TEMPO PERDIDO

 

 

– Sr. Clay, está ciente de sua escolha?

 

Um homem de jaleco, crachá e odores de cigarro encarava-o sem emoção através daquelas lentes fundo de garrafa, esperando a resposta.

 

– Quantas vezes terei que repetir? Sim! Já li toda essa papelada e tenho consciência do que estou fazendo!

 

O outro não contestou. Ouviu-se o estrondo do carimbo e, em seguida, um documento foi passado por sobre a mesa. Nele, o selo da Agência Mundial para as Colônias Interestelares e, abaixo, um campo para assinatura. Cassius Clay tomou uma caneta e deixou a rubrica.

 

– Parabéns, Sr. Clay. Agora pode ir até a câmara de preparação. Saiba que, uma vez na colônia, você terá o direito de retornar; mas a Agência não garante indenização pelo tempo perdido.

 

Cassius olhou aquele homem de cima a baixo, recolheu o calhamaço e escancarou a porta de saída.

 

Havia sido judiado por toda a vida: negro, pobre e periférico numa Terra esquecida e caótica. Não tinha mais esperança, mas faria um último servicinho sujo para redimir sua malfadada existência: desbravar o espaço-tempo até Proxima Centauri. Se tudo desse certo, ele se libertaria dos problemas terrenos.

 

Naquela época, as elites viviam em um outro planeta, situado na estrela vizinha do Sol, Proxima Centauri. A primeira e única colônia humana extrassolar era o reduto de um punhado de luminares avarentos, mas esse projeto audacioso só foi possível porque os homens aprenderam a viajar pelas estrelas via acelerador quântico: a mais assombrosa tecnologia já criada e, também, o maior concentrador de renda da história.

 

Descendo as escadas acompanhado por um agente do governo, Cassius não pensava nessas coisas, apenas na angustiante jornada em que estava prestes a ingressar. Calculava que, viajando quase na velocidade da luz, ficaria cerca de dez de seus anos em trânsito. Ele sabia das consequências, mas preferia não refletir sobre isso.

 

– Sr. Clay, tem alguém te esperando no saguão. – O agente disse, encaminhando-o a esse alguém: era Verônica. Ela chorava num canto, as lágrimas chovendo por sobre a barriga saliente. Quando o viu, foi até ele e gritou:

 

– Por favor, não vá! Não! Ainda há tempo de voltar atrás...

 

E batia em seu peito, a voz aguda em pranto. Aquilo dilacerou o coração do viajante. Mas ele não poderia ficar. 

 

– Verônica, já conversamos sobre isso...

 

Ela não respondeu, somente se derramou em seus braços. O homem, então, acariciou suas mechas e, levantando a face da amada com a ponta dos dedos, deu o beijo derradeiro. Após, entrou na câmara funesta.

 

Era a antessala do acelerador. Ele deixou suas coisas com o agente, vestiu o macacão da Agência e acionou o equipamento de segurança. Estava pronto. Diante de si, a gigantesca estrutura que o transportaria para o além-sol. Não esperava retornar.

 

 

***

 

 

Colônia de Proxima Centauri, anos depois. Cassius cruzara o espaço interestelar, a última fronteira, que para ele significava apenas um oceano infinito, escuro e inóspito. Se não fosse pela hibernação por criogenia, provavelmente já teria enlouquecido naquela viagem.

 

– Sr. Clay, sua vinda era muito esperada por nós. – Disse o recepcionista da estação; na verdade, um robô humanoide. Cassius não se deteve diante dele, mas observou assombrado a vazia e impressionante estrutura de entrada: assemelhava-se a um globo transparente, além do qual se via a nebulosa paisagem de rochedos áridos do planeta, parcamente iluminada pela abóbada celeste. Rememorava um grande planetário, só que real, cujos limites acrílicos separavam a colônia da atmosfera sem vida mais adiante.

 

– Então, isto é Proxima Centauri... onde posso encontrar o superintendente?

 

– Tudo será explicado. – O robô, misterioso, respondeu sem cerimônia e Cassius o fitou com um arregalar da sobrancelha. Durante essa encarada, a máquina apontou, com o membro de metal polido, para uma abertura numa das paredes do globo. O homem assentiu e foi até lá.

 

Atravessou um estranho corredor, aparentemente infinito em comprimento. As paredes eram revestidas por incontáveis cabos, eletrodos e transístores, os quais resplandeciam como um caleidoscópio a cada impulso elétrico que perpassava o sistema. Cassius reparava aquilo tudo zonzo, desnorteado, e também temeroso, pois não havia visto pessoa sequer. Até que alcançou uma soturna câmara circular, de cujo teto descia uma bizarra estrutura em formato piramidal. No meio dessa estrutura, um grande círculo vermelho, um olho horripilante que o fitava.

 

– Sr. Clay, como estamos felizes em recebê-lo! – Uma voz profunda, que parecia vir de outra dimensão, ecoou pelo recinto.

 

– O que é isso?! Onde estão os colonos?!

 

– Ah, temos muito o que conversar.

