Joanna precisou fazer um transplante, ou melhor, um enxerto. Uma área do seu cérebro ficou danificada após um acidente e foi removida. O neurologista sugeriu um enxerto, posto que, a pesquisa sobre transplante de cérebros permanecia inconclusa.
O doador sofreu morte encefálica, após um acidente. A família doou os órgãos. Ela foi contemplada com o cérebro do rapaz. Um jovem médico.
Passou um bom período hospitalizada. Vários dias em coma induzido, terapia nutricional oral e centenas de fraldas.
Felizmente não houve rejeição ao enxerto, teve alta e voltou para sua casa.
Durante muitas semanas teve acompanhantes. Enfermeiras e cuidadoras.
Joanna, divorciada e sem filhos, em licença médica, a vidinha tranquila, cuidando de plantas, fazendo exercícios com um personal trainer, viajando e escrevendo crônicas para um futuro livro, experimentou uma nova vida. Um acidente interrompeu a rotina e a transformou.
Após o enxerto no cérebro, Joanna sente-se uma outra pessoa. A memória é a área mais afetada. Parece ter sido dividida em duas - metade lhe pertence e a outra pertence ao doador.
O neurologista sugeriu manter o acompanhamento psicológico, sessões semanais com psiquiatra, psicólogo e terapeuta ocupacional.
A medicação foi suspensa, poucas dores e parece estar bem de saúde, segundo o clínico.
As lembranças antigas foram apagadas, Joanna afirma não ter um passado. Elas pertencem ao doador. Aos poucos tenta adaptar-se a um novo EU.
Está muito confusa, chega a duvidar de sua sanidade mental. As sessões de terapia pouco ajudam. O neurologista diz ser um período de observação, é a primeira paciente submetida a um enxerto no cérebro. Seu caso é tema de artigos em revistas especializadas, conferências e simpósios. Felizmente a imprensa ainda a ignora. Joana sente-se cobaia de um experimento científico.
Reconhece a casa, a decoração, o jardim e os vizinhos. Com a ajuda do celular, conseguiu identificar parentes, amigos e conhecidos. Na porta da geladeira estão os adesivos dos fornecedores - padaria, açougue, farmácia e horti-fruti.
O cabelo está crescendo, passou por um corte drástico devido a cirurgia. Estão grisalhos, eram avermelhados. Joanna estranha um pouco o sabor dos alimentos, bebeu uma taça de vinho branco, achou delicioso - uma novidade. Provou um bombom, porém não gostou.
Resolveu dar uma arrumada na estante de livros, encontrando uma agenda antiga, com várias anotações.
- -Talvez me ajude a recompor fases do meu passado, pensou.
Todavia, o passado do doador interfere na leitura, é um constante assédio.
Assusta-se com a ideia de ter adquirido dupla personalidade.
Para organizar pensamentos e lembranças, começou a escrever um diário, ou melhor, dois. Um para si e outro para anotar as lembranças do doador, cujo título será ‘A memória de Cássio’. Iniciando pela dele, pelo volume de fatos.
A memória recente de Joanna, adquirida depois do enxerto, ainda está vazia, comparada com a dele.
Reservou um horário pela manhã para escrever, tendo sempre a mão um bloquinho para registrar lembranças aleatórias que surgem inesperadamente.
Ela demonstra dificuldade em se concentrar, os livros na estante aguardam a leitura, e são, para Joanna, como livros novos, ainda não lidos.
- - Espero que Cássio tenha lido algo. Pensou.
A maioria dos livros, arrumados, mescla ficção e história. Sentou-se no chão e, enquanto organizava os livros perguntava-se:
-Terei sido professora?
- Professora de literatura?
- Tenho que aprender a lidar com a situação.
- Abro o guarda roupa e não reconheço os vestidos.
- O conteúdo das gavetas não me diz respeito, sejam papeis, roupas de cama e mesa, perfumes, maquiagem, sapatos etc.
- Sinto que minha vida se partiu. O passado de Cássio, agora me pertence e o presente está sendo construído aqui e agora.
- Renasci com a cirurgia - 11 de setembro.
- A minha idade atual é a soma de todos os dias, a partir desta data.
- Estou em quarentena, em casa. Saio apenas para os exames de imagem no hospital. Uma ambulância me transporta. Ida e volta.
- Deixei com um de meus irmãos uma procuração para administrar meu patrimônio e resolver qualquer questão. Transformou-se em meu tutor, ou curador.
