O FIM DE TODA ESPERANÇA

 

 

Era uma visão estonteante aquela do Distrito Alto: do topo das colinas repletas de casarões modernos e varandas inacessíveis, podia-se vislumbrar o espetáculo da aurora em Mhajulla. Na região central, logo abaixo, os pináculos dos arranha-céus formavam as cristas de uma coroa gigantesca quando refletiam a luz da alvorada. Aquelas torres imensas e platinadas, verdadeiras flâmulas do amanhecer, jaziam como colunas brancas que pareciam sustentar a abóbada celeste. Um contraste assombroso com o interior da decrépita mansão em que Dante estava.

 

Cuidando para não pisar nos cacos de vidro e restos de comida, o jovem magnata cruzava o quarto, na ponta dos pés, com uma pequena maleta: só levaria o essencial. Teve um último vislumbre da sacada e da visão primorosa à frente. Sentiria falta disso e nada mais. Os porres homéricos, as festas bizarras, as comidas exóticas, os bailes de máscaras reais e fictícios da elite: aquilo tudo foi enterrado dentro do seu ser.

 

Em um gesto de fingida educação, deu o beijo derradeiro em sua esposa, que se encontrava desmaiada na cama, imunda de vômito. A noite anterior havia sido detestável: mais um daqueles eventos de arromba, tão comuns nas mansões, em que o círculo de iluminados se reunia para satisfazer-se das formas mais abjetas: orgias, drogas e rituais macabros, tais como a indescritível “Caçada Humana”. Dante estava farto. Tomado ao mesmo tempo de asco e alívio, deixou uma carta de despedida sobre o criado-mudo.

 

Tinha dinheiro, fama, poder. Estava no zênite da pirâmide social. Mesmo assim, era preenchido por um vazio atroz, uma falta de significado para a sua vida estúpida de farras, ganância e conspirações, todas sepultadas por camadas de paredes frias dos palacetes ou esquecidas em meio aos corredores asseados do Distrito Central.

 

Por isso, decidira partir. Relembrou, mais uma vez, do que havia sido dito na festividade do dia anterior, para que não esquecesse de nenhum detalhe.

 

***

 

– Rocco? Está tudo pronto? – Sussurrou Dante a um italiano atarracado e de olhar ferino, o qual, assim como ele, observava com desprezo a algazarra no andar debaixo.

 

– Sim. Tem certeza de que quer fazer isso?

 

– Quantas vezes terei que repetir? Não aguento mais isso aqui!

 

– Você é louco, sabia? Não sabe o que tem do outro lado...

 

– Não interessa! Mhajulla é como uma fruta podre: todos aqui já estão mortos por dentro!

 

– Tá bom, tá bom! Veja: vou te levar até o túnel, mas ainda não recebemos o pagamento. Sem isso, não dá...

 

– Tudo vai ser entregue às nove horas. Anote aí: nove horas!

 

– Espero que sim. Nenhum minuto a mais, capiche? Se atrasar, eles desconfiam e o túnel se fecha por meses. Lembre-se: vá até o bairro mais afastado do Baixo Distrito e procure o pequeno edifício da Rua Quatro.

 

***

 

Dante reiterou mais uma vez aquelas palavras dentro de sua cabeça, enquanto, de volta à manhã subsequente, engatava a chave no veículo. Se tudo desse certo, em poucas horas, desbravaria o outro lado. Mas, antes, precisava acertar algumas coisas...

 

O portão de sua garagem se abriu, e a luminescência matutina invadiu o interior, como que revelando uma realidade insólita e perturbadora. Dante havia sido criado nos casarões das elevadas colinas e percorrera os altos caminhos da sociedade. Contudo, tudo aquilo parecia-lhe estranho... para não dizer repugnante. Resoluto, deixava às suas costas a realidade nefasta, mas não sem antes sentir uma pontada de medo do que estava por vir.

 

Tomou a rua vicinal e, depois, as grandes avenidas centrais, passando pelos arranha-céus como uma formiga entre imensas sequoias. E o enxame da manhã estava apenas começando a aparecer. Dali a alguns minutos, os arredores estariam repletos de trabalhadores dos distritos, todos com pesadas olheiras e um sorriso no rosto. Aquela mesma satisfação torpe que Dante tanto odiava. Em seus pares, ela vinha na forma de prazeres exóticos e alienantes. Nos proletários, assumia os contornos da pílula azul da “Risus”, o entorpecente de controle da Democracia, que concedia aos usuários uma alegria de morte, um estado de apatia terminal e feliz.