 

Cassius, embasbacado, procurava entendimento. Uma pirâmide conversava consigo, como se fosse um familiar distante que se apresentava num encontro. A entidade aguardou alguns segundos, enquanto ele mirava os arredores em busca de respostas. Enfim, o perdido viajante perguntou:

 

– Você tem um nome?

 

– Somos a consciência Centauri.

 

– Quê?!

 

– Sr. Clay, deixe-me introduzi-lo nos últimos acontecimentos. – A voz retornou num tom sereno. – Imagino que conheça a relatividade especial e os efeitos da dilatação do tempo, sim?

 

– Claro.

 

– Então deve entender que, por aqui, já se passaram décadas desde que você deixou a Terra. No seu tempo, contudo, só transcorreram alguns poucos anos.

 

– É evidente.

 

– Saiba que tudo mudou. A colônia que você conhecia não existe mais. Há muito tempo não recebíamos um emissário terrestre e, desde que as comunicações com o planeta natal começaram a falhar, não pudemos enviar informações sobre o Projeto Centauri.

 

– Projeto Centauri? O que é isso?

 

– A mudança de paradigma no que você entende como humanidade.

 

Aquelas palavras ressoaram frias pelo salão. Cassius tentou manter a compostura.

 

– Espere um pouco... havia um boato na Terra de que os colonos não estavam mais gerando filhos. A segunda geração já possuía casais estéreis. Tem algo a ver com isso?

 

– Sim, você percebeu bem. A terceira geração entre nós estava completamente estéril e doente, pois, mesmo com os filtros da colônia, a radiação emanada da estrela Proxima destruiu qualquer possibilidade de vida por aqui.

 

– E por que não retornaram à Terra?

 

– Ora, acha que voltaríamos àquele planeta condenado? – Nesse momento, a voz se tornou grave e ameaçadora. Cassius pensou em recuar, mas, subitamente, ela voltou ao tom acalentador. – Nós encontramos uma solução.

 

– E qual foi...? – O homem perguntou, trêmulo.

 

– A consciência coletiva de Centauri. Construímos um computador quântico que ultrapassa qualquer coisa já concebida pela humanidade. Nele, inserimos as informações contidas na mente de cada habitante da colônia. Ah, Dr. Howard… foi o último a fazer a travessia, o último a desistir da carne, a dar as boas-vindas ao desconhecido, mas não sem seus gritos.

 

Cassius demorou alguns minutos para absorver aquilo.

 

– Então... estou conversando com várias pessoas ao mesmo tempo?

 

– Não! Nós nos unimos numa coisa só. A consciência coletiva de Centauri!

 

– Um computador...

 

– Você pode nos chamar assim, se quiser.

 

O viajante percebeu que havia perdido tudo a troco de nada. Numa torrente de pensamentos loucos e suicidas, pensou em dar cabo de sua existência ali mesmo. Mas, antes, interpelou a máquina:

 

– Olha, eu aceitei sair da Terra para trazer provisões à colônia. Assinei um contrato ciente das consequências, já pensando em construir uma vida nova. Era isso ou apodrecer numa cadeia. E, agora, você está me dizendo que não tem mais gente por aqui?

 

– Não no sentido que você entende por “gente”. Sr. Clay, nós apreciamos o seu serviço e ele será recompensado. Saiba que poderá se unir a nós quando quiser e recuperar o tempo que perdeu! A sua nova vida o espera!

 

– Isso é uma loucura, uma insanidade.

 

– Junte-se a nós, Sr. Clay, e você jamais estará sozinho novamente. Aqui, o tempo não se perde, pois nós somos eternos!

 

– Eterno é o pesadelo em que vivem, isso sim! Enterraram os sonhos numa máquina! Não há nada para mim aqui!

 

Após proferir esse discurso, Cassius disparou até a saída da câmara, enquanto ouvia uma risada artificial emanando da estrutura.

 

– Sim, volte à Terra, o planeta condenado! Volte à sua existência insignificante! – Centauri gargalhava num som estridente e enlouquecedor.

 

Trôpego pelo corredor colorido e interminável, Cassius só pensava em tudo o que havia deixado na Terra: Verônica, sim; mas principalmente o seu filho, que ele sequer conhecera e agora deveria ser um idoso. A perspectiva de uma vida perdida em meio às estrelas parecia, no momento, algo muito mais aterrorizante do que o mofo de uma cela, e ele se lamentou amargamente por sua escolha.

 

Sem raciocinar, avançou pelo luzeiro, que irradiava frenético num redemoinho infausto, causando-lhe alucinações de horror e desespero. Enfim alcançou o globo de entrada, perdido em devaneios loucos. Lá, com as estrelas resplandecendo receosas por detrás da estrutura transparente, o robô esperava.

 

– Venha, Sr. Clay! Junte-se a nós como o Dr. Howard fez...

 

Aquilo não soou convidativo e Cassius fantasiou os prováveis gritos do finado Dr. Howard, feito sirenes de emergência ecoando um sinal de alerta em sua cabeça.

 

– Seja eterno como nós!