Os primeiros dias de Joana após a alta do hospital, foram caóticos. Dores de cabeça, confusão mental e um vazio existencial.
- Estou sofrendo de Esquizofrenia?
Uma lágrima caiu sobre o colo.
A MEMÓRIA DE CÁSSIO
A lembrança mais antiga que veio à cabeça de Joanna é a de uma festa de aniversário. Comemoram três anos de idade do menino
A partir de agora, as lembranças de Cássio lhe pertencem. Compõem sua própria memória e, assim, serão narradas. Joanna estará em sua pele e mente por um longo tempo.
Fato marcante na época em que Cássio frequentava a pré-escola, foi a morte da avó materna. Aos cinco anos de idade foi o primeiro contato com a morte. A avó foi velada em casa, o esquife estava sobre a mesa da sala de jantar, velas ardiam em torno dela.
O cheiro de cera derretida e o cheiro das flores das coroas fúnebres enchiam o ar e deixavam o ambiente nauseante. A fuga para o jardim e um vão de escada foi um alívio para o menino. A noite ao relento, a fome e o frio foram suportáveis. Os adultos encontraram, na manhã seguinte, após o féretro sair para o cemitério, uma criança trêmula e febril.
Para ele, uma experiência marcante por longo tempo, até a compreensão da finitude humana.
As transformações e mudanças na adolescência são inesquecíveis: os primeiros pelos, as ereções, a acne e a seborreia. As amizades, as garotas, o esporte, aulas de música, as drogas leves. Os complexos.
O amigo Fabrício se revelou ‘gay’ e Eduarda lesbica. Juanita preferiu namorar o Rodrigo, Stella era um grude. A prima Estefânia foi a primeira experiência sexual. Garota descolada, divertida e linda. O tio Nestor, seu pai, a enviou para Bruxelas para morar com a mãe.
Ao concluir o ensino fundamental, seu pai sugeriu cursar a Academia Militar. Nem pensar…
A mãe deu total apoio, pois imaginava o filho médico, como o avô, famoso cardiologista. O pai, engenheiro naval, ausente, sempre em viagens de trabalho.
Matriculou-se no ensino médio, e passou a trabalhar como barman ‘freelancer’
Para agradar a mãe, prestou vestibular para medicina. Mas, detestava o curso, as práticas, os estágios, todavia formou-se, porém recusou-se a fazer a residência médica, mas Cássio concordou em fazer alguns plantões em um hospital público, como voluntário, ou substituindo colegas plantonistas.
O ACIDENTE
A agonia, esperando o resgate, preso às ferragens do carro.
Um som indistinguível. Ambulâncias, bombeiros e helicóptero.
Silêncio.
A NOVA MEMÓRIA DE JOANNA
Ao retornar, após a alta, Joanna reconheceu sua casa e seu quarto. Foi acomodada pela acompanhante indicada por alguém da família, de nome Lourdes, que deveria permanecer com Joanna durante o dia, e substituída, à noite, por Tereza.
Joanna sentia-se muito cansada, a cabeça doía um pouco. Aceitou um chá adocicado e dormiu por horas.
Aos poucos Joanna se adaptaria às circunstâncias.
Começou a ler as páginas de uma antiga agenda, encontrada entre os livros da estante. Na verdade um ‘planner’, com as tarefas previstas para determinado mês ou semana.
Para Joanna, talvez uma agenda fosse mais útil.
- - Eu deveria ter escrito um diário. pensou
- - Talvez eu o tenha escrito na adolescência, não me lembro. Se o tiver feito, deverá estar extraviado.
- - Embora o plano (planner) não me pareça de grande ajuda, começarei a pesquisar o passado por ele.
Começou a ler e a primeira anotação diz respeito a uma consulta com a ginecologista, a data escrita a lápis, pouco legível, porém, o nome da médica é Dra Vera.
Joanna fez a ligação telefônica para o consultório da médica, a atendente informou que a médica havia falecido.
Outra anotação é a data de uma reunião de trabalho e a lista dos participantes confirmados.
- - Não me lembro de qualquer um, todavia um dos nomes me parece familiar.
Prosseguiu percorrendo as páginas do plano em busca de pistas. Encontrou o número do telefone de um laboratório de análises clínicas.
- - Talvez eu tenha feito um hemograma e meus dados ainda podem constar do sistema. Pensou.
