ABNER
Ana estava perto do canteiro de cebolinhas verdes da velha Inácia, junto à cerca da fazenda. As costas voltadas para mim. Ela não me viu. Sentei-me na cadeira de balanço da varanda cansado do peso do dia, servido de uma lata de cerveja gelada em mãos. A fresca da noite começava a cair. Gostava de estar ali. Descontraído. Sem pressa.
O balançar lento dos campos de trigo ao sabor dos ventos, sob a luz pálida da lua, dava-me à ilusão gostosa de apreciar as ondas de um mar calmo. Eu me perdia naquele efeito. A brisa ligeiramente fria e suave espalhava-se pelo ar. Afagava a minha pele quase como um toque materno. Algo muito relaxante. Era o tipo de calma que se espalha pelo corpo de modo lento e profundo. Faz o tempo desacelerar.
Nestes momentos, deixava-me levar pelo ritmo tranquilo. O corpo afundando na cadeira de balanço como se o vento me embalasse para longe de tudo. Esquecia das preocupações do mundo lá fora, de mim mesmo. Às vezes, olhava os animais vagando pelas cercas das propriedades vizinhas sem realmente prestar atenção, só para ver a vida passar, assim como se fosse tudo uma grande imagem em movimento.
A vida no campo tem suas pequenas futilidades de prazer, não? Prazeres simples que preenchem os vazios da rotina.
Lá longe, um pouco acima das plantações, eu podia ver o trânsito dos caminhões na rodovia com suas luzes tremeluzindo dentro da noite. Pareciam tão distantes quanto os meus próprios pensamentos. Mas, naquele dia, de algum modo, a quietude não conseguia me aliviar por completo. Estava preocupado com Ana. Por isso, deixei a preguiça de lado e falei tentando quebrar o silêncio.
— Quer um gole de cerveja?
Ela não me respondeu. Minha namorada mais uma vez parecia perdida em pensamentos. Uma calma estranha tomava conta dela, no entanto eu tinha certeza de não se tratar do mesmo efeito que as ondas de trigo à sua frente causavam em mim. Ana estava em outro mundo. Em algum lugar além dos campos!
Eu tinha começado a me preocupar. “Ora, ela não pode continuar assim deste jeito”. O que estava acontecendo com a minha Ana?
— Essa menina não está batendo bem do juízo não, meu filho - disse mamãe, certa noite, quando a encontrou parada em frente ao computador, os olhos fixos na tela, como um sonâmbulo. - Quando a pessoa costuma cair nessas cismas, não se lembra de nada. Esta menina precisa é de tratamento médico.
— Já conversei com Ana sobre isso, mãe. Ela não quer. Não posso obrigá-la.
A velha Inácia suspirou e deu de ombros, daquele jeito bem típico de quem já não sabe mais o que fazer.
— Estudar demais da conta deixa a pessoa meio aluada das ideias, sabia? Ainda mais essas coisas de computador!
— Foi por isso que a trouxe pra fazenda, mãe. Ela precisa de um tempo. A coitadinha precisa se afastar da correria da cidade, entende?
Mamãe deu uma risadinha irônica.
— Mas o computador veio junto, né?
Sorri, muito sem graça.
— Sim, a pobre não consegue ficar sem estar conectada na Internet por muito tempo.
Ana, havia já alguns meses, vinha entrando naqueles momentos de desconexão com a realidade. Totalmente absorta. Ficava entregue a olhar fixamente algum ponto qualquer sem relevância do qual, sabia-se lá o porquê, dedicava excessivo interesse. Nos últimos dias, começou a se isolar cada vez mais, mergulhada em contemplar o céu, fosse durante o dia ou à noite.
Levantei-me da cadeira, tomei um gole de cerveja e caminhei até ela em passos lentos. Estava decidido a trazê-la de volta. Cheguei ao seu lado e a olhei de perfil, apreciando sua beleza. Em seguida, mirei o céu na mesma direção para onde ela estava olhando, mas não vi nada de especial. Só o vazio pontilhado de estrelas. A lua cheia estava um tanto escondida na periferia do firmamento.
