Kaiak
A tempestade lá fora rugia com a força de um animal ferido, como se estivesse tentando romper a fina barreira entre o presente e algo que se recusava a ser esquecido. As gotas batiam no vidro da janela em um ritmo inquietante, como dedos nervosos tamborilando uma mesa, insistentes, impacientes. O tempo do lado de fora parecia seguir adiante, mas lá dentro da casa, o tempo estava suspenso, ou pior: voltava sobre si mesmo.
Na sala, Gerard observava Clara. Era sempre a mesma conversa. Sempre a mesma tensão. Como uma peça de teatro que se repetia dia após dia, com eles presos em papéis que nunca pediram para interpretar.
Clara estalou as mãos na mesa mais uma vez, o som ecoando como um ponto final.
– Eu. Não. Tenho. O. Livro! – Sua voz saiu cortante, cada palavra carregada de uma irritação crescente. As mãos dela tremiam, fechadas em punho, como se segurassem um peso invisível.
Mas Gerard, do outro lado da mesa, apenas a olhava, obstinado. Havia algo na expressão dele... não só teimosia, mas desespero, como alguém que se afoga e não consegue se lembrar como se nada. Era como se ele enxergasse um detalhe que escapava a Clara, um detalhe crucial que mudaria tudo.
– Você tem, Clara. Eu sei que tem. Você leu antes de mim. É um livro antigo... um livro que você mesma me deu. – Ele fez uma pausa, como se tentasse encontrar as palavras certas, mas tudo soava errado. – Foi assim que conheci Sebastian. Você se lembra? Foi o livro que nos apresentou.
Clara soltou uma risada amarga e cansada. O tipo de riso de quem já desistiu de encontrar lógica nas coisas. Ela apertou as têmporas com os dedos, sentindo o começo de uma dor de cabeça familiar. Tudo sempre levava a esse momento. Eles brigavam, ele insistia, e ela... Ela cedia. Sempre cedia.
– Gerard, como você pode não perceber o absurdo disso? – Ela o encarou com olhos apertados, irritados e, ao mesmo tempo, tristes. – Como posso ter lhe dado um livro que eu nunca li? Um livro que nem sabia que existia?
Mas Gerard não ouviu. Ele nunca ouvia quando chegavam a esse ponto. Sua mente parecia deslizar para um lugar distante, um território onde as memórias não obedeciam mais à lógica. Ele sabia que tinha recebido aquele livro dela. E era através do livro que conhecera Sebastian, um amigo que se tornara parte essencial de sua vida. Mas nada fazia sentido, não da maneira linear que deveria.
– Kaiak. – Ele murmurou, quase como se invocasse algo antigo. – É isso, Clara. Kaiak.
O nome flutuou no ar entre eles, como uma promessa. Ou uma maldição. Kaiak: um reflexo, uma repetição infinita. Ele sentia o tempo se enrolando em torno deles como uma serpente, apertando, comprimindo, sempre levando de volta ao ponto de partida.
Clara suspirou, derrotada. Ela já havia passado por isso antes, embora não conseguisse explicar como ou por quê. A sensação de déjà vu era tão forte que beirava a náusea. Ela levantou-se devagar, arrastando os pés, como quem sabe que o destino já foi decidido há muito tempo.
– Se você insiste tanto... – murmurou ela. E, como sempre, foi até o escritório.
Enquanto ela andava, Gerard ficou sentado, imóvel, com os cotovelos apoiados na mesa e a cabeça baixa. Ele ouvia o tique-taque do relógio na parede, um som que nunca parava e nunca acelerava. Era metódico e frio, um lembrete cruel de que o tempo se movia... mas eles não.
Ele fechou os olhos e tentou se lembrar do momento exato em que Sebastian lhe entregara o livro. "Foi sua mulher que me falou de você", Sebastian havia dito, sorrindo, como quem conhece um segredo. Gerard sentiu o estômago se revirar. Como Clara poderia tê-lo mencionado antes que ele a conhecesse através do próprio livro? A linha do tempo se dobrava sobre si mesma, e ele não conseguia encontrar onde começava e onde terminava.
Clara voltou poucos minutos depois, segurando o livro como se fosse um objeto amaldiçoado. Kaiak. A capa encadernada em couro marrom parecia mais antiga a cada vez que ele a via.
– Aqui está. Mas não sei como ele foi parar lá. – Os olhos dela estavam turvos, como se uma memória remota ameaçasse emergir. Eu nunca vi esse livro antes... até você me pedir.
Gerard pegou o livro com cuidado, como se segurasse um pedaço de um sonho fragmentado. As páginas tinham um cheiro familiar, de papel velho e promessas quebradas. Ele abriu na primeira página e viu a dedicatória escrita com a caligrafia firme e elegante de Sebastian:
"Para Gerard
Como tudo começou
Com carinho,
De seu amigo Sebastian."
Ele fechou os olhos e o mundo pareceu girar sob seus pés. Como Sebastian poderia ter escrito aquela dedicatória se ele só o conhecera por causa do livro? Era um paradoxo perfeito, um nó apertado que ninguém conseguiria desfazer.
Com as mãos trêmulas, ele abriu o livro em uma página qualquer. E lá estava. Uma discussão entre um homem e uma mulher sobre um livro que ela não lembrava ter dado a ele. Gerard sentiu um arrepio na espinha. Ele estava lendo a própria história, como um reflexo distorcido no espelho.
– Tudo isso... – Ele sussurrou, mais para si mesmo do que para Clara. – Tudo isso já aconteceu. E vai acontecer de novo. E de novo.
Clara recuou um passo, assustada com o tom da voz dele.
– O que você quer dizer com isso?
Mas Gerard sabia que não adiantaria explicar. Era inútil. Ele já tentara antes. Tantas vezes. Sempre falhava. Sempre.
Ele segurou o livro por um segundo a mais, como se hesitasse em entregá-lo. Então, com um suspiro resignado, estendeu-o para Clara.
– Agora é sua vez.
Clara leu um pequeno trecho do livro e por um momento, os olhos dela se estreitaram, e ele viu uma faísca de reconhecimento brilhar ali. Como se ela também soubesse, no fundo, que já estiveram exatamente naquele ponto antes. Que estavam condenados a repetir tudo, sem fim. Por um instante, seus olhos ficaram vidrados, como se estivesse à beira de um colapso, mas ela piscou e tudo se foi. A mente, instintivamente, bloqueava o que não podia entender. E então a expressão dela mudou... a dúvida se dissolveu, dando lugar à velha exasperação.
– Você está falando besteira, Gerard. – Clara balançou a cabeça, como se afastasse uma sensação desagradável. A expressão irritada mascarava algo mais profundo: uma sombra de reconhecimento, uma lembrança perdida no canto da mente, como o rastro de um sonho que se desfaz ao amanhecer.
Ela piscou... e o livro desapareceu de sua mão, como se nunca tivesse estado ali.
Gerard sorriu. Um sorriso melancólico, o tipo de sorriso que só quem já foi derrotado pela própria mente sabe dar. Ele sabia que não havia saída. Mais cedo ou mais tarde, o livro retornaria, sempre do mesmo jeito. E quando voltasse, ele estaria lá para pegá-lo novamente, porque era isso que sempre acontecia. Era assim que o ciclo se fechava. Era assim que ele começava... ou terminava.
Na prateleira do escritório, o relógio continuava seu tique-taque implacável. Os ponteiros estavam presos, paralisados, marcando uma hora que nunca mudava, como se o tempo tivesse decidido abandonar aquela casa e deixá-los para sempre em suspenso.
E então, na manhã seguinte, Clara acordaria como sempre acordava. Prepararia o café e Gerard reclamaria do gosto, amargo demais, frio demais, igual a todas as outras vezes. Eles passariam o dia juntos, presos em suas rotinas, em seus gestos desgastados, conversas que não levavam a lugar nenhum. Movendo-se como marionetes, seguindo os mesmos padrões todos os dias, sem nunca saber por quê.
Até o livro aparecer de novo.
Sempre acontecia assim: Gerard encontraria Kaiak, perdido em algum canto obscuro da casa, como se nunca tivesse desaparecido. Ele abriria a capa, as páginas amareladas soltando aquele cheiro antigo de papel envelhecido, e seus olhos se encontrariam mais uma vez com a dedicatória que o assombrava:
"Para Gerard
Como tudo começou
Com carinho,
De seu amigo Sebastian."
Ao reler as palavras familiares, ele sentiu o peso de todas as vezes que estivera naquele mesmo ponto, como se cada ciclo deixasse uma cicatriz invisível na alma. Era um cansaço que não se traduzia em anos, mas em camadas de desespero acumuladas.
Ele tentaria não ler, mas seria inútil. Era mais forte que ele. Os olhos de Gerard sempre deslizavam para as palavras que pareciam falar diretamente com sua alma. E, cada vez que lia, a verdade o atingia como um soco:
Eles estavam presos ali para sempre.
As cenas se repetiam, idênticas. Cada palavra, cada briga, cada momento gasto tentando explicar a Clara o que ela nunca se lembrava. Ele sentia o peso daquilo em seus ossos, como se cada ciclo o deixasse mais velho e mais cansado. Mas nunca havia escapatória.
O livro era um reflexo, um eco perfeito de suas vidas. A cada leitura, o ciclo se reiniciava. Não havia começo, nem fim, apenas um presente infinito. O tempo não avançava; apenas voltava, de novo e de novo, enrolando-se em torno deles como uma corda apertada, até que o ar se tornava rarefeito, mas nunca o bastante para sufocar.
E quando Gerard fechava o livro, ele sabia exatamente o que aconteceria em seguida. Ele esqueceria por um tempo, só o suficiente para acreditar que havia escapado. Mas o esquecimento era uma ilusão. Porque o livro sempre encontraria o caminho de volta. E assim que ele o abrisse, a história começaria de novo, com as mesmas perguntas, as mesmas respostas e a mesma sensação de desesperança.
Às vezes, Gerard se perguntava se o tempo realmente estava se repetindo ou se era sua mente que girava sem fim em uma ilusão particular. Mas qual seria a diferença?
Na prateleira, o relógio continuava a marcar a mesma hora. Tique-taque. Um som contínuo, familiar. E, como sempre, Clara acordaria na manhã seguinte, faria café, e Gerard o beberia com uma careta de desagrado.
– Está amargo de novo – ele diria.
E ela, sem saber o motivo, se sentiria irritada. Como se já tivesse ouvido aquilo um milhão de vezes antes.
Gerard a olharia de lado, tentando dizer algo que não conseguia expressar. Aquele sorriso melancólico viria aos seus lábios, o sorriso de quem sabe que está perdido. De quem sabe que, não importa o que faça, sempre acabará voltando ao mesmo ponto. E ele se perguntava se estava envelhecendo de fato ou se era apenas a fadiga de viver a mesma história mil vezes.
E lá estaria Kaiak, esperando. Sempre esperando. A capa de couro marrom, as páginas marcadas pelo tempo, imóveis e eternas. E quando ele o abrisse, porque sempre abriria, o paradoxo se fecharia mais uma vez. No fundo, Gerard sabia: nunca haveria uma última vez. Apenas outra vez. Sempre outra vez.
Eles continuariam vivendo, como todos nós: presos em rotinas que se repetem sem começo e sem fim. Pequenas engrenagens girando dentro de um relógio quebrado. E cada dia seria igual ao anterior, apenas uma sombra do próximo. O tempo não avança. Ele apenas se reflete.
E, no final, o livro sempre estaria lá. Kaiak. Um palíndromo perfeito, como a própria vida: indo e voltando, sem nunca chegar a lugar nenhum, indicando que o tempo nunca avança. Ele apenas encontra uma nova forma de voltar.