Joanna foi ao quarto, em uma das gavetas de um móvel estavam várias pastas, escolheu a que continha resultados de exames médicos. Encontrou o envelope referente a hemogramas, pertencia a d. Elvira, a mãe já falecida.
- - Felizmente, eu não tive problema para reconhecer meus pais por fotos, com a ajuda de meu irmão-procurador. Respirou fundo e continuou a busca.
Um outro envelope trazia resultados de seus hemogramas.
Bingo.
Consultando o mais antigo, anotou o nome do médico solicitante e a data da coleta domiciliar.
Tentou o contato com o otorrinolaringologista, o solicitante.
- Penso que ele deverá ter informações importantes.
- Marcarei uma consulta, Tereza me acompanha.
No consultório, Joanna conta ao médico a recente cirurgia e o transtorno mental que está enfrentando.
Ele não se surpreendeu. Buscou em seu computador o cadastro, mas não o encontrou. Desculpou-se, dizendo que o sistema foi corrompido por um ’hacker’, perdendo as informações, e aguardava o retorno de antigos clientes para recompor os arquivos.
Todavia, lembrou-se dela por ter feito uma cirurgia para corrigir o septo nasal. Lembrou-se, também, de sua mana Isabel, que foi acompanhante. Na saída do consultório Joana lembrou-se da irmã. Comentou com Tereza:
- - Onde ela estaria? Esqueci-me completamente.
De volta à casa, com a ajuda de Tereza, ocorreu-lhe a ideia de pesquisar os álbuns de fotografia e tentar reconhecer as pessoas fotografadas. Combinou, também, com Lourdes que seria uma tarefa prioritária a partir de agora.
Completavam um álbum, toda a família de seus pais. Um outro álbum continha suas próprias fotos como estudante e, ainda, havia uma caixa com fotos diversas, incluindo as viagens. Sua mãe teve o cuidado de organizar as fotos nos álbuns.
Poucos dias depois, Joanna sentiu pertencer a um extenso grupo de familiares, colegas e amigos e constatou ter viajado bastante.
Foi autorizada pelos médicos a sair de casa, com o uso de máscaras cirúrgicas, caminhar pela orla, comer em restaurantes discretos e passear pelos ‘shoppings’.
Joanna passou a ter uma vida quase normal.
Porém, Cássio não dava folga, surgia inesperadamente.
Joanna percebeu, todavia, que ele pouco se manifestava, quando ela estava junto a outras pessoas, conversando ou concentrada numa tarefa específica, com Lourdes ou Tereza por perto.
Quanto uma lembrança, referente à memória de Cássio, se manifestava, Joanna tentava desviar a atenção para algo, tentando se distrair, para mudar o foco do pensamento.
Às vezes funcionava, em outras ela se deixava levar pelas imagens.
Certa manhã, aborrecida pelas interferências da memória de Cássio, tome a decisão de não mais reconstruir o próprio passado.
- - A partir de agora, viverei a vida que Cássio não viveu.
- - Claro que não pretendo cursar medicina nem, tampouco, fazer as atividades que ele fazia.
- - O ponto de largada é a morte do rapaz, interrompendo seu futuro. Pedirei segredo a Lurdes e Teresa. - - Prosseguirei com os exames, a terapia, as consultas, em respeito aos médicos e pesquisadores que estudam o meu caso. Começarei com a aproximação aos pais do doador, para agradecer e iniciar uma amizade.
Joanna manifestou à equipe médica o seu interesse em conhecer a família do doador do cérebro. O cirurgião julgou pertinente e se dispôs a promover o encontro.
A cirurgia completou um ano.
Joanna continuou frequentando o hospital, prosseguindo no cumprimento do protocolo. Voltou a escrever crônicas com muita dificuldade, as palavras escapam, precisa recorrer sempre a Internet em busca de auxílio.
Ela descobriu as vantagens da IA (Inteligência Artificial) e ficou empolgada com a possibilidade de usá-la.
Dr. Clóvis, o cirurgião, organizou um encontro com os pais de Cássio durante um jantar, em ‘petit comité’, reunindo alguns integrantes da equipe.
Ocorreu no restaurante próximo ao hospital, já frequentado pelos médicos e funcionários.
Alice e Jaime, os pais, levaram uma foto do filho para Joanna conhecer.
Tereza a acompanhou. Ambas ficaram emocionadas com a descrição do rapaz por Alice. Jaime as convidou a visitá-los.
