O ISOLAMENTO MÓRBIDO DE DOBROZNICEK - (Contra-contos #10)

O ISOLAMENTO MÓRBIDO DE DOBROZNICEK

A atitude dos colonos em Dobroznicek se tornava intolerável.

Partidos de nosso glorioso planeta Derra, berço de tantas colônias enviadas a não se sabe quantos orbes habitáveis, eles se haviam isolado de contato, inicialmente pelas dificuldades de seu singular (e desconhecido) continuum físico com sistema de referências próprio onde as emissões de ondas não chegavam, em seguida por se terem tornado de tal maneira esquizóticos e alienados que não mais recebiam com agrado as naves de visita e inspeção.

Houvera mesmo casos em que o desaparecimento desta ou daquela nave inspetora era atribuído a algum desastre em órbita de Dobroznicek.

Isso no começo das dificuldades.

Assim as suspeitas se avolumaram o bastante ao correr das gerações seguidas e afinal se chegara ao ponto de patentear a gritante má vontade dos colonos por qualquer coisa enviada de nosso glorioso planeta Derra.

Não recebiam nossas visitas de inspeção, pelo que as transformamos em visitas de cordialidade e intercâmbio respeitando maliciosamente seus anseios de isolamento e independência e cobrindo tais missões com todo o aparato necessário para serem tomadas como visitas de ‘irmãos’.

Deu certo por algum tempo mas logo outros desastres e desaparecimentos de nossos emissários tinham mostrado que ocorrera recaída a situação anterior.

Dobroznicek parecia desejar que os deixássemos isolados, abandonados, em paz e entregues a si mesmos. Ou que nada queriam conosco.

Passamos a outra etapa de contatos.

Se os primeiros, como inspetores, não davam certo e os segundos como visitantes e estudiosos prontos a colaborar também haviam dado com os cornos n’água, era experimentar a etapa seguinte, o contato de intercâmbio comercial, onde nos fazíamos necessitados de coisas que eles tinham, procurando barganhá-las por artigos que lhes faziam falta, fossem úteis ou valiosos.

Novos desaparecimentos de naves lotadas de mercadorias destinadas a produzirem qualquer resultado e seduzirem um colono primitivo – e mormente suas mulheres e crianças e parasitas sociais – tinham comprovado que os dobroznicekanos não queriam intercâmbio, nem mesmo conversa.

Tentamos a etapa seguinte; a militar; declaradamente decidida a abrir os portões do planeta assim como o Comodoro Perry abriu os portos do Japão, despejando petardos sobre as instalações do Mikado na baía de Tóquio, milhares de anos antes – ainda consta nos registros históricos.

E também essa etapa fracassou, ninguém sabe quantas naves militares, não se achou um fragmento de destroço nem se podia afirmar que se houvesse travado batalhas entre eles e as forças derrestres.

Devido ao curioso continuum espaço-tempo vigente naquela região do Cosmos as comunicações não deram sinal do ocorrido, ainda que numa só nave, nem mesmo se soube de qualquer indício de batalha.

Bem, era tentar a etapa seguinte – a da missão espiritual.

Assim preparamos um pequeno torpedo de terceira mão, muito pobrinho e aparentemente caindo aos pedaços, com todos os sinais de penúria física, o que sempre dá resultado junto aos objetivados, de acordo com a tradição de quem cuida do espírito não tem tempo ou interesse em cuidar da aparência e do corpo.

A bordo um pugilo de bravos missionários, gente realmente devotada à Religião Universal mas que se apresentaria a Dobroznicek com verdade bem preparada – seriam fugitivos (e realmente quase todos eram) de seu planeta de origem, haviam conseguido escapar e batiam às portas de Dobroznicek por coincidência, como porto-planeta mais próximo, eles em péssimo estado e no fim dos recursos.

De fato a maioria desses religiosos era gente sincera, de fato se achava perseguida, seu comportamento um tanto singular a havia levado a merecer atenções das autoridades.

Finalmente recolhidos, tudo fora organizado para empreenderem uma fuga sensacional e disfarçada, julgando-se autores e promotores da mesma, bafejados afinal pela Trindade Suprema ou qualquer de suas três extremidades ou formas no sentido de poderem escapar do mundo onde viviam, submetidos a tratamento ré educacional para deixarem de lado as birutices e voltarem a ser cidadãos úteis.

Só que no seio desse pugilo de fugitivos haveria dois agentes nossos, fazendo-se passar por refugiados, submetendo-se a tratamentos educacionais, conquistando a confiança daqueles lunáticos recolhidos e sob processo de reeducação.

Afinal o grupo fora formado sem um conhecer a origem do outro, tinham sido recambiados de todos os pontos do sistema galáctico, e da própria Derra, não se tinham conhecido senão quando internados para reeducação. Assim, nossos dois agentes podiam começar em condições de disfarce perfeito.

Quando nos fizeram saber que davam por pronta a tarefa de conquistar a confiança dos demais, facultamos a “fuga” rocambolesca, na qual e para dar mais veracidade conseguimos perseguir e recapturar meia dúzia – isso era asseguradamente o melhor meio de extirpar qualquer sombra de dúvida de parte de algum fanático ainda desconfiado de tudo aquilo.

E aumentando acidentalmente a veracidade da fuga, pelo menos de nosso lado, dos dois agentes plantados em meio deles, um fora capturado na fuga, ao tropeçar estupidamente quando corria.

Achava-se agora em tratamento corretivo e ré educacional para ao menos aprender a correr sem tropeçar mais.

Mas a fuga fora por todos os aspectos perfeita e o velho torpedo partira naquele feriado cósmico em que as patrulhas se achavam empenhadas no impressionante desfile de novas forças armadas protetoras, permitindo assim ao pequeno torpedo escapar.

Para quem achou forçada demais a coincidência fizemos ver que, para os religiosos fugidos, pareceria sinal certo de proteção da Trindade Suprema, acobertando-lhes os desígnios.

Aquela gente, acho, acredita mesmo em milagre.

Bem, tudo correu certo até entrarem no curioso continuum espaço temporal de Dobroznicek quando – era de se esperar – perdemos qualquer contato rastreador com eles.

Mas sabíamos que tinham entrado na órbita curiosa que nossos cientistas procuravam estudar e desde séculos lhes desafiava a cachimônia.

As teorias apresentadas sobre tais curiosidades como as desse continuum enchiam bibliotecas inteiras e o mistério perdurava – mas tinha sido eliminado da mente do povo comum.

Não convinha as massas saberem de algo tão singular no Cosmos, poderia causar-lhes inquietação. E nós preservávamos a paz, tranquilidade e segurança dessas massas com todos os meios ao alcance.

Preciso comentar o fato.

Evoluindo dos mais elementares processos de aprisionