das cobertas e disse querer silêncio e escuridão. Ali ele ficou, até a hora em que o velório terminou.

Quando olhou pela janela e viu o cortejo fúnebre com a mãe e os robôs dirigindo-se para o cemitério, saiu do quarto e desceu para o vestíbulo. Não encontrou ninguém pelos corredores. Chegando diante da porta que dava para o pátio, descobriu que estava trancada a sete chaves. Frustrado, retornou ao piso superior. Encontrou Isaac no topo da escada, vigilante.

— O que foste fazer diante da porta?

— Sair. Quero conhecer o mundo. Tens a chave?

— Não tenho e mesmo que tivesse não daria a ti, pois recebi ordens para não o deixar sair. Lá fora não existe nada que possa lhe interessar.

— Como, nada? E aquelas coisas que vi nos livros e nos vídeos? As cidades, as pessoas, os veículos terrestres e os aparelhos voadores?

— Teus pais já te contaram. Foi tudo destruído por uma guerra. Encontrarás a história na Enciclopédia Telúrica do Fim dos Tempos.

— Li todos os livros da biblioteca e não conheço nenhuma enciclopédia do fim dos tempos.

— Sua mãe deve ter escondido para preservar sua inocência.

— E onde ela escondeu, pode me dizer?

— Não posso responder porque não sei. Aconselho voltar para o quarto.

E foi o que Vânio fez. Chegou à conclusão de que não podia mudar as ordens daquele robô antiquado, mas eficiente. Deitou-se na cama, pensativo, chateado. Decidiu procurar o tal livro. Começaria pelo lugar mais óbvio, a biblioteca.

— Vou à biblioteca estudar. Não precisa me acompanhar — disse para Isaac, quando passou por ele. Chegando na biblioteca, olhou as prateleiras. Já tinha lido os 3 mil livros que existiam ali, portanto, sabia que não estava nas estantes. Olhou em todas as prateleiras e nos cantos, para certificar-se que não estava escondido. Não encontrando, decidiu procurar na oficina do pai, já que agora ele não estaria mais lá. Ouvindo barulho de vozes, percebeu que a mãe havia voltado e estava dando ordens para os criados de lata.

Ele retornou ao quarto, debruçou-se na janela. Dali podia ver o portão do pátio sempre fechado. Fazia tempos que não observava a paisagem. Pegou o binóculo e olhou para o morro. A árvore continuava com os galhos sem folhas, o solo seco. A última coisa que olhou foi a nova lápide com o nome do pai. Terminada a exploração do morro, voltou a olhar o portão do pátio. A madeira era de carvalho, tábuas grossas unidas com cintas de ferro e pregos. Um cadeado metido em argolas, trancava ambas as folhas. O muro era alto com setas de ferro e cacos de vidro no topo. Para sair, somente com a chave.

Vânio sentia-se triste, melancólico, nostálgico por algo que apenas imaginava, os rios, as florestas, os carros, as grandes cidades, as avenidas e os anúncios luminosos. Diziam que nada daquilo existia mais, mas ele não acreditava que o mundo fosse apenas um deserto hostil. Tinha vontade de sair e ver tudo ao vivo e não apenas nos livros. Precisava encontrar as chaves que abriam as portas. Talvez o pai guardasse uma cópia na oficina. Antes precisava encontrar a chave da oficina.

Esperou que a mãe se ausentasse do quarto dela para procurar. Encontrou um molho de chaves no fundo, de uma gaveta de uma cômoda, cada uma com uma etiqueta de identificação, nem uma era da porta do prédio ou do portão, mas uma delas era a da oficina. Estava seguindo pelo corredor, quando ouviu a voz de Helena chamando-o. Respirou fundo para acalmar-se.

— Aonde você vai?

— Ao jardim.

— Não se esqueça de usar protetor solar. Tome o seu almoço.

Ela deu a ele um comprimido com suplemento vitamínico e um copo de água, depois se afastou. O menino respirou aliviado e seguiu caminho.

Conseguindo entrar no estúdio, acendeu a luz e procurou nos armários, nas prateleiras e caixas, mas não encontrou nenhum livro. Olhou para a porta vermelha ao fundo. O vermelho sinalizava perigo. Era a sala secreta do pai e a chave estava no bolso no avental pendurado num gancho alto que ele agora podia alcançar. Pegou e abriu a porta proibida. Entrou devagarinho, receoso de estar profanando um recinto sagrado. A sala não era tão diferente da outra, só que ali havia aparelhos e instrumentos que ele conhecia apenas por imagens de livros e filmes. Um aparelho em particular chamou atenção, um monitor de vídeo diferente daquele que ele tinha em seu quarto.

Algo misterioso estava encoberto por um lençol junto à parede. Aproximou-se, cutucou com o dedo, depois pegou uma ponta do pano e puxou. Um retângulo de grafite como um monólito de 2 metros de altura por 1 de largura. Atraído pela textura, colocou a mão e ao tocar, abriu-se uma porta para um corredor de cor esverdeada.

A curiosidade, a busca por conhecimento era a qualidade da sua índole destemida. A vontade em saber o impelia a descobrir o oculto, seja lá o que fosse. Avançou alguns passos e viu-se numa rua iluminada pelo sol, surgiram prédios, pessoas, carros. Era como caminhar pela calçada de uma cidade colorida e alegre. Podia ouvir o som das vozes, o barulho dos carros. Ficou maravilhado olhando de um lado para outro. Um dia comum numa metrópole. Algo que sempre desejou ver. O ambiente mudou e ele seguiu agora por um caminho lajeado, um parque gramado, com árvores copadas, arbustos e plantas ornamentais. E pessoas passeando, sentadas nos bancos, adultos e crianças desfrutando uma tarde tranquila. Podia ouvir as risadas das crianças, as vozes dos adultos.

De repente tudo se aquietou, como se os sons tivessem sido sugados pelo vácuo.

Em seguida um estrondo rompeu o silêncio repentino, seguido de uma luz intensa. Uma nuvem de plasma varreu a cidade, pessoas e árvores. Carros voaram com seu metal distorcido, as pessoas se desintegraram, edifícios foram rasgados, se desfazendo em pedaços de concreto, ferro e vidro. Logo um silêncio pesado foi entrecortado por lamentos e gritos de socorro. Espectros vermelhos surgiram em meio a poeira, corpos em carne viva, as artérias latejando ansiando pela vida. Uma coreografia macabra no meio de detritos. Alguns escavavam a terra com as mãos em busca de um bálsamo no lodo, na lama, mas encontraram apenas cinzas e terra calcinada. A imagem desapareceu e Vânio se viu diante do monólito.

****

A mãe ficou doente, de cama e Vânio cuidou dela dando os remédios que ela mesma prescrevia. Quando seus sinais vitais sumiram, ele a considerou morta e que precisava sepultá-la. A ideia de ficar sem a mãe, não o assustava, sentiu-se até aliviado por ficar livre do controle dela. Ele avisou Isaac e o robô verificou o fato, auscultando com seus sensores. Tinha na memória ordens para levar o corpo ao cemitério. Foi a única vez que os robôs deixaram as portas e o portão externo abertos, talvez obedecendo uma ordem da mãe em caso daa morte doss pais.

Em vez de seguir o cortejo, Vânio esperou que eles sumissem na curva da estrada e depois enveredou para outro lado.

Seguiu por uma estrada antiga, seca e dura. Em ambos os lados moitas de capim tentavam viver empurrando suas raízes para o fundo em busca de água. As chuvas eram escassas. Depois de 2 horas chegou a uma cidade em ruínas. A rua estava deserta, envolta em silêncio que só era quebrado pelo som ocasional de destroços caindo dos prédios outrora imponentes, agora cobertos de fuligem e rachaduras, como cicatrizes de uma civilização morta. Parou em frente a uma loja para olhar os manequins com suas roupas em frangalhos, cobertos de pó. Carros abandonados, enferrujados formavam uma fila desordenada ao longo da avenida, testemunhas mudas de um êxodo apressado. O asfalto estava esburacado, com ervas daninhas raquíticas crescendo entre as rachaduras, avançando lentamente, retomando o terreno. Pedaços de vidro quebrado refletiam a luz pálida do sol, criando um brilho fantasmagórico que contrastava com a escuridão das sombras projetadas pelos edifícios em pedaços.

O que ele tanto temia, aconteceu. Era verdade o que a mãe dizia, não há nada lá fora. Mas e se houvesse outro mundo, um mundo paralelo? Os livros contam histórias. Teorias e lendas que poderiam ser verdade.

Por muitos dias não encontrou ninguém, nenhum animal, nenhum monstro que sua mãe tanto temia. Achava que se continuasse em frente, poderia chegar ao Rio de Janeiro e subir na Pedra da Gávea. Ele se lembrava das palavras do livro. Uma lenda dizia que lá em cima havia um portal para outra dimensão, para um mundo novo. Sabia que ficava distante, mas acreditava que poderia chegar lá.

Vânio esqueceu-se dele mesmo, seu propósito agora era mais importante. Continuou caminhando dia e noite, rumo ao sul, até que os músculos das suas pernas não obedeceram mais à sua vontade. Ele não entendia por que isso acontecia, porque o corpo sucumbia à sede, fome e cansaço. Chegando a uma clareira, não aguentou dar mais nenhum passo, nem ficar de pé, caiu e se arrastou até uma árvore seca, morta há muito tempo por um raio. Recostou-se no tronco, empurrou os cabelos da frente dos olhos, secou o suor com a manga da camisa.

Sua vitalidade desaparecera. Os pensamentos começaram a se desfazer como fiapos de fumaça ao vento. As pálpebras pesavam e antes que se fechassem para sempre, ele olhou para o alto e viu entre as nuvens, o que parecia ser uma porta aberta. O coração parou logo em seguida, o sangue deixou de carregar oxigênio para o cérebro. Com o sistema imunológico em colapso, as células do corpo começaram a digerir a si mesmas, devorando proteínas e DNA e com a morte do hospedeiro, os micróbios da flora intestinal começaram a se multiplicar e abandonar o ambiente junto com fluidos corporais, emanando vapores de mau odor. Reduzindo os tecidos e fluídos, os próprios vermes pereceram, integrando-se aos elementos químicos, ferro, zinco, enxofre, cálcio e fósforo.

O vento lançou sementes, esporos, pólen, naquele lugar rico em nutrientes e uma vegetação vistosa, irrigada pela umidade do orvalho da noite, nasceu. A própria árvore moribunda, onde Vânio se recostara para descansar, absorveu com as raízes a sua essência. Renasceu, espalhando pelos seus galhos a clorofila para as folhas que deram abrigo e sombra aos pássaros que foram surgindo com o passar dos anos, e os restos mortais de Vânio foram cobertos pelo mato, tornando-se parte da natureza que ele tanto desejou conhecer.

Antônio Stegues
Enviado por Antônio Stegues em 17/12/2024
Código do texto: T8221281
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