Já em casa, ela vestiu o pijama, preparando-se para dormir.
Em vão. Passou a noite em claro. Não dormiu, pois o rosto do rapaz, sorrindo na foto, não saia de sua cabeça. Levantou-se, cobriu-se com a colcha e foi ao jardim. Um gatinho estava recostado no muro. Surgiu a lembrança de Cássio repondo ração e água para a gatinha siamesa de nome Juma, sentado no chão da cozinha, observando a gata comer.
Em seguida, veio a lembrança do vira-lata Petrucho, pelo de arame e cor de fumaça.
Surgiram outras tantas.
Joanna, sacudia a cabeça, tentando focar no gato encostado ao muro. Ela não estava mais lá.
Adormeceu e acordou com o sol nascente. Entrou em casa, Tereza preparou a mesa do café, ao lado da caneca deixou os remédios da manhã, trocou o uniforme e esperou por Lourdes retomar o plantão do dia.
Logo que chegou, preparou uma lista de compras, deixou Joana acomodada no sofá da sala e saiu para o mercado.
Joanna voltou a dormir. Deve ter dormido por umas cinco horas, recuperando o sono perdido. Após o banho, buscou na geladeira um cozido de legumes e carnes congelado, preparado pela cozinheira quinzenal e requentado no micro-ondas.
Enquanto comia a refeição, veio a lembrança de Cássio: ela se via na cozinha, enquanto Alice preparava o jantar e Cássio a auxiliava, arrumando a mesa.
Jaime telefonou pela manhã avisando sobre seu retorno ao país e trazendo o presente prometido ao filho: um drone.
Jaime sempre trazia presentes, todas as novidades tecnológicas lançadas. O próximo presente deverá ser um robot.
AS VISITAS DE ALICE
Alice passou a visitar Joanna com frequência, nos períodos em que Jaime estava em viagens de trabalho.
Costumava passar as tardes de quarta-feira em sua casa, trazendo sempre um bolo, ou pães preparados por ela mesma. Ela era muito falante, e o assunto principal era o filho único acidentado.
Contou sobre sua infância, as dificuldades na escola, que detestava o avô paterno, um general do exército reformado. Evitava participar de competições esportivas, por timidez e medo de derrotas.
À medida que Alice narrava os acontecimentos, as imagens surgiam e Joana sentia-se transformada em Cássio.
Toda quarta-feira um novo episódio. Uma novela.
Surgiu a lembrança de uma discussão de Cássio com o avô paterno, que insistia para o neto seguir a carreira militar, apoiado por Jaime.
- - Uma lembrança dolorosa.
Sacudiu a cabeça para espantar a imagem.
Outra triste lembrança foi a morte da avó materna; do cheiro nauseante do ambiente do velório, da sala de jantar, a lembrança das pessoas vestidas com trajes pretos, depois o cortejo para o funeral e a fuga para o jardim, a noite ao relento, o medo de ter sido abandonado.
Outras lembranças são as da escola, dos colegas zombando, das dificuldades com a matemática, do carinho da professora de Geografia.
A bicicleta, o sonhado presente de aniversário e as quedas advindas da aprendizagem. O avô materno sempre esteve por perto nessas ocasiões. Fizeram um passeio, os dois, celebrando a conquista do neto, por ter aprendido a guiar..
Lembranças da adolescência e as mudanças corporais e emocionais.
O pertencimento ao grupo, os amigos e os desafetos. As decepções amorosas, a rejeição pela primeira paixonite.
As lembranças desfilavam pela cabeça de Joanna: o interesse por um instrumento musical, o violão e depois a guitarra elétrica, presente do pai. A formação da banda e as apresentações, primeiro na escola, em seguida em festinhas.
O trabalho no “Flerte” , o bar do pai de Estefânia, tio Nestor, irmão de Alice.
Alternava o serviço de assistente de barman com o de músico, tocava violão em alguns fins de semana. Experimentou a maconha, detestou pelo cheiro adocicado da fumaça.
TRISTE LEMBRANÇA
Um episódio desagradável ocorreu entre ele e Fabricio, até então seu melhor amigo.
Uma noite, estudavam juntos, em grupo, os prováveis temas de redação para o vestibular. O amigo puxou-lhe a mão para tocar sua genitália, levantou-se e deu-lhe um soco. Todos se surpreenderam, todavia, Stella, apaixonada por Cássio, revelou que Fabricio, homossexual, gosta dele. O grupo se desfez.
Indeciso sobre a carreira a seguir, aceitou a sugestão da mãe e prestou o vestibular para medicina. Aprovado, deixou o serviço de barman porém permaneceu no bar como músico, aos sábados. Após o primeiro período, aceitou uma monitoria na faculdade. Isso permitiu prosseguir os estudos, posto que não estava satisfeito com o curso, não desistiria, evitando decepcionar Alice.
De regresso de outra viagem, o pai trouxe um conjunto de equipamentos: estetoscópio, esfigmomanômetro, oxímetro, otoscópio, máscaras, martelos de reflexo, dentre outros.
Com o avanço no curso, passou a estagiar em ambulatórios e a acompanhar plantonistas em hospitais públicos, onde preferia atuar nas emergências. Interessavam-lhe as crianças acidentadas e acompanhava os casos que requerem tratamento intensivo.
Num plantão no Pronto Socorro, conheceu Moema, uma médica mais velha que ele, cirurgiã e iniciaram o namoro. Ele a acompanhava nos plantões.
A formatura tornou possível a reconciliação com o avô paterno, já em fase terminal de um câncer de fígado. Estava presente no momento do óbito, contudo não participou do funeral. A imagem do velório da avó materna é muito presente, principalmente a memória do cheiro na sala e a noite ao relento.
Moema viajou para uma especialização nos Estados Unidos, com uma bolsa de estudos de uma farmacêutica americana. Ele substituiu a namorada nos plantões dela e passou a fazer plantões como médico voluntário em clínicas e hospitais públicos, no setor de pediatria.
Alice detalhou o cotidiano do filho e Joanna revivendo cada cena, imersa na ‘personna’ dele.
Joanna não mais ouvia, ela os vivia ou revivia.
Joanna discutia com o avô militar; Joanna acompanhava a evolução da doença, Joanna estava junto, segurando sua magra mão na hora da morte.
Joanna atendia as crianças acidentadas na emergência. Joanna assistia a amputação de membros destruídos em acidentes com bicicleta ou trânsito, como atropelamentos ou colisões de automóveis.
Joanna fazia a sutura de feridas e cortes. Joanna assistia cirurgias longas e complicadas. Substituindo colegas exaustos de tantos plantões; uma rotina exaustiva era rotina.
Trabalhando no Bar do tio Nestor, Joanna aprendeu a preparar bebidas exóticas e lavar louças e vidros.
Joanna sentiu, novamente, a dor do corte da mão por um copo quebrado, impedido de tocar o violão por intermináveis dias. Sorte não ter afetado os tendões, o que o tornaria incapacitado para as cirurgias no hospital.
Estefânia, inesquecível, a prima professora de sexo. Na lembrança, o escândalo, quando tio Nestor os pegou em flagrante, os dois nus, no banheiro do bar. Fez sua ‘deportação’ para Bruxelas, para viver com a mãe, ajudando-a na loja e estudando.
A decepção com Juanita, a primeira ‘paixonite’ do rapaz, que preferiu namorar Rodrigo, um desafeto. O desentendimento entre eles foi causado por uma disputa esportiva.
Duda, Maria Eduarda confidenciou ser lesbica, morria de medo dos pais a mandarem para uma clínica de reeducação. Ele se propôs a namorá-la durante um tempo para ela ter coragem de contar aos pais. O falso namoro foi desmascarado por Stella, ciumenta. Para a surpresa de ambos, a mãe de Duda aceitou o fato e convenceu o marido a também aceitar. Ela era excelente aluna, campeã do time de basquete e medalhista em saltos numa Olimpíada, sua parceira era recordista em natação.
Quanto a Moema, Alice pouco se referiu.
Joanna, na memória de Cássio, lembrou-se de sua reação ao ser apresentada à médica. Um comportamento de mãe possessiva combinando com algum preconceito pela idade da moça e a cor da pele, escura como terra preta. Relutante, Alice se resignou ao fato, porém nenhum convite fez para visitá-la, tampouco compareceu aos eventos do filho, nos quais Moema estaria presente. Jaime, ao contrário, parecia gostar dela e a tratava carinhosamente.
Quando Moema anunciou a viagem, Alice preparou um jantar de despedida, provavelmente celebrando a interrupção do relacionamento. O pai prometeu vê-la na sua próxima viagem a trabalho, em companhia do filho. Cássio assumiu seus plantões, sentindo-se mais próximo da namorada ao falar do trabalho e os resultados obtidos com os pacientes.
Alice descreveu a cerimônia de formatura. O paraninfo escolhido foi o Secretário de Saúde Municipal, que introduziu melhoria nos serviços oferecidos pelos Postos de Saúde, principalmente a informatização. Por não ser um político de carreira e, sim, um técnico, deu prioridade a agilização do sistema e a melhor alocação dos recursos humanos e financeiros. A indicação de seu nome foi iniciativa de Cássio, que o conheceu num dos plantões. Os colegas foram unânimes na escolha.
Um dos fatos marcantes do início da carreira, foi o atendimento, na emergência, de um garoto de nove anos, violentado pelo padrasto. Fratura craniana, pulsos feridos por ter sido amarrado e hematomas na região lombar. O menino não resistiu, apesar de todos os esforços dos médicos. Faleceu.
Nessa noite, Alice contou que o filho não conseguiu dormir, preparou uma bebida, misturando tudo que havia de álcool em casa, pegou o violão e foi tocar no jardim. Amanheceu deitado sobre o canteiro das Petunias em floração. Joanna ouvia a narrativa, sentiu-se embriagada. Chorou muito.
Joanna sonhou noites seguidas com Cássio. Tem na memória recente uma melodia tocada no jardim, no dia da bebedeira. Curiosa, Joanna perguntou a Alice se existia gravação das composições do filho. Ela se prontificou a procurar. Jamais tocou nos pertences de Cássio, após o falecimento.
Disse não ter encontrado, embora tenha vasculhado o celular, o notebook e pen-drive. Forneceu o número de telefone de Duda, uma das primeiras namoradas, talvez ela pudesse saber. Ela mantinha uma coleção de gravações em CD de amigos. Encontrou, num pen-drive, apenas duas músicas tocadas no violão. Uma delas era a melodia ouvida em sonho.
Outra passagem narrada por Alice é sobre o funeral. Todos os colegas e companheiros compareceram. Alguns plantonistas, enfermeiros e paramédicos. Moema enviou uma coroa de flores amarelas, girassóis, as preferidas dele. O secretário de saúde compareceu, como também diretores dos ambulatórios onde ele foi voluntário. Tio Nestor, acompanhado de Estefânia, compareceu para despedir-se do sobrinho. Alguns clientes e músicos do bar foram prestar uma última homenagem a um ‘cara legal’, como se referiam ao amigo. Juanita e Rodrigo, casados, estavam presentes e Stella o beijou nos lábios frios.
O corpo, desprovido dos órgãos doados, foi cremado na presença apenas de Jaime e Stella. As cinzas foram espalhadas no percurso da a trilha percorrida por ele e o avô de bicicleta. Duda e sua parceira se ofereceram para levá-las.
Curiosamente, Joanna nada se lembrava do funeral, acompanhava a narrativa de Alice distraidamente.
Após a última visita de Alice, Joanna percebeu que as lembranças de Cássio não mais retornaram. Nada sobre o funeral do rapaz foi lembrado. A memória se apagou para sempre, todavia, não se recordava de nada acontecido antes da cirurgia para o implante do enxerto. Os fatos recentes eram esquecidos rapidamente, como se nunca houvessem existido. Tereza e Lourdes se revezavam, registrando em um caderno a rotina de Joanna.
Esse comportamento foi levado ao conhecimento dos médicos e terapeutas. Joanna não se queixava de dores e passava o dia na varanda com o olhar perdido.
O exame de imagem constatou que algo grave aconteceu. Joanna ficou hospitalizada mas não respondia ao tratamento intensivo. O irmão, a irmã Isabel, Lourdes e Tereza se revezavam no acompanhamento. Joanna não mais falava. As funções vitais estavam normais. Uma tarde, Joanna teve uma parada cardiorrespiratória e foi constatada morte cerebral.
Os irmãos consentiram na retirada do cérebro para estudos e o corpo foi cremado.
Alice e Jaime estavam em viagem pela Europa e não compareceram ao funeral.
Para a surpresa da equipe do Instituto de Neurociências, o enxerto implantado criou em torno do cérebro uma rede de fibras causando a morte de Joanna.
Uma equipe interdisciplinar está envolvida na pesquisa do fenômeno.