 

Minutos depois, o magnata alcançou a porção oeste do Distrito Baixo, domicílio dos trabalhadores, o qual era apinhado de pequenos edifícios residenciais. As sendas arborizadas eram organizadas e limpas, mas ostentavam uma atmosfera lúgubre, sem vida, que gelou o sangue de Dante. Percebeu que era o único a trafegar por ali, e atenção era o que menos queria, pois, caso fosse identificado pela sanha policialesca da Máfia, não teria escusas. Afinal, todos os operários já tinham saído. Bem... não todos.

 

Sorrateiramente, Dante estacionou o veículo em uma alameda entre os prédios, acobertado por uma grande faia. Após, dirigiu-se até a passagem de serviço de um daqueles edifícios. Abriu-a com cautela, protegendo-se de olhares indevidos. Felizmente, naquele momento, o bairro assemelhava-se a um necrotério: silencioso, ermo, salvo por alguns poucos aposentados que descansavam como zumbis em uma ou outra sacada. Então, ele adentrou o portal e subiu até o segundo andar, tocando a campainha do apartamento 203, um som que mais parecia o cantar de passarinhos. Aquilo sempre soou irritante. Enfim, a porta se abriu.

 

– Quem é? ... Dante! Ah, meu amorzinho! Que grata surpresa! Entre…

 

Era Laura, a amante. Uma loira esguia e de sorriso fácil… fácil até demais. Os olhos eram um tanto ingênuos, mas escondiam alguma perturbação que sempre inquietara o magnata.

 

– Laurinha, não temos tempo para conversar!

 

– Nem um beijinho?

 

– Feche a porta, sim? – Após ouvir a tranca, ele continuou. – Você guardou aquela maleta que deixei aí?

 

– Vou te falar só se você me der um beijinho! – Insistiu a moça, num quadro patético de euforia. Aquiescendo, Dante beijou-a sem muito entusiasmo, mas ela o agarrou insanamente, com uma voracidade que o surpreendeu.

 

– Espere… por favor! – Ele tentava se desvencilhar.

 

– Você acha que vai se safar depois de vir até aqui? – Disse Laura, maliciosamente, e logo roçou o corpo numa carícia bem íntima. Dante, desconsertado e transpirando, não tanto por causa do tesão, mas sim porque não poderia mais esperar, quase berrou em resposta:

 

– Não tenho tempo para isso! Vou repetir: onde está a mala?!

 

– Meu amorzinho! Pra que tanta violência? Vou te mostrar...

 

A mocinha tomou a mão de Dante e conduziu-o até o seu quarto, este cômodo que lhe rememorava bons momentos... Dentro do armário, encontrava-se uma grande maleta de metal lustrado, lacrada por senha, bem ao estilo caixa-forte. Dante a removeu com dificuldade e, destravando-a, conferiu o conteúdo. Um sorriso sinistro atravessou-lhe o semblante.

 

– Bom, acho que é isso. Vou te mandar uma mensagem depois. Agora, preciso ir!

 

– Nem pensar!

 

– Laurinha, veja, eu realmente não tenho tempo: um compromisso inadiável! – Ele tentou ser cortês, mas seus trejeitos não conseguiam velar a mentira. – Vou te ligar depois!

 

– Você vai ficar!

 

Aquela insistência não era normal, pensou Dante, que verificava o relógio: sete e quarenta e seis. Tinha que estar às nove no local combinado com Rocco, se não, já era!

 

No breve instante em que o magnata conferiu as horas, Laura saltou sobre ele e, agarrando-lhe a mão direita, prendeu-a à cabeceira da cama com uma algema. O movimento foi tão rápido e sutil que o sujeito, aturdido por aquela ousadia, não teve reação.

 

– O que é isso?!

 

– Nós vamos brincar um pouco!

 

– Pare! EU TENHO QUE IR!

 

– Na-na-ni-na-não!

 

A mulher arremetia com beijos e abraços calorosos, insaciável, e ele tentava se desprender do aperto da serpente, mas, algemado à haste de madeira, estava totalmente cativo.

 

– Vem cá, vem! Só um pouquinho!

 

– Por favor! O que está acontecendo? Tomou uma dose a mais de Risus?!

 

– Talvez… – respondeu a mocinha, que gargalhava com aquilo, enquanto arranhava o homem como uma felina, tentando despi-lo. Ele, furioso, aumentava a força de seus empurrões, repetindo: “A chave!”; até que, em uma dessas investidas, arremessou-a a metros de distância. Desequilibrada, Laura tropeçou na cama e bateu a fronte num vaso de plantas que repousava na janela. A porcelana se quebrou, assim como o crânio da leoa.

 

– Laura… o que houve?! – Dante perguntou, trêmulo, após notar o silêncio repentino.

 

Não houve resposta. O cheiro de tragédia tomava a atmosfera do quarto, e o sangue escorria pelo piso encerado como uma onda.

 

– LAURA?! – O magnata grunhiu de ansiedade e medo, enquanto puxava com todas as forças o grilhão que o prendia à cabeceira. Mas era inútil: a haste não cedia e, portanto, sem a chave, ficaria ali vinculado à cama, numa cena de burlesca fatalidade. Desabando sobre o colchão, repousou as mãos sobre a testa, perdido e desorientado.

 

– Pense, Dante! Pense! – Seu punho sangrava, a mente idem. Até que, com a mão livre, abriu novamente a mala, quase arrombando-a. Escancarada, ele vislumbrou o seu interior: meia dúzia de armas de fogo de todos os calibres possíveis, a própria tempestade da destruição. Este era o pagamento, a senha para o outro lado. Mas viria a calhar ali.

 

Retirando uma das pistolas automáticas, a maior delas, conferiu se estava carregada, desengatou a trava e apontou para a cabeceira da cama.

 

PÁ, PÁ, PÁ!

 

O estrondo ressoou pela vizinhança desértica como se fosse um bombardeio. De toda forma, os três tiros foram o suficiente para estraçalhar a madeira e libertar o prisioneiro. Desvencilhando-se das algemas, contornou a cama num pulo, quando deu com a cena de horror: a cabeça de Laura, mergulhada numa poça de sangue, era circundada pelos cacos, formando uma coroa medonha. Os olhos vítreos denunciavam que a vida lhe escapara. Dante, então, aos prantos, conferiu o pulso: estava... morta!

 

– Não pode ser... Não!!! Por favor, não!!!

 

Tomando a mão ensanguentada de Laura, horrorizado, contemplou o corpo num amálgama de sentimentos contraditórios: culpa por ter ocasionado a situação, raiva por aquela morte estúpida, compaixão pela mulher que ele amava até mais do que a própria esposa. Entretanto, o que se elevava ali era a pena. Pena por uma pessoa dominada pela droga Risus, que se perdia em coisas inúteis e doentias, as verdadeiras causas de sua destruição.

 

– Maldita Mhajulla! – Gritou. No fundo, culpava a Democracia pela cena hedionda, aquele regime que escravizava as pessoas. Não como a Ditadura brutal que ficava além do Muro, mas de uma forma diferente, insidiosa, tal qual um paciente que recebe veneno a conta-gotas e, no fim, torna-se um autômato, um ser desprezível desprovido de vida.

 

Depois desses devaneios, Dante voltou à realidade: agora, a sua fuga para o outro lado era questão de sobrevivência, e não mais uma alucinação de jovem idealista. Poderia apodrecer numa cadeia pelo resto da vida se fosse preso por aquilo. O medo falou tão alto naquele recinto que ele, num pulo, enfiou a arma na mala, trancou-a e disparou até a saída. Contudo, antes de destravar a maçaneta, deteve-se... como poderia ser tão insensível? Tomou o celular e discou o número da ambulância. Depois, deu o fora dali.

 

Atento, abandonou o edifício e correu até o carro. Ao mirar os arredores, em uma janela, viu que um senhor retribuía o seu olhar, ao mesmo tempo em que discava um telefone. Provavelmente ouvira o som dos tiros e agora contactava a polícia! Aquilo pôs Dante ouriçado. Num estrondo, disparou o veículo pela alameda, deixando um rastro negro no asfalto.

 

Após alguns quarteirões, o mauricinho, ainda aturdido, tentou reconectar o GPS do veículo para, enfim, retomar o caminho até o ponto mais afastado do Distrito. Mas não conseguia... a torrente de emoções o punha instável.

 

– Respire!

 

Dante parou o carro e fechou os olhos, concebendo, em sua mente, o rosto carcamano de Rocco, que o esperava numa residência perto da divisa.

 

– Pequeno edifício da Rua Quatro! Sim! – Ele repetia o endereço acintosamente, num esforço hercúleo para focar os pensamentos.

 

Segundo o mafioso, naquele local, havia um túnel que ligava Mhajulla ao país de Randall Freizinger. Era para lá que Dante ia.

 

Muitos anos antes, Freizinger havia promovido uma revolta contra o Antigo Regime, a qual rachou a nação em duas. Agora, um grande muro serpenteava pelo território, dividindo-o em dois lados aparentemente inconciliáveis: a Democracia de Mhajulla era o regime liberal, que Dante tanto odiava, enquanto, na outra extremidade, estava a Nação Farpada, um enclave moldado à imagem do ditador Freizinger. Era uma terra sombria de opressão e desesperança, que apenas na superfície parecia se distinguir de sua contraparte. No subterrâneo, porém, eram íntimas as relações, sobretudo com a Máfia, que ditava os rumos da decadente Democracia. Dante, vendido à propaganda da Ditadura, via nela uma forma escapista de se livrar dos problemas de Mhajulla... e, agora, de sua própria condenação.

 

Enquanto raciocinava sobre essas variáveis e recobrava a sanidade, o magnata logo percebeu que estava sendo seguido. Era fácil discernir qualquer movimento naquelas alamedas fantasmagóricas, isentas de vida. Pelo retrovisor, pôde divisar um veículo à distância. A polícia? Provavelmente não. Quem vigiava a movimentação dos operários não era o poder constituído, mas sim os indivíduos obscuros da Máfia.

 

– Malditos!

 

Dante tinha conexões com as famílias da cosa nostra. No entanto, não queria ser investigado por algum mafioso, sobretudo quando estava carregando uma dúzia de armamentos ilícitos e acabara de sair de uma cena de homicídio!

 

Imediatamente, desviou a rota, adentrando uma senda exígua em meio aos incontáveis predinhos residenciais. Zunindo feroz como um tigre, percorreu perigosamente aquele caminho por quilômetros.

 

– Saiam da frente!

 

Num frenesi insano, gritava para os seus próprios demônios, pois a alameda estava deserta. A diminuta passagem dificultava as manobras, de modo que ele, no percurso, derrubava lixeiras e raspava as laterais do carro. Até que finalmente alcançou o grande rio que cortava o Distrito. Parecia sozinho naquele ponto.

 

– Ufa!

 

Todavia, margeando a orla, percebeu quando o mesmo carro que avistara há alguns minutos desceu de uma alameda atrás de si.

 

– Desgraçados!

 

Um arrepio correu-lhe o corpo. Apertou fundo o acelerador de seu veículo, um grande e possante SUV, que atravessou rápido as ruas inóspitas. Por mais que o motor rugisse, o outro continuava em seu encalço! Dante, então, num movimento súbito como um bote, tencionou à esquerda, entrando em uma construção abandonada. Derrubou as cancelas e embrenhou-se no terreno. O perseguidor, freando, voltou-se ao mesmo local e percorreu os meandros da obra.

 

O mauricinho estava louco procurando uma saída, até que ingressou em um largo galpão que se abria como uma grande garganta em meio ao concreto. Pensava que a escuridão daquele local lhe daria cobertura. Contudo, virando a esquina a cerca de duzentos metros, o veículo adversário cantava os pneus, fazendo uma curva aberta para, enfim, avistar o armazém.

 

Dante, desesperado, percebeu que o seu plano falhara. Encurralado, desceu de seu carro e disparou por uma porta entreaberta no fundo do galpão. Não saberia dizer se os perseguidores o viram nas sombras, mas ele, numa carreira explosiva, deixou o edifício portando a pesada mala e, depois de alguns minutos, encontrava-se em meio a um matagal tão alto quanto as torres que reluziam no horizonte. Arfava de tensão e cansaço, pois o peso que carregava extraía todas as suas forças. Cambaleou pela sarça quase desmaiando de exaustão, até que alcançou um brejo lamacento; na verdade, um lago de rejeitos da obra. Só lhe restou entrar na água fétida, pois ouvia vozes abafadas atrás de si, a uns cem metros e se aproximando. Aflito, escondeu a valise na lama e mergulhou no pântano, como um girino que busca refúgio contra os predadores. Segurou o máximo que pôde a respiração, contando em pensamento “um, dois, três...”. Quando chegou ao sessenta, já com seus pulmões explodindo, emergiu à superfície.

 

Para a sua satisfação, não viu ninguém, nem ouviu um pio sequer. Permaneceu naquele estado de alerta por instantes que pareciam horas, parcialmente submerso, os ouvidos prontos para detectar um mínimo deslocar de grama. Contudo, ao que parecia, havia despistado os perseguidores. Então, deixou o estado de girino, deslocando-se para fora do brejo asqueroso. Recolheu a mala enlameada e tentou acionar o GPS do celular. Mas... Droga! A água danificara o aparelho!

 

Já perdendo as esperanças, Dante, com dificuldade, foi se arrastando por entre os arbustos, alerta para qualquer barulho, até que o matagal terminou como uma cortina subitamente descerrada. Havia deixado o terreno da construção, e o distrito repousava à frente. Confuso, não tinha mínima noção de onde estava e, mirando desesperado o relógio, notou que marcava doze para as nove! Não daria mais tempo!

 

– Então... este é o fim.

 

Dante arqueou os ombros e fitou o alto, derrotado, como se esperasse uma intervenção dos céus. Percebia que aquela ilusão escapista terminava. Pensava que poderia fugir de Mhajulla, fugir de seus problemas, mas lá estava ele num estado deplorável, subjugado pelo sistema: fedido, enlameado, ensanguentado, sem perspectiva, à beira do abismo! Seus pensamentos vertiam em tribunais lotados, notícias sensacionalistas, chantagens da Máfia, anos perpétuos na prisão... estava perdido. Deveria encarar aquela realidade suja e resignar-se. Poderia culpar a elite, a sociedade, o escambau, mas, no fundo, a verdade era clara como as ruas asseadas da Democracia: o único culpado era ele próprio, que decidira abandonar as alucinações consoladoras daquela vida doentia e tomar o caminho da dor e do sofrimento.

 

Em um último gesto desesperado, mirou atento os arredores, tentando focar a mente para uma saída. Resistia àquela fatalidade: se chegara até ali, não haveria volta! Observou que, à frente de si, situava-se um conjunto de pequenas casas. Depois delas, a uns quinhentos metros de distância, avistava um descampado e, a seguir... a Muralha! Sim, o Grande Muro se revelou quando o sol, em sua trajetória ascendente, atravessou a cortina de fumaça que emanava do outro lado e desnudou as torres enegrecidas de suas cidades, como se tivesse coroado o paredão com uma guirlanda funesta.

 

Dante estava próximo da divisa! O ponto de encontro não poderia estar longe! Um lampejo de esperança acendeu em seu cérebro e ele imediatamente se lançou sobre a via. Aquela porção do distrito era pequena, um subúrbio, e logo percebeu que estava na primeira de suas ruas. Foi descendo a avenida principal, totalmente deserta, até ver ao longe a placa “quatro”.

 

– Não acredito! É este o bairro!

 

Então, apressou-se trôpego pelos quarteirões até alcançar a fatídica rua quatro. Um largo sorriso correu-lhe a face quando viu o único prédio de dois andares da alameda, a referência indicada pelo italiano. Para lá ele se deslocou, chegando ao local às oito e cinquenta e nove. Bateu à porta, exausto, imundo e aliviado. Até que ela se abriu e a silhueta pesada de Rocco se formou diante de si, perplexo por vislumbrar Dante naquele estado.

 

– Meu camarada, que loucura é essa?! – Ele o fitava de cima a baixo, impressionado. Mas o seu instinto de mafioso logo entendeu a situação. – Vamos logo! Não temos tempo a perder! Trouxe a mercadoria?

 

Dante apontou para mala. Rocco não precisou conferi-la, por causa do peso. Eles, então, adentraram a residência, uma estalagem de dois pavimentos, que, a princípio, não parecia diferir de outras tantas do Distrito Baixo. No entanto, atravessando os cômodos até os fundos, havia uma portinhola bastante incomum, cerrada por um padrão de segurança. Um visitante poderia confundir aquilo ali com um barracão de ferramentas, mas, de fato, o fecho eletrônico conferia uma importância anormal. Destravando-o, o italiano conduziu-os por uma saleta repleta de utensílios, caixas e sucatas: um depósito... ou uma fachada? De fato, ele logo removeu um grande baú no canto, expondo um alçapão. Abrindo a tampa, uma abertura desvelou-se como um portal do submundo, pois caía para a escuridão completa. Dante gelou.

 

 – Vamos descer.

 

Rocco tomou a iniciativa e o jovem foi logo atrás, tremendo enquanto descia a escada. Depois de alguns degraus, alcançaram uma antessala de concreto, parcamente iluminada por pequenas lamparinas laterais. Um local verdadeiramente soturno, mas que se assemelhava ao vestíbulo de algo grandioso a ser desbravado. Na parede oposta à abertura, encontrava-se um sólido portão metálico e, logo à frente... uma figura muito estranha, que parecia se misturar às sombras. Dante suspirou de medo ao observá-la.

 

– Conheça nosso amigo, Roger.

 

O cara estava revestido por uma armadura militar de tecido sintético, espesso e enegrecido, o que lhe dava ares um tanto cavernosos, como se fosse uma sinistra ave de rapina. Em sua cintura, um coldre contendo uma pistola automática. Mas o que mais chamava a atenção era o seu olhar: Dante nunca se esqueceria daquela expressão sanguinária, a qual era realçada por um implante em sua órbita, como um rubi fosforescente que o encarava de forma macabra.  

 

– Onde está o pagamento? – Roger perguntou, sem cerimônia. Sua voz fria ressoou fundo no rapaz. Rocco, então, jogou a maleta diante do estranho.

 

– 1342. – O italiano ditou a senha, sem demonstrar emoção.

 

Roger mirou os dois, desconfiado e austero. Sua visão era sinistra, aterradora, e penetrava a alma de Dante. Nunca conhecera alguém assim, tão... Viril? Intenso? Cheio de vida? Não conseguia descrevê-lo. Apesar do aspecto nefasto daquele homem, o conjunto todo evocava poder e força, além de uma honestidade brutal, algo inexistente em Mhajulla. Após alguns segundos tensos, ele, enfim, debruçou-se sobre a valise e conferiu o conteúdo.

 

– Está tudo em ordem. – Com um gesto, apontou para o portão atrás de si. Rocco, então, virou-se para o deslumbrado Dante, que observava paralisado aquela figura exótica.

 

– Dante, mais uma vez te pergunto: sabe o que está fazendo?

 

– Com toda certeza. – O rapaz respondeu sem se voltar para o interlocutor, mantendo-se resoluto à frente, numa insólita admiração.

 

– Você tem tudo! Uma vida que nem os meus parceiros da Torino imaginam ter! Por que desistiu?

 

– Rocco, você tem sido um amigo e, por isso, te agradeço. Agora, precisa me deixar ir. Não existe mais nada para mim aqui.

 

– Como pode falar isso? E a sua esposa? Sua família?

 

– São uns perdidos, assim como todos em Mhajulla.

 

– Laurinha?

 

– Está morta!

 

– O quê?!

 

– Chega, Rocco! Um homem tem que assumir suas responsabilidades e encontrar seu destino, no caminho eterno que lhe foi preparado.

 

Com aquelas palavras, o italiano recolheu-se, taciturno. Dante agora era uma nova criatura, liberta das amarras da ganância, do vício e do apego. Entregou sua vida ao desconhecido e ingressou na completa escuridão, para nunca mais retornar.

LS Boynard
Enviado por LS Boynard em 07/11/2024
Reeditado em 07/11/2024
Código do texto: T8191426
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