Contato
Já perdi a conta das vezes que havia feito esse tipo de serviço e não seria nada estapafúrdio fazer mais uma diligência como essa, afinal, lá se vão mais de vinte anos de experiência nessa profissão. Já vi muitas coisas que poderiam impressionar e chocar pessoas despreparadas, desde coisas aterrorizantes e tristes, até as alegres e esperançosas. Porém, não tão fantástica e inacreditável como essa vou contar. Nada do que já vivi me prepararia para essa experiência.
Meu nome é João, sou socorrista e paramédico de uma empresa de saúde daqui de Santa Maria. Meu trabalho é atender emergências médicas e fazer acompanhamentos de pacientes em estado crítico e sensível durante seus transportes, monitorando seus sinais vitais e agindo, dentro de minhas possibilidades, para a manutenção deles.
Tudo aconteceu numa noite quente de dezembro. Eu e o Evandro, um motorista de ambulância que volta e meia fazia dupla comigo em serviços como esse, fomos escalados para fazer o translado de um paciente em estado delicado, da cidade de Rosário do Sul para Santa Maria. O trajeto tem 140km e leva entorno de uma hora e meia fazê-lo de carro a uma velocidade média de 100km/h. No entanto, estávamos numa ambulância e, portanto, protocolos de segurança devem ser cumpridos, pois, caso o contrário, dispositivos de rastreio e tacógrafos poderiam denunciar as transgressões de seus motoristas. O Evandro, um experiente e cuidadoso profissional que também tem seus lá 20 anos de experiência na direção, já está familiarizado com esses cuidados.
Apesar disso, estávamos ansiosos por fazer esse serviço e voltar para casa logo. É claro que já tínhamos feito viagens desse tipo muito mais longas e demoradas. Era uma sexta-feira, final de dezembro, com o verão despontando e o calor já presente, começando a exigir do sistema de ar-condicionado da ambulância. Tudo sugerindo para uma cervejinha num barzinho ou em casa mesmo. A bem da verdade é que, estávamos incomodados e desgostosos com a nossa escalação para daquela empreitada, pois já tínhamos programado para aquele final de semana a nossa folga. Nenhum de nós estava a fim de fazer hora extra, mas apenas curtir a folga e, no entanto, estávamos trabalhando. Mas tudo bem, de certa forma, seria um bate-e-volta rápido e tranquilo.
Chegamos no Hospital de Caridade Nossa Senhora Auxiliadora, em Rosário do Sul, por volta das 19h e imediatamente iniciamos o procedimento de embarque do paciente em questão, um senhor que aparentava ter em torno de 60 anos, de estatura baixa e cabelos grisalhos. Dele, não sabíamos mais nada, até que nos repassassem sua documentação para a viagem. Ele já estava acomodado na maca, devidamente imobilizado para sua segurança e com uma máscara de oxigênio, além de estar coberto por um lençol até seu pescoço. Tendo-o embarcado na ambulância e já em deslocamento, pude ter acesso com calma à sua ficha.
Seu nome era Mario Afonso Seixas, 65 anos, natural de Rosário do Sul. Seu diagnóstico descrito na ficha acusava várias úlceras gástricas que o levaram ao estado de hemorragia digestiva constante, precisando de intervenção cirúrgica urgente: uma gastrectomia. Sim, o Sr. Mario estava perdendo sangue, de modo que seu estado de saúde era frágil, sendo necessário todos os cuidados possíveis para manter sua pressão arterial e demais sinais vitais estáveis durante aquela viagem. Ele já se encontrava muito fraco, amparado com uma bolsa de sangue e ampola de soro, respirando com o auxílio de ventilador mecânico, por isso a máscara. Nossa tarefa era, portanto, transferi-lo urgentemente para o Hospital Universitário de Santa Maria, onde uma equipe médica estaria a sua espera.
Tomamos o caminho para a estrada entorno das 19h50min. O experiente Evandro conduzia a ambulância observando todos os procedimentos protocolares, desde a manutenção da velocidade máxima permitida até a ativação de dispositivos sinalizadores, como giroflex e sirene, enquanto eu ficava no compartimento do paciente, monitorando os sinais do Sr. Seixas. A viagem tinha tudo para transcorrer com tranquilidade e a devida agilidade.
Em alguns minutos, saímos do perímetro urbano de Rosário do Sul, tomando a BR-290 para, nos próximos 30 minutos, nos aproximarmos do trevo de acesso à BR-158, a "Faixa de Rosário". Era de nosso conhecimento que, a partir dali, levaríamos por volta de uma hora até Santa Maria, mas que a partir de quinze ou vinte minutos, passaríamos por um trecho onde não haveria praticamente nada. Uma luminária num poste perdido, um galpão aqui e outro acolá, pouquíssimo fluxo de veículos, um breu completo. Sinal de celular então, nem pensar.
Já eram 20h20min quando alcançamos o trevo de acesso à “Faixa de Rosário” contornando-o e tomando a estrada definitiva para Santa Maria. 25 minutos se passaram quando iniciamos a travessia daquele trecho plena escuridão e desolação. Levaríamos mais alguns minutos do que qualquer outro veículo para atravessá-lo devido à velocidade padrão da ambulância de 80km/h, o que implicaria em mais do que os conhecidos e amedrontadores vinte minutos para atravessá-la por completo. Eu estava acomodado num dos bancos ao lado do paciente, brincando com meu celular e fazendo o tempo passar. Estávamos em silêncio, senão pelos bipes dos aparelhos de monitoramento, pelo contínuo som do ventilador mecânico e pelo próprio motor da ambulância e sua sirene. Em determinado momento, finalmente o sinal de celular se vai, quando resolvi me levantar e ir até Evandro, me escorando no marco do acesso à cabine do motorista.
- E aí? Tudo certo?
- Tranquilo. Não vejo a hora de chegar. Tô louco pra uma cerveja.
- Eu também.
- E aí atrás, tudo tranquilo?
- Sim, sim. Tudo normal.
De repente, aconteceu o inusitado. Em determinado momento, todas as luzes da ambulância se apagaram, assim como a sirene. Inclusive o motor se apagou. Inexplicavelmente, além da completa escuridão, um silêncio ensurdecedor coma tomou conta de todo o veículo, pois os equipamentos de monitoramento e o ventilador mecânico também se desligam.
- O que foi isso, meu Deus? - exclamei. Sim, foi uma exclamação, pois imediatamente percebi que nem mesmo o Evandro teria condições de explicar o que tinha corrido.
- Não faço ideia. Cara, apagou tudo aqui na ambulância. - Diz Evandro.
Evandro tentou dar a partida no motor da ambulância verificando seus faróis, em vão. Nem mesmo o motor de arranque do veículo respondia a qualquer comando, mesmo estando o veículo ainda em movimento, porém em desaceleração. Ele então habilmente aproveitou a força inercial restante para tentar estacionar no acostamento, numa manobra arriscada para aquela situação, pois simplesmente não se conseguia enxergar um palmo diante de nossos narizes. Nossa sorte foi que em questão de instantes surgira um poste distante que emitia uma fraquíssima luz que ele usou como referência. Por conta dessa dificuldade, deslocou a ambulância levemente à direita para, aos poucos, ir freando e buscando parar o veículo por completo para averiguarmos a situação. Eu percebi também que, os equipamentos internos da ambulância se apagaram, me dirigindo de pronto ao paciente que estávamos transportando.
Com o veículo já parado, Evandro sacou seu celular na tentativa de ligar sua lanterna, em vão. Ele então se deslocou junto a mim que, naquelas alturas, também estava à procura de alguma luz, através das lanternas dos kits de emergência para logo avaliar o estado do paciente. Também em vão. Mesmo com a escuridão, tentei tomar o pulso do paciente, para depois verificar seus batimentos cardíacos com um estetoscópio e sua respiração, retirando a máscara e aproximando meu ouvido junto a suas fossas nasais.
- Evandro, nosso paciente se foi! - Anunciei.
- Mas o que está acontecendo? João, não me diz que foi por causa do ventilador mecânico que parou?
- Pode ser. Ele estava muito fraco.
- Mas não faz cinco minutos que tudo desligou. E cara, tu não verificou as baterias desses negócios antes? O Evandro me fez aquele tipo de indagação cretina, pois sabia que os equipamentos internos de monitoramento e estabilização são independentes do sistema elétrico da ambulância com alimentação de energia própria com bancos de baterias com autonomia de horas e que a supervisão deles seria de responsabilidade do paramédico escalado para o translado. Ou seja, minha.
- Sim, Evandro! Eu revisei tudo antes de sair. Não tô entendendo nada.
Evandro e eu já havíamos perdido pacientes em outras viagens por diversos motivos. Mas nunca por conta de uma situação como aquela. Admito que, naquele momento, um certo nervosismo me tomou conta ao imaginar uma suposta falha minha num procedimento comum que já fizera inúmeras vezes, levando um paciente sob minha custódia a óbito. Por conta disso, comecei a imaginar o que reportar ao corpo médico responsável após retornarmos. Voltei ao meu banco e fiquei em pensamento tentando entender o que aconteceu, se poderia te relação entre a pane geral no sistema elétrico do veículo com os equipamentos independentes. Enquanto isso, Evandro tentava insistentemente dar partida no motor para depois começar a dar uma olhada se haveria alguma anomalia perceptível no sistema elétrico da ambulância.
Apesar de ainda ser primavera, a noite estava quente. A porta do motorista já estava aberta, pois Evandro tinha descido e começado a verificar o sistema elétrico da ambulância, começando pela sua bateria. Mesmo assim, ainda o fluxo de ar não dava conta e por isso resolvi descer da ambulância pela porta de trás. Deixei-a aberta e fui ao encontro de Evandro. Aos poucos, estávamos acostumando nossos olhos à escuridão já começando a ter uma visão relativa do local, pois apesar da única fonte de luz ser aquele poste distante a mais de 300 metros, a lua cheia e o céu limpo nos auxiliava. Então, indaguei João:
- Descobriu alguma coisa?
- Nada! Parece que a energia elétrica da ambulância simplesmente foi chupada toda. Não consigo produzir nenhuma faísca, nada. E tu? Deu uma olhada nos equipamentos?
- Sim. Cara, a mesma coisa. As baterias não funcionam. Nenhuma delas.
- João, dá uma olhada nas lanternas dos kits de emergência aí do compartimento do paciente.
- Evandro, foi a primeira coisa que fiz. Nem essas lanternas funcionam.
- Tá de sacanagem!?
- Pior que não. E te digo mais: eu mesmo carreguei botei essas porcarias pra carregar hoje pela manhã.
Sem uma saída para a situação naquele momento, fechamos as portas da ambulância e nos sentamos junto aos pneus do seu flanco direito acendendo cada um cigarro para que relaxássemos um pouco e pensássemos em algo. Por pior que fosse a situação, a noite estava linda, o céu estrelado e com a lua cheia refletindo sua luz pelas árvores e asfalto. Não seria a mais quente das noites, não havia vento algum e o calor que fazia não chegava a nos fazer transpirar. Em outro contexto, seria um belo e agradável início de noite.
A essas alturas, já era por volta das 21h30min e assim, de costas para a via, nos dispomos a observar aquele poste distante com sua fraca luminária. Aos poucos, fomos percebendo que ela guarnecia uma pequena construção que parecia uma casa.
- João, olha lá. Não tá parecendo uma casa?
- É tá parecendo sim.
- E, se déssemos uma olha lá? Sei lá, talvez haja alguém e poderíamos pedir algum tipo de ajuda.
- Pode ser, mas que tipo de ajuda? Celular aqui não pega, então se tem alguém lá e com celular, não vai adiantar. Duvido que tenha uma linha de telefone fixo. Só se tiver um carro ou uma moto para levar um de nós a algum lugar que tenha sinal de celular. Isso se essa bruxaria não tenha ocorrido só com a gente, pois olha só: mortinho! E o teu também! - Exibo meu aparelho celular para o Evandro demonstrando estar totalmente apagado, como se de uma hora para outra a bateria tivesse se descarregado, ao mesmo tempo que aponto para o dele, no mesmo estado.
- Pois é. Mesmo assim, acho que vou tentar.
- É, não custa nada. Vai, dá um pulo lá enquanto tomo conta da ambulância aqui.
- Tá bem, vamos fazer isso.
Aos poucos via o Evandro se distanciando na escuridão, com seu vulto cada vez mais delineado por aquela fraca luz do distante poste. Ele tomou um pequeno acesso de veículos desenhado no chão a alguns metros da ambulância e que se estende a cerca de trinta metros até chegar num simples portão de madeira e tela de arame. Percebi que ele estava analisando aquela cancela no intuito de achar um meio de abri-la, quando examinava algumas correntes enroladas entre ela e um moirão de sustentação, denunciado pelo tilintar do metal mesmo a distância. Evandro não viu alternativa senão transpô-lo pulando sobre ele com relativa facilidade por ser relativamente baixo, seguindo em direção ao poste que estava no caminho para aquela pequena construção.
De repente, percebi algo estranho. Evandro ficou imóvel, completamente parado, de frente para o poste e de costas para mim, numa posição retilínea com os braços alinhados ao corpo. Imediatamente pensei que ele tivesse avistado algum cachorro que pudesse o ameaçar ou mesmo que alguém tivesse surgido ameaçando-o por estar invadindo uma propriedade. Dei uns passos em sua direção nos primeiros metros do acesso adentrando nele e saindo do asfalto d forma a me distanciar um poucoda ambulância, chamando-o quase que gritando:
- Evandro, tá tudo bem?...Evandro?... Evandro????
Por algumas vezes repeti o chamado ao Evandro alternando o volume da voz, mas sem efeito algum. Evandro não se mexia, parecendo um manequim completamente estático. Comecei a ficar um pouco preocupado já me ensaiando para ir até o portão onde o chamaria novamente, além de talvez ter uma visão melhor do que estava acontecendo. Antes disso, porém, chamei-o novamente, dessa vez berrando já com uma certa irritação por ele não ter correspondido, a ponto de já esbravejar:
- Mas que merda, cacete!
Então, quando comecei meu deslocamento no sentido de tomar o pequeno acesso em direção ao portão, uma voz baixa, levemente rouca e notadamente masculina me interpela, vinda pelas minhas costas:
- Calma rapaz, ele não vai lhe ouvir.
Tomei um tremendo susto com aquilo. De sobressalto me virei para a direção da ambulância para ver de onde vinha e o que era aquela voz. Então vi o nosso paciente, em pé, a dois passos de mim, vestindo a roupa privativa hospitalar, de pés no chão, com as mãos postas sobre seu abdômen com os dedos entrelaçados e sorrindo. Seus olhos tinham um brilho azul sobrenatural, mas emanavam uma tranquilidade e paz que não conseguiria descrever. A despeito do susto que levei, nada mais naquela visão me repassava insegurança, medo ou algum tipo de ameaça. Sua postura corporal e seu sorriso transmitiam afabilidade e tranquilidade, mesmo incrédulo com o que estava vendo. Comecei então, a sistematicamente virar meu pescoço buscando com os olhos Evandro que permanecia na mesmíssima posição estática desde que estava se aproximando do poste iluminado. Aos poucos comecei a entender que chamá-lo ou mesmo ir ao seu encontro não seria uma opção. E antes mesmo de esboçar algum tipo de reação, algo meio complicado naquele momento, pois também fiquei paralisado e atônito com aquela presença, o paciente de modo sereno e sem desentrelaçar os dedos das mãos disse, olhando para o céu:
- Que noite, hein?! Vamos sentar-nos um pouco e conversar, eu explico tudo para você.
Eu não me mexi. Também, convenhamos, não tinha como. Então, ele se move, ainda com as mãos entrelaçadas, se agachando para sentar-se escorado no pneu traseiro da ambulância.
- Venha João, sente-se aqui. Seu nome é João, não é?
Até que eu queria, mas não conseguia dizer nada. Desviou seu olhar para o alto e serenamente passou a apreciar o céu limpo e estrelado. Seu sorriso era tranquilo e confortante. Seus olhos cada vez brilhavam mais como se fossem duas safiras, num cintilo notadamente sobrenatural, porém lindo e encantador.
Não me restava alternativa, senão de sentar-me ao seu lado, ainda com movimentos que demonstrassem receio e incredulidade. Enquanto eu me acomodava, ele novamente dirigia a palavra a mim, já com as mãos sobre seus joelhos dobrados até a altura de seu peito:
- Ah, antes de começarmos: meu nome não é Mario. Ele só está me dando uma mãozinha aqui. E não se preocupa com ele - apontando para Evandro a distância, ainda estático - está tudo bem com ele.
Uma sensação de tranquilidade, conforto e segurança finalmente me tomava conta. Também de forma indescritível, qualquer pontinha de pânico ou medo havia dado lugar a uma incontrolável curiosidade e vontade de entender o que estava acontecendo.
- Como assim? O Sr. Não se chama Mário? E como sabe o meu nome?
- Eu sei ler, está escrito aí, no seu macacão. - respondeu seja lá quem ele for sorrindo para mim, demonstrando também ter bom humor.
- Ah é, verdade.
- Então, pode onde quer começar?
- Não sei. As palavras não vêm na minha cabeça. Que tal se dissesse o seu nome?
- Nome? Ah sim. É, de fato não sou o Sr. Mario. Nomes... bem, isso é algo que não usamos mais, temos inúmeras outras formas de nos identificarmos. Isso também já explica por que peguei emprestado o shape do Sr. Mário.
- Como assim, "pegou emprestado"?
- Achamos que seria a melhor forma de entrar em contato com você. Um modelo de comunicação que você pudesse entender, apesar do susto que levaria. Aliás, pobre homem, está todo ferrado por dentro.
- Entrar em contato? Comigo? Por quê?
- Pois então. Teríamos muito o que conversar e o que lhe explicar, mas infelizmente não há como lhe dizer tudo o que podemos. Não de uma forma simples e breve. Tempo não seria um problema, pois sabemos lidar com essa questão. Mas teríamos um certo problema na compreensão. Estamos aqui por sua causa, talvez esse seja o que mais nos interessa conversar.
- "Estamos"? Quem?...Quem são vocês?
- Não somos daqui meu caro. Explicar de onde viemos também é um pouco complicado. Mesmo assim, sabemos que você tem capacidade para compreender algumas coisas, pois também sabemos sobre sua pessoa.
Comecei a perceber que, essa pessoa, esse ser, seja lá o que for, de fato me conhecia. Por um bom tempo, ficamos ali sentados sendo conduzido por ele a uma conversa amena sobre geopolítica, literatura policial, cerveja, nomes de banda, fotografia e alguns outros assuntos que eu gostava. Cada argumento dele sobre qualquer que fosse o assunto era entendido por mim de uma maneira clara e familiar, como se eu estivesse falando com uma cópia minha, me envolvendo e conquistando de forma a ficar cada vez mais empolgado com o diálogo. Ele conseguiu me deixar bem à vontade com a sua presença, me fazendo a trata-lá com mais naturalidade e irreverência.
- Então Sr. "Mario que não é o Mario", por que veio? Disse que é por minha causa. Como assim?
- Como disse, lhe conhecemos bem. E sabemos do sofrimento que passou nesses últimos quatro anos.
Meus sofrimentos! Engoli a seco e senti como se um tijolo tivesse me acertado no peito, fazendo com que um filme passasse pela minha cabeça: a morte do meu pai a três anos atrás, a morte da minha mãe por COVID a dois anos atrás, o desmoronamento da nossa família com o fim dessas duas referências e as brigas com meus irmãos, o aborto espontâneo de minha esposa e a crescente ameaça de demissão com o boato de um suposto enxugamento de quadro da empresa onde trabalho. Esses últimos quatro anos realmente viraram a minha vida de pernas para o ar fazendo eu cair em descrédito para muita coisa. Desde antão, viva me perguntando: “logo comigo, eu, um homem católico devoto, a despeito de ser profissional da saúde e ter vivenciado muitas coisas que acabariam com a fé de qualquer um. Por que pessoas boas, inocentes, honestas e queridas por muitos, acometidas por todo o tipo de morte. Doenças, assassinatos, acidentes...”. Devo dizer que, cada um dos momentos em que me deparei com uma situação dolorosa por conta do meu trabalho, um certo questionamento sobre fé e a tudo que a religiosidade me representava surgia, mas não a ponto de comprometê-la. Talvez, porque nunca imaginaria que minha vida seria devastada do jeito que foi, como se aquelas coisas nunca iriam ocorrer comigo. Mas aconteceram e me fizeram perceber o quanto cansado eu estava de tanto perguntar "por quê" sem ter resposta alguma, me levando a um desânimo e a admitir que estava em crise com minha própria fé. Comecei a fazer outros questionamentos: “De que adianta a devoção? De que adianta acreditar? De que adianta ser honesto, correto, justo?”. Passaria, então, a receber qualquer tipo de menção, conforto ou tentativa de explicação divina ou pela suposta força da fé de forma cética e desdenhosa.
- O que quer dizer? Veio para me mostrar alguma coisa? Deus?
- Ah. Sabíamos que essa pergunta viria. É um assunto não é muito fácil de responder, sabia? Mas para você, acho que podemos ter uma breve conversa a respeito.
Porém, de maneira involuntária, mas já costumeira, assumi meu "modo cético" e irônico. E com um sorriso sarcástico, perguntei:
- Tá bem Sr. "Mario que não é o Mario", antes de qualquer coisa, eu ainda não sei quem tu és, então acho meio complicado tentar me convencer de alguma coisa.
- Está bem. Vamos fazer assim: me chame de... “Mario”, ao menos isso vai facilitar a nossa conversa.
- Quem é você a final de contas? Um tipo de anjo?
- Mesmo me vendo e podendo me tocar você ainda questiona a minha existência?
- Quem me garante que não estou sonhando?
- Ele. - Apontando para o Evandro, ainda estático na mesma posição. - Quando formos embora, ele vai voltar a você e perceberá.
- E por que sempre diz "nós"? Não está sozinho?
- Não. Somos uma equipe. Os demais irão se apresentar a você.
-Tá, mas de onde? Outro planeta? Do céu?
- Se viéssemos do céu, não iriámos querer sair de lá. Nem mesmo para uma missão como essa.
- Missão... alguém mandou vocês aqui?
- Sim, João. Fomos enviados.
- Por quem?
- Boa pergunta, meu caro. Não sabemos.
- Não estou entendendo.
- Não se preocupe, João, nossa conversa lhe trará mais perguntas do que respostas.
Um pequeno silencio nos tomou conta. O nomeado Sr. Mario olha para o céu com aquele mesmo sorriso sereno, contemplando-o. Eu novamente o indago:
- Vocês vieram lá de cima?
- É, dá para se dizer que sim.
- Outro planeta?
- É mais correto dizer "outro mundo".
- Outra dimensão?
Ele deu uma breve risadinha voltando aqueles olhos lindos, brilhante a ao mesmo tempo assustadores para mim.
- Meu caro, aos poucos a humanidade vai perceber que ciência, religião, magia, tecnologia, ... tudo isso será compreendido como sendo uma coisa só. Isso faz parte de nossa missão junto a vocês. E nesse processo de aprendizado, apesar de muitas perguntas serem respondidas, inúmeras outras surgirão.
Meus olhos brilhavam ao ouvir aquelas palavras, sentindo uma enorme necessidade de falar, expor o que pensava e sentida:
-Sabe cara, de certa forma, eu cheguei a pensar um negócio meio parecido assim. Pelo que percebi, também sabes que gosto de ler e que aprecio esse tipo de assunto. Mas, agora, já que está me dizendo, estou confirmando algumas coisas que já suspeitava.
- É mesmo, João? Quais?
- De que minhas orações de nada valem. Me parece que já está tudo escrito, que tudo é uma equação.
- De fato, João. Nada está ao aleatório e tudo existe por um motivo. Já disse uma pessoa proeminente entre vocês: “Deus não joga dados”.
- Einstein!
- Sim, Einstein. Nós o conhecemos. – Disse ele sorrindo para mim.
- Ouvi tu falar Deus...
- Sim. Uma palavra desdobrável em incomensuráveis significados.
- Ele existe?
O Sr. Mario sorri novamente e, olhando para as estrelas, responde.
- Sim. Mas não como vocês imaginam.
- E o que são vocês? Uma espécie de anjos?
- Talvez, a trezentos anos atrás, a única forma de nos apresentarmos a pessoas como você seria assim, com asinhas, auréolas, espadas, um escudo e tudo o mais. Até porque nem todos como nós são bons. Hoje, talvez só tomando um corpo emprestado de alguém seja o suficiente. Mas não para todas as pessoas. Entendeu?
- Um pouco.
- Agora, quer saber por que estamos aqui?
- Sim.
De repente, uma crise de ansiedade me tomou conta, na expectativa de que talvez eu pudesse ter as respostas sobre tudo o que passei, o que atrapalhou meu raciocínio. Não conseguia dizer mais nada, senão apenas isso:
- Me fale, por favor.
- Deixa eles falarem.
O Sr. Mario aponta para o céu. Três esferas enormes, como se fossem luas, surgem entre as estrelas e a escuridão, descendo lentamente a ponto de ficarem a alguns metros de nós pairando no céu. Eram objetos enormes e iluminados, de modo que todo o resto do ambiente permanecia escuro, exceto pelas estrelas no céu que circundavam suas bordas. As luzes que emitiam eram fortes, mas não machucavam meus olhos. Fiquei em pé, me afastando da ambulância e avançando alguns passos à frente de modo a a melhor contemplá-las.
Então, uma única voz se dirige a mim emanando delas. Parecia, no entanto, ressonar numa cúpula ou espécie de anfiteatro, criado artificialmente por aqueles visitantes. A sensação sentida senti me remeteu às visitas no planetário da universidade quando criança. Era uma voz grave e notadamente masculina, que lembrava locutores ou comunicadores de rádio, vinda da esfera do centro. Foi a voz mais serena que já ouvira na vida, de forma pausada, calma e imponente:
"Boa noite, João. Viemos de muito longe ao seu encontro. Um dia fomos como vocês, mas a milhões de anos fomos levados a abandonar nossos frágeis corpos em decorrência dos vários ciclos de evolução que nos submetemos."
Aquilo me paralisou. Apesar da nítida sensação de exposição total, nunca, em toda a minha vida, havia me sentido tão seguro naquele local e naquele momento com aquelas coisas, mesmo que que expressando tamanha autoridade. Suas palavras fizeram-me sentir diminuto, porém parte de todo daquele universo que me estava sendo apresentado. Após uma pequena pausa, a entidade retorna a falar:
"Somos guardiões, designados por aqueles acima de nós, para auxiliar outros inferiores, como você. Nós lhe conhecemos desde o momento em que foi concebido, acompanhando seu crescimento, seus feitos, suas dificuldades e realizações. Observamos seus momentos de alegria e tristeza. Nos foi dada a ordem para que nos apresentássemos a você, e aqui estamos."
Eu não conseguia expressar nenhum tipo de reação. Estava em êxtase, completamente paralisado diante deles sob um desejo de ouvi-los muito mais. Após mais uma pausa, a entidade continua:
"Suas perguntas não serão respondidas, pois acreditamos que apenas nossa presença lhe fará compreender muitas coisas. As leis que somos submetidos são incorruptíveis e possuem seus propósitos, mesmo que não saibamos quais sejam eles. Entretanto, mesmo assim, todos aqueles iguais a você têm o poder de fazer escolhas, mesmo mediante elas."
“Deus não joga dados”.
Deixei por um momento o estado absorto e inerte que me encontrava, baixando a cabeça refletindo sobre aquelas palavras. Eu já tinha ouvido coisas parecidas de pessoas que tentavam me consolar durante os momentos difíceis que passei. Aquelas palavras que por um certo tempo comecei a tratar com desdém e descrédito. Mas que, agora, transmitidas a mim por alguma coisa inexplicável e difícil de acreditar, mesmo diante de meus olhos.
Parecia que horas haviam se passado desde o momento que tinha ouvido tudo aquilo. Ainda estava parado, inerte e com a cabeça baixa diante deles. Meus pensamentos são interrompidos quando mais uma vez eles se dirigem a mim:
"João, fomos orientados a lhe dar essa mensagem: Complete o seu trabalho e continue a ser o bom homem que é."
Após essas palavras, os visitantes vão embora, iniciando uma subida em direção ao céu estrelado e desaparecendo em segundos. Por mais alguns instantes permaneci parado na mesma posição, olhando para o céu. O Sr. Mario, agora em pé e atrás de mim, quebrou o silêncio batendo com a mão em meu ombro direito e chamando a minha atenção:
- E aí João, o que achou?
Gaguejando, tentei respondê-lo.
- E...E...Eu não sei. Estou confuso.
- Eu avisei. Mas garanto que, muita coisa pode ter sido respondida. Sabemos que agora você está com muito mais perguntas. Isso chama-se "existência". Bom, está na hora de me juntar aos meus amigos. Missão cumprida.
O Sr. Mario virou-se e caminhou para o interior da ambulância. Ao chegar na porta traseira, virou-se para mim novamente dizendo-me por último:
- Ah João, preciso lhe avisar para que não se assuste: vai ficar tudo bem com o Sr. Mario e não tenta explicar nada para o Evandro, ele vai achar que você está louco. Tenha uma boa noite!
Aquela coisa não me deu uma chance sequer de lhe questionar mais nada sumindo pela porta traseira da ambulância. De repente, e num único instante, as luzes da ambulância se acenderam e seu motor se ligou. Olhei para o meu celular e vi a logomarca do aparelho no display, indicando que o aparelho estava se ligando novamente. Meu estado letárgico terminou ao ouvir uma voz conhecida vinda de atrás de mim:
- Como é que tu conseguiu?
Era o Evandro, caminhando de volta para a ambulância, já próximo a alguns passos de mim.
- João, como é que tu conseguiu ligar a ambulância?
- Eu não sei.
- Como não sabe?
- Não sei cara! O que aconteceu lá?
- Ah, cheguei lá, não tinha nada. Ninguém. Só isso.
- Por que demorou tanto?
- Ms não demorei cara. Cheguei lá e dei meia volta. Não deu 5 minutos.
De repente, vi o Evandro arregalando os olhos me perguntando:
- João, tu tá escutando isso?
- Sim, tô!
Apesar do ruído do motor da ambulância, ambos conseguíamos ouvir conhecidos barulhos vindos do seu interior. Eram os equipamentos de monitoramento de sinais vitais e o ventilador mecânico, mas com um detalhe: ouvíamos o bipe indicando os sinais vitais do paciente. Corremos para dentro da ambulância e nos deparamos com o paciente acamado tal qual estava desde o início da viagem. Ao visualizarmos os monitores vimos seus sinais vitais estáveis. Ele estava vivo.
- João, o que está acontecendo? Cara, olha, meu celular se ligou!
- O meu também.
- Cara, vamos dar o fora daqui.
Fechamos as portas da ambulância nos preparando para retomar a estrada. Minha cabeça estava um turbilhão de pensamentos ao mesmo tempo em que uma paz interior havia me tomado conta, mesmo com toda aquela situação inusitada e assustadora que se instalara. Percebia também que tudo o que se passou não foi invenção da minha cabeça. Eu não havia adormecido em momento algum e o Evandro fora testemunha da pane da ambulância e de todos os equipamentos que carregávamos, bem como do óbito do paciente, que agora estava ali, vivinho da Silva.
Entramos na ambulância e retomamos a estrada. Pelos próximos 70 minutos de viagem permanecemos em silêncio, cada um com seus pensamentos. Todas as palavras daquela entidade vinham a minha mente, sem me esquecer de uma sequer.
Chegamos ao Hospital Universitário de Santa Maria concluindo o translado do paciente. Em seguida, fomos até a sede da empresa para devolver a ambulância no seu estacionamento indo em seguida para a já agendada cervejinha, isso tudo já pelas 22h30min da noite. Lá, no posto de gasolina, tive uma vontade louca de contar tudo ao Evandro, mas me lembrei da advertência do "Sr. Mario que não era o Mario" de que ele não iria acreditar no que diria, a despeito do que ele presenciou comigo.
Foram as três cervejas mais deliciosas que já tomei na vida.
Uma semana havia se passado. Estando na sede da empresa, certo dia o nosso coordenador médico me abordou sorrindo e ao mesmo tempo com um semblante de incredulidade me questionando:
- João, sabe o Sr. que tu e o Evandro trouxeram de Rosario do Sul sexta-feira passada?
- Sim, me lembro.
- Tu leu a ficha medica dele, ne?
- Sim, li. Ele tava todo ferrado, cheio de úlcera e perdendo sangue. Deu certo a cirurgia dele?
- Cirurgia? Cara, tu não vai acreditar! Ele foi para a cirurgia, chegaram a abrir ele. Não tinha uma única úlcera!