Pigarreei duas vezes a fim de chamar sua atenção, sem parecer abrupto. Queria resgatá-la do transe sem causar choque. Não deu muito certo. Não me ouviu. Então, resolvi mudar de estratégia.
— Querida, você ainda está sonhando com a tal esfera luminosa? – perguntei, sabendo que o assunto sempre tinha o inexplicável efeito de trazê-la de volta.
Ela não tirou os olhos do céu, é bem verdade, mas me respondeu sem pressa, como se estivesse falando sobre qualquer coisa trivial.
— Sim, quase todas as noites.
Eu tentei não parecer ansioso, no entanto a curiosidade estava me corroendo.
— E como foi da última vez?
Ela virou levemente a cabeça, porém sem desviar o olhar lá de cima.
— Nada de muito diferente, sabe? Quando me aproximo para tocá-la, eu... eu... simplesmente acordo.
O que eu sentia ao ouvir isso? Ora, era uma mistura de desconforto, de impotência. Toda aquela obsessão pelo céu, aqueles sonhos estranhos, os transes de alheamento temporário... algo estava errado.
Aproximei-me quase sem fazer barulho. Enlacei a sua cintura com o meu braço esquerdo de modo bem suave e lhe dei um beijo na bochecha. Ana estava tão absorta a ponto de não perceber a intensidade do meu gesto.
— Eu te amo, Ana - sussurrei, sentindo a paixão sufocar as minhas palavras.
Ela finalmente se virou para mim. Seus grandes olhos azuis e brilhantes encararam-me por um breve instante. Eu esperava ouvir as mesmas palavras, "eu te amo”, também. Mas em vez disso, a minha doce Ana apontou o dedo indicador para o firmamento coalhado de estrelas e, com uma voz baixinha, quase um murmúrio contado em segredo, me disse:
— Eles estão lá em cima nos espionando, querido. Querem entrar em contato!
ANA
O restaurante estava lotado. O ar era preenchido por um burburinho constante, um som de copos tilintando e conversas sobrepondo-se, como se cada mesa tivesse seu próprio universo de histórias. O cheiro de temperos e frituras permeava o ambiente, despertando o apetite de quem entrava.
Abner parecia integrado a essa atmosfera, com seu sorriso fácil e olhares de cumplicidade lançados aos conhecidos que o cumprimentavam de longe. Ele sempre fora assim, tão à vontade em qualquer lugar, especialmente em ambientes como este, onde todos pareciam conhecê-lo desde sempre.
Eu, por outro lado, me sentia deslocada. Mesmo tentando manter o sorriso, havia uma tensão subjacente. Queria apagar a impressão dos últimos dias. Meu comportamento distante e as desculpas repetidas sobre cansaço tinham começado a gerar um abismo entre nós. Ele não merecia isso. Talvez um jantar especial pudesse compensar, ao menos um pouco.
— Eu sabia que você ia gostar daqui. – disse em tom satisfeito de quem havia acertado na escolha.
Assenti, tentando acompanhar o entusiasmo dele.
— E está certo. O lugar é charmoso.
Ainda assim, minha mente insistia em vagar para territórios sombrios. Nossos últimos meses tinham sido difíceis. Abner vinha insistindo sobre meus lapsos de memória e momentos de ausência não serem normais. Ele queria que eu buscasse ajuda médica. E eu? Eu fugia dessa ideia.
Não era só o medo de uma explicação racional a me assustar. O problema era mais profundo. Esses lapsos... eles me puxavam para um vazio que eu não sabia descrever. Não era como esquecer um rosto ou perder a noção do tempo por um instante. Era uma sensação de se ausentar completamente. Como se minha própria essência fosse sugada para outro lugar. E, o pior, eu não conseguia encontrar respostas.
— Ana? — A voz dele quebrou meu devaneio, carregada de preocupação. - Está tudo bem?
Forcei um sorriso.
— Sim, estou bem. Só um pouco cansada - era sempre a mesma resposta. Ele sabia disso e, como sempre, preferiu não pressionar.
— Hoje vai ser especial, você vai ver. - Ele inclinou-se ligeiramente à frente, seus olhos brilhando como se guardassem um segredo. - Prepare-se para a melhor comida caipira que você já experimentou!
Sua empolgação era contagiante, mas eu não podia deixar de provocá-lo.
— Melhor do que os quitutes da sua mãe? Isso eu duvido.
Ele riu, o som ecoando alegremente entre as mesas.
— Minha mãe é quase uma entidade divina quando se trata de comida, mas aqui... aqui é especial. Confie em mim.
— E por que não jantamos com ela, então? - insisti, mais por diversão do que por interesse.
O sorriso dele tornou-se mais suave, quase conspirador.
— Porque hoje eu queria estar só com você. Tenho algo importante para te dizer.
— Algo importante? — perguntei, minha curiosidade aguçando.
Antes que ele pudesse responder, o garçom apareceu segurando um prato coberto por uma tampa de metal polida. Aquele brilho misterioso aumentou o suspense. O garçom colocou o prato na mesa com uma reverência exagerada, como se participasse de um ritual cuidadosamente planejado.
— O que é isso? - perguntei, olhando de Abner para o garçom, desconfiada.
— Abra e descubra - a voz de Abner carregava um entusiasmo que eu não via nele há tempos.
Levantei a tampa devagar, e o que vi me fez prender a respiração: uma pequena caixa de veludo repousava no centro do prato branco, como um tesouro. Meu coração disparou. Peguei a caixinha com as mãos trêmulas e, ao abri-la, encontrei duas alianças delicadas. O brilho do metal parecia refletir toda a emoção daquele momento.
Abner pigarreou, visivelmente nervoso e depois se levantou. Contornou a mesa para segurar minha mão. Ainda bem que ele não se ajoelhou!
— Ana, você aceita casar comigo?
As palavras dele pareciam ecoar dentro de mim dissipando, por um breve instante, todas as dúvidas e sombras. Senti meus olhos se encherem de lágrimas enquanto assentia repetidamente.
— Sim, eu quero! - respondi, a voz embargada pela emoção.
Ele sorriu um sorriso tão radiante que parecia iluminar o restaurante inteiro.
— Eu te amo, Ana - beijou minha testa, o gesto cheio de ternura. - Só falta pedir sua mão aos seus pais. Quando podemos falar com eles?
A pergunta, de repente, me tirou o chão. Minha alegria foi substituída por uma onda de confusão e vazio. Vasculhei minhas memórias, mas... nada. Um silêncio esmagador preencheu o espaço onde deveria haver alguma lembrança.
Então, como se as palavras viessem de um lugar distante, quase independente de mim, eu disse:
— Pais? Que pais? Eu... não me lembro dos meus pais.
ANA
No início, não fazia ideia do que estava fazendo naquele beco escuro. O lugar era sinistro, abandonado, e emanava uma sensação incômoda de desolação. Eu o conhecia bem; ficava perto do prédio onde trabalhava, no entanto àquela hora, na penumbra quebrada apenas pela luz vacilante dos postes, tudo parecia diferente. Hostil.
Foi quando reconheci a repetição daquela cena. Percebi estar sonhando. Um sonho lúcido. Isso era raro para mim.
Caminhando pela viela, uma vibração sutil percorreu o ar. As lâmpadas dos postes piscaram como se algo nelas tivesse se quebrado. Então aconteceu novamente: o grande globo luminoso surgiu no meio do beco, como se o próprio espaço o trouxesse à existência. Era uma esfera translúcida, enorme, pulsando com uma tempestade interna de relâmpagos minúsculos. Cada raio se propagava do centro para a borda enchendo a esfera de luzes que oscilavam entre tonalidades suaves de branco, azul e lilás. Era ao mesmo tempo lindo e aterrorizante.
Apesar de sua aparência ameaçadora, algo dentro de mim me impulsionava para mais perto. Minha mente dizia para fugir, mas meu corpo tinha outra vontade. Nas vezes anteriores, o sonho terminara antes de apenas contemplá-lo. Mas, desta vez, eu sabia que podia agir.
Respirei fundo e me aproximei. Estendi a mão, hesitante até meus dedos tocaram a superfície translúcida.
A reação foi instantânea. A esfera pulsou violentamente e sugou meu braço com força. Lutei para me afastar, porém era inútil. Um formigamento percorreu todo o meu corpo enquanto eu via meu braço se desintegrar em poeira luminosa dentro da esfera.
Gritei, tomada pelo desespero.
— Socorro! Alguém me ajude!
— Ana! - Ouvi uma voz familiar ao longe.
Virei-me para trás e vi Abner correndo em minha direção. Seu rosto estava tomado por pavor.
— Abner! - supliquei. - Me ajuda, por favor!
Antes que ele pudesse me alcançar, senti meu corpo ser completamente sugado para dentro do globo.
ABNER
Ana dormia ao meu lado. Seu sono era agitado. Após o incidente no restaurante, seu humor estava mais frágil. Ela recuara ao meu pedido de casamento. Decidira não pensar em casamento enquanto não resolvesse resolvidos seus lapsos de memória. Ao menos, depois de muita insistência, ela concordara em procurar ajuda médica.
Agora, deitado ao lado dela, eu a observava na penumbra do quarto. Seu rosto, mesmo tenso pelo sono conturbado, era incrivelmente bonito. Perdoem minha falta de modéstia, mas a minha Ana era a mulher mais linda que já conheci. Inteligente, divertida, carinhosa... Nos momentos em que estava realmente presente, ela me fazia sentir o homem mais sortudo do mundo.
Mas, ao mesmo tempo, era difícil ignorar as sombras de dúvida rondando nosso relacionamento. Minha mãe, Dona Inácia, dissera com todas as letras que eu estava indo rápido demais. “Você nem sabe de onde essa moça veio, meu filho!” E ela tinha razão. Ana pouco falava do passado ou da família, e isso sempre parecia um ponto cego entre nós.
Enquanto pensava, notei uma mudança nela. Seu corpo enrijeceu, as pálpebras tremiam, e ela murmurava algo, quase inaudível. Inclinei-me para ouvir melhor:
— Abner... a esfera... ela vai me absorver...
Meu coração disparou. Ana estava tendo um pesadelo, contudo a intensidade de sua voz me preocupava. Coloquei a mão em seu ombro e a sacudi suavemente.
— Ana, acorda. Estou aqui.
Ela se levantou num sobressalto. Os olhos arregalados de pavor. Olhou ao redor como se esperasse encontrar algo terrível no quarto. Quando me viu, lançou-se nos meus braços e começou a chorar.
— Abner... querido... - ela balbuciou entre soluços. - Acho que fui abduzida por alienígenas...
Tentei acalmá-la, mas por dentro, uma onda de preocupação tomou conta de mim. Algo estava muito errado com Ana. E eu não sabia se seria capaz de ajudá-la sozinho.
O problema mental de Ana era muito mais sério do que eu pensava.
ABNER
Quase duas semanas haviam se passado desde o pedido frustrado de casamento e o acordo para procurar um neurologista. No entanto, Ana parecia ter jogado tudo para debaixo do tapete. Desconversava quando eu tencionava falar sobre o assunto. Resolvi não insistir. Era melhor dar tempo para que ela assimilasse a gravidade do problema.
Ainda assim, eu queria resolver aquilo antes das nossas férias terminarem. Pedi à mamãe, entre suas reclamações costumeiras, para evitar tocar no assunto até Ana decidir, por conta própria, enfrentar a situação com a seriedade necessária.
Hoje, ao olhar para trás, vejo com estranheza essa minha passividade. Sempre fui decidido e não sei explicar direito como deixei as coisas seguirem soltas. Não me posicionei de forma firme para pressionar Ana a procurar ajuda. Aquela negligência não parecia condizer com o meu comportamento habitual. Apenas consigo atribuir essa minha apatia a algum tipo de influência de Ana sobre mim. Algo que, na época, escapava ao meu entendimento.
Apesar disso, aqueles dias foram surpreendentemente tranquilos. Ana não demonstrou mais os desvios da realidade. Voltamos a ter uma convivência maravilhosa. À noite, nos entregávamos ao amor. Durante o dia, passeávamos pela vizinhança. Ela até se divertia com as tarefas da fazenda, insistindo em aprender a ordenhar a vaca leiteira de dona Inácia só para brincar comigo. Parecia estar genuinamente feliz, deixando de lado até o computador e a internet.
Hoje, não posso evitar de pensar que, talvez, inconscientemente, ela soubesse que algo estava prestes a acontecer e quisesse me oferecer aqueles últimos momentos de felicidade.
Então, em uma madrugada silenciosa, fui despertado pelo som de passos no assoalho de madeira do andar de baixo. Passei a mão pelo lado da cama e notei a ausência dela. Levantei em sobressalto. Vesti-me às pressas, pegando as roupas que estavam largadas sobre a cômoda.
O rangido da porta principal ecoou na quietude da noite, fazendo minha apreensão aumentar. Corri até a janela e, olhando para fora, vi Ana, envolta em uma grossa jaqueta para se proteger do frio, caminhando em direção ao carro. Seu andar cadenciado era o de uma sonâmbula, cada passo carregando uma determinação inquietante.
Quando ouvi o som seco da porta do carro se fechando, a intuição me atingiu com força: ela estava indo para o beco. O lugar das suas divagações e delírios. Certamente, procurava confrontar aquilo que tanto a atormentava: o círculo reluzente que invadia seus sonhos.
Desci as escadas em disparada, ignorando as perguntas urgentes de dona Inácia. Peguei a moto na garagem e parti sem hesitar. Quando passei pela porteira, ainda consegui avistar os faróis traseiros do carro de Ana, agora pequenos pontos de luz se perdendo na escuridão. Girei o acelerador com força. Não podia deixá-la enfrentar aquilo sozinha.
ANA
O beco parecia me chamar, e eu fui atraída por ele como um ímã. Não havia resistência possível, apenas um desejo incontrolável, um impulso urgente e visceral por me arrastar até aquele lugar sombrio e decadente.
Quando finalmente entrei na viela abandonada, percebi que aquilo não era um sonho. A realidade estava distorcida, mas palpável. Diante de mim, o enorme globo translúcido pulsava de energia. Relâmpagos serpenteavam em seu interior, uma dança de caos e luz desafiando qualquer lógica conhecida.
Eu deveria sentir medo, fascínio, ou mesmo hesitação diante de algo tão monumental. Meu espírito estava entorpecido, desprovido de emoção. Não havia euforia, nem terror, nem curiosidade. Apenas uma certeza absoluta: eu precisava entrar naquela esfera. Nada mais importava.
Enquanto me aproximava, o ar parecia vibrar ao meu redor, carregado de uma energia que me fazia os pelos da nuca se arrepiarem. Quando faltavam poucos passos para alcançar o círculo, uma onda de vibração distinta se propagou atrás de mim. Não precisei me virar para saber: Abner estava ali!
A visão dele me chegou de forma peculiar, quase como se eu estivesse enxergando através dos olhos dele. Vi a mim mesma: uma figura diminuta, à frente daquela bolha monumental, envolta em uma luz inquietante. Senti a angústia que tomava conta dele, o tremor no seu corpo, o som do seu coração batendo descompassado. Sua mente estava inundada de incredulidade, um misto de pavor e confusão ao tentar processar a cena surreal diante dele.
Minha consciência, de algum modo inexplicável, se expandiu tocando a dele. "Fique onde está," enviei a mensagem diretamente à sua mente, sem palavras, apenas intenção. A voz em minha cabeça soou firme, decidida, como se viesse de algo que não era inteiramente eu.
Ele congelou. Obedeceu sem questionar.
Agora, não havia mais o que esperar. A esfera pulsava em um ritmo hipnótico, como um coração chamando o meu. Dei o último passo e estendi a mão. Quando toquei sua superfície, ela me acolheu, me absorveu completamente. Tudo desapareceu em uma explosão de luz e silêncio.
DE ANA PARA ABNER VIA E-MAIL (5 ANOS DEPOIS)
Há muitas formas de prazer no universo. Para os humanos, por exemplo, comer ou fazer sexo são algumas dessas condições essenciais de contentamento. São momentos de satisfação plena, ainda que fugaz. São prazeres extrapolando o simples regozijo, pois também estão enraizados nas necessidades básicas de sobrevivência e perpetuação da espécie.
Nós, os Niescentes, também temos formas de prazer, ainda que nossas experiências sejam distintas das de vocês. Uma das mais sublimes é o estado mental da qual vocês poderiam atribuir de “epifania”: a revelação transcendente. O entendimento inesperado que conecta as peças dispersas de um enigma em uma única verdade deslumbrante. Para nós, esse estado não é apenas um prazer, é uma necessidade vital, parte de quem somos como espécie.
Chegar a esse estado, porém, não é simples. Requer sacrifício e pode parecer incompreensível para vocês humanos. Precisamos abandonar temporariamente o acesso às nossas próprias memórias. Apagar quem somos a fim de acolher e vivenciar plenamente as memórias, emoções e pensamentos de outra criatura.
Durante esse processo, nos tornamos receptáculos de experiências alheias, explorando-as em sua plenitude. Livres da interferência de nossa própria identidade. Foi assim que Ana, a matriz humana que escolhi, se tornou parte de mim.
Sei que esta revelação pode te ferir. Mas você, Abner, já experimentou algo próximo de uma epifania? Já sentiu aquele momento de clareza súbita saindo da escuridão da ignorância absoluta à compreensão cristalina, como se uma luz divina houvesse se acendido dentro de você? Essa é a melhor aproximação a se fazer para explicar o que senti quando entrei no Iluminador Cósmico.
O Iluminador é mais do que um portal. É uma tecnologia desenvolvida para induzir a epifania, para conectar memórias simbióticas entre o Niescente e a matriz assimilada. Quando a verdade de Ana e minha própria essência se entrelaçaram, percebi a vastidão das experiências humanas absorvidas. Foi um momento de iluminação absoluta, um prazer indescritível que ainda reverbera em mim até hoje.
Agora posso te contar quem sou. Sou um Niescente, uma das espécies mais antigas do universo conhecido. Pertencemos a uma casta projetada para explorar e catalogar o cosmos. Minha linhagem é a de transmorfos de pesquisa, seres moldáveis, capazes de assumir formas e absorver experiências de outras espécies para fins de estudo.
Minha missão na Terra era simples, mas vital: coletar informações sobre este planeta recém-descoberto. Vocês, humanos, são fascinantes, com suas mentes repletas de conflitos e contradições, de hábitos intricados, capazes de criar e destruir em igual medida.
Durante o processo de assimilação, dos quais você poderia ter interpretado como lapsos de esquecimento, na verdade eram momentos em que eu processava a vastidão de dados capturados, ajustando-me entender a complexidade de sua espécie.
A família de Ana merece minhas desculpas. Infelizmente, o processo de assimilação destrói a matriz original, inutilizando-a permanentemente. Ainda assim, uma parte dela vive em mim: seus traços, fragmentos de suas memórias, um eco potente do que ela foi. Isso pode não servir consolo, no entanto saiba que Ana não foi perdida completamente. Ela agora é parte de algo maior.
A esfera que você viu, o Iluminador Cósmico, não era apenas um portal de epifania. Era também um teletransporte projetado para me levar de volta à nossa nave, escondida sob camuflagem no lado escuro da Lua. Naquele momento, minha capacidade de armazenamento estava sobrecarregada e precisava retornar antes que os dados começassem a se misturar, comprometendo tanto minha missão quanto minha identidade.
Agora, escrevo de um ponto distante no universo. Não posso te mostrar minha verdadeira forma. Prefiro que a última imagem de mim seja na figura de Ana. Ela, ou melhor, eu, queremos que você lembre de nós como éramos.
Abner, viva sua vida. Seja feliz. Eu, Ana, sempre quis isso para você.
Com o que resta de mim... adeus.
Nota do autor: Este conto foi publicado em 22/05/21. Na época tive que limitá-lo a 2.500 palavras por causa de um desafio literário. Deletei o original e o reformulei do jeito que queria.