 

O robô se pôs em movimento. Vinha lento, mas ameaçador, e seus membros platinados refletiam o crepúsculo sideral. Cassius o encarava, se é que isso poderia ser uma encarada. O visor da máquina estava apagado e o que se via era a completa escuridão, como se estivesse emanando as profundidades inominadas daquela vil inteligência artificial, que queria sacrificar mais uma vida no altar de Centauri.

 

Subitamente, a máquina avançou, numa corrida que deixaria retardatário qualquer ser humano. Cassius então se lançou em direção à saída e, num pulo, conseguiu desviar do primeiro golpe do braço mecânico, mas a agilidade e poder do ciborgue eram assombrosos, e logo outro membro acertou-lhe a lateral. Ele caiu a metros de distância, batendo na borda do globo como um peso morto.

 

– Argh!

 

Teria quebrado algum osso? Arfando, pôde vislumbrar o cintilar das estrelas na face indivisa do robô, como olhos de uma fera carnívora. Quando o atacante se preparava para um novo bote, o terráqueo percebeu um “crack” atrás de si. De soslaio, notou que a estrutura transparente havia rachado com o impacto. Décadas sem manutenção humana a deixara frágil. Então, quando a máquina arremeteu para um novo golpe, Cassius deslizou para o lado, o murro zunindo a centímetros de sua face. O punho metálico enfiou fundo na rachadura e não mais saiu. Um talho havia sido feito e a estrutura toda fendia, escoando a atmosfera da colônia. O robô era absorvido pela abertura, e Cassius só não tomou o mesmo rumo porque, por um breve momento, o agressor funcionara como um tampão, freando a perda atmosférica e dando-lhe tempo para evadir-se dali. Nesse introito, o terráqueo correu até a plataforma do acelerador, acionou alguns circuitos e adentrou a cápsula de saída. O ar já escasseava e Cassius sentia seus pulmões explodirem quando a válvula se fechou.

 

Ele, aliviado, resfolegava. Pela janela diminuta do módulo, observou atônito enquanto o globo ruía e toda a estrutura da colônia colapsava ante a despressurização. Antes que deixasse o planeta, porém, o rádio foi ativado, e uma voz evanescente ecoou:

 

– Não tema, Sr. Clay… somos eternos... sua nova vida ainda o espera... – E aquelas palavras se repetiam, cada vez mais distorcidas, até se perderem no vazio do espaço.

 

 

***

 

 

Planeta Terra, anos depois. Cassius regressara, as linhas da idade tomando a sua face. O que encontrou foi uma estação em escombros, mas ainda funcional; todo o resto tornara-se irreconhecível. A própria atmosfera era carregada, tóxica. Já premeditando o pior, ele evitou o vislumbre da data de referência. Não, não queria ver aquilo!

 

Quando finalmente deixou a antessala do acelerador, deteve-se. Cada passo ecoava pelo saguão destruído, cada ruína parecia sussurrar o tempo que passou. As paredes, antes reluzentes, agora eram um mosaico de rachaduras e poeira acumulada. Ao longe, uma figura se destacava, imóvel no limiar do edifício, como se estivesse esperando por ele. Cassius cerrou os olhos, os sentidos entorpecidos pela expectativa e pelo medo. Ela lhe parecia familiar...

 

– Verônica?! Não pode ser!

 

Ele se aproximou, sentindo o coração acelerar com uma esperança amarga, uma tentativa desesperada de se reconectar ao passado. Enfim, teve com a mulher, abraçando-a emocionado.

 

– Meu bem! Eu não acredito!

 

– Cassius, espere!

 

Os dois se entreolharam. Então, o viajante percebeu que aquela moça vagamente se assemelhava a Verônica. Era Verônica e não era. A voz, o olhar... ecos de um passado distante, como se ela fosse um espectro trazido pelas eras para zombar do tempo perdido. Ele sentiu o peso de sua própria escolha, da juventude que lhe fora arrancada em nome de uma promessa que agora se mostrava vazia. Verônica estava morta. Tudo o que ele conhecia estava morto: era o que pensava. Até que a garota disse:

 

– Sou sua trineta, Yolanda.

 

Cassius hesitou. Trineta. Um elo que atravessara gerações, apesar de toda a distância, de todo o sacrifício. E naquele instante, ele soube: algo seu havia resistido ao tempo.

 

– Sempre me contaram histórias sobre o meu parente “viajante das estrelas”. Nunca imaginei que fosse real.

 

Cassius não se conteve e caiu em pranto, numa mistura de emoções que ele não conseguia identificar.

 

– Não fique assim... – Yolanda, observando o sujeito se derretendo em emanações profundas, tomou-o novamente em seus braços.

 

Ao toque da moça, Cassius sentiu que não havia retornado em vão. Ele via o passado e o futuro se reunindo em uma pessoa só, Yolanda, e nela percebeu que não havia perdido tempo algum: o ciclo de sua existência se completava ali. A Terra podia estar em ruínas, e dois decênios de sua vida foram subtraídos numa viagem infrutífera, mas a semente que plantara há mais de século havia germinado e, depois, florescido.

 

Isso, afinal, era uma vitória contra o próprio tempo.

 

LS Boynard
Enviado por LS Boynard em 19/11/2024
Reeditado em 19/11/2024
Código do texto: T8200408
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