A Milícia de São Simão
A Milícia de São Simão
"De fato, todos os que desejam viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos."
2 Timóteo III:XII
— Na verdade ó Pai, vós sois santo, fonte de toda a santidade. Santificai, pois, estes dons, derramando sobre eles o vosso Espírito, a fim de que se torne para nós, o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. — A voz de padre André reverberava em nosso peito trazendo uma paz sobrenatural.
A calmaria da missa contrastava com as batidas insistentes nas portas laterais da igreja. As bestas do lado de fora rosnavam, mas o sacerdote se mantinha como uma pedra inabalável. Ele prosseguiu com a missa, apesar da bagunça lá de fora. E nós encontramos um refúgio momentâneo no Corpo de Cristo.
Esforcei-me para viver a ação de graças da melhor forma possível, pois o caos que se ouvia era de mexer com os nervos. Conseguíamos ouvir as lascas de madeira se desprendendo com os golpes daquelas unhas malditas raspando as paredes e as portas. Tinha certeza de que fomos seguidos pelos demônios carniceiros que avistamos nas redondezas das florestas de eucalipto, ao leste de Lençóes.
Assim que terminou a missa, eu e Tiago entramos na sacristia para buscar para buscar nossas coisas. Nossos pertences estavam aos cuidados do vigário paroquial, portanto, já deviam estar abençoados.
O santuário ficou pequeno com tanta gente reunida no mesmo lugar. A grande movimentação não era nenhuma surpresa, considerando os perigos que rondavam a região que ia do Rio Lençóis até o Tietê. Dentro da igreja havia dezenas de padres, freiras, soldados da Ordem de Cristo, enfermeiros e nós, membros da Milícia de São Simão.
— Sem aquelas cruzes de aço, não sei o que seria de nós — disse Tiago, observando as cruzes pregadas nas espessas portas da igreja.
— Agradeça a Arquidiocese de Botucatu. Esses objetos foram enviados pelo próprio bispo. Seríamos estraçalhados por aquelas mandíbulas do inferno sem essa proteção extra — comentei, enquanto ajustava a bainha da minha espada.
— Não quero nem imaginar o que aconteceria conosco, Davi. Bendito seja Deus pela vida de Dom Carlos. — Tiago ainda nem tinha ingressado no seminário, mas já tinha um olhar marcante de um sacerdote.
Após um ano de treinamento intenso no Seminário da Serra de Avanhandava, nós estávamos prontos para se entregar a Cristo . Mês passado, somente dez dos quarenta acólitos voltaram da capital após a operação Lux in Tenebris. Nossos superiores estavam preocupados, portanto, dobraram os jejuns, as orações e nosso treinamento. “Mens sana in corpore sano”*
Estávamos em duzentos combatentes e nos dividimos. Um grupo se estabeleceu na cripta escavada abaixo do Santuário Nossa Senhora da Piedade, o outro ocupou a nave da igreja. Uma atmosfera de mistério pairava sobre nós. Tudo a nossa volta sussurrava medos e desespero.
— Você se sente pronto, Davi? — questinou Tiago. Ele me conhecia melhor do que ninguém e não seria possível esconder nada dele.
— Conto com a graça de Deus. “Tudo posso naquele que me fortalece” — respondi de forma evasiva. — Deus Vult
— Deus Vult. — respondeu ele fazendo o sinal da cruz. — Só não vai sair correndo como fez naquela vez que encontramos cachorro na esquina da rua de casa — disse, rindo em seguida,
— Você nunca vai esquecer isso não é mesmo? Isso foi há dez anos. Não vê que agora sou um homem. — Eu gostava de usar o sarcasmo com o Tiago. Ele era acólito diferente.
— Tá, tudo bem! Só por que está com barba, não quer dizer que seja o bonzão.
— Pare de conversa fiada e me passe uma ampola de água benta, vai.
De repente o sino tocou e as badaladas pareciam entrar em nossas cabeças. As feras haviam parado de raspar do lado de fora. Na verdade, elas odiavam a missa. A luta precisava acontecer e estávamos determinados a expulsar aquela horda diabólica do nosso território. Todos armados e preparados.
Olhei para altar-mor vazio e me recordei de uma fotografia da imagem da Pietá. Tão bela. Uma pena que foi retirada da igreja. Gostaria de poder rezar aos pés da Mãe da Piedade. Agora só resta o altar-mor sussurrando as velhas histórias do passado lençoense.
Chegamos à torre usando a escada em espiral no interior da igreja. A cada degrau um nó na garganta; coração acelerado. Protegidos pelas jaulas improvisadas no telhado, os arqueiros se posicionaram nas guaritas. Na mira, havia cinco carniceiros farejando as redondezas. Eram cães enormes, do tamanho de um touro mais ou menos. Uma espessa baba escorria de suas mandíbulas. Seus olhos vermelhos infernais estavam à procura de cristãos. Seu cheiro? Enxofre.
Os arqueiros foram certeiros. Os cinco demônios morreram assim que tiveram seu crânio perfurado pelas flechas. Nada como uma ponta de flecha molhada em água benta, direto da pia batismal. A partir dessa pequena vitória, ganhamos terreno. Descemos do telhado pela escada lateral do santuário até chegar ao chão. Fomos em grupos compostos por dez soldados andando através do pátio do santuário.
O sucesso do ataque dependia da estratégia traçada dentro das paredes da paróquia. Pelas contas da patrulha de reconhecimento, uma dúzia de bestas atravessaram a barreira da Boca do Sertão. Sabíamos que elas estavam em nosso território e precisavam ser abatidas caso contrário, os moradores que vivem dentro da segunda muralha, sete quilômetros daqui, poderão sofrer graves consequências.
Pedro, nosso capitão, era extremamente hábil e muito experiente em combate de campo. Alguns o chamavam de acumulador de milagres. Eu o tinha como meu pai, afinal, ele me ensinou tudo que sei. Seus últimos dez anos foram marcados pela guerra contra os exércitos infernais.
Nosso grupo avançou até a margem do rio, ao lado de um ferro velho. Avistamos a primeira fera. Estava se alimentando de um corpo bem atrás de uma carroça toda enferrujada. A flechada de Arthur foi suficiente para debilitar a perna exposta do animal. Passamos pela ponte silenciosamente e demos a volta para atacar pelas costas.
O monstro sentiu nosso cheiro, virou-se com a boca ensanguentada. Eu estremeci quando olhei nos olhos demoníacos à minha frente. Ela correu em nossa direção, enquanto isso, nos dividimos em dois grupos. Os da esquerda lançaram uma rede de caça que a prendeu e nós atacamos o dorso enquanto ela tentava escapar da armadilha. A rede foi suficiente para imobiliza-la, mas a coisa continuava a dar patadas a esmo. Uma delas me acertou. Gritei de dor enquanto o líquido vermelho pulsava do meu braço.
Depois de vários golpes o carniceiro ainda se debatia no chão. Tiago tomou uma sábia decisão. Subiu em cima de uma carcaça de um carro velho, salto e cortou a cabeça do animal com a sua espada. O crânio asqueroso saiu rolando. Adeus, demônio.
Bendito seja Deus, protetor de todos! Oramos e agradecemos. A cabeça horrenda ainda teve força para fazer um ato desgraçado e surreal. Soltou um uivo que atraiu outro demônio que dormia dentro da mata há alguns metros. Ela veio correndo e nós não percebemos. Veio em minha direção. Tiago percebendo que não teríamos tempo para nos defender, me empurrou para a esquerda e se deixou ser atingido.
O demônio estraçalhava o braço de Tiago quando viemos por trás e o acertamos bem na barriga que se abriu. As tripas fediam horrorosamente. A fera gritou e nós a rodeamos. Ela uivava como um lobo, precisávamos agir. Pedro tomou algumas ampolas de água benta e acertou o lado direito do rosto do animal. A pele se derreteu assim que o líquido a acertou.
Aproveitamos a fragilidade do animal, que agora tinha apenas um olho, pois o outro estava derretido. Enquanto ela tentava escapar para o covil de onde veio, jogamos a rede sobre ela. E todos, menos Tiago, pulamos nas costas e disferimos várias golpes com a espada.
— Davi, cuidado!! — Não tive tempo de agir. A pata enorme me acertou. Lembro-me de tombar alguns metros do grupo. Meus olhos se fechavam enquanto eu assistia os soldados dando espadadas na besta que se negava morrer.
Acordei com os braços enfaixados um dia depois. Atordoado, procurei meu crucifixo e dirigi alguns agradecimentos a Deus e a Virgem Maria.
— Expulsamos todos, Davi! Já estamos refazendo o muro para proteger as vilas — disse Tiago todo animado, enquanto colocava a mão sobre minha cabeça.
— Que ótima, notícia! — respondi com dificuldade. — Graças a Deus!
Olhei pra para teto e mergulhei em sombrios pensamentos. Eu nasci nesse mundo de caos, onde demônios andam soltos a procura de suas presas. Meus antepassados viram a calamidade chegar. Alguns explicam que é um castigo do céu, outros acham que é uma prova. E tem aquelas que acreditam que já estamos no inferno. Absurdo.
Tiago me olhava como se pudesse adivinhar meus pensamentos e aflições. Uma grossa lágrima escorreu pelo meu rosto. A mão de Tiago pesou sobre meu ombro e foi como um abraço de Cristo.
— Davi, os tempos são difíceis, mas cabe a nós decidir o que fazer com o tempo que nos foi dado. — Aquelas palavras reacenderam um sentido sobrenatural para todo aquele horror a minha volta.
— Você está certo. Deus Vult. — As palavras saíram com a pequena fé que ainda me restava.
— Deus Vult — concordou, meu amigo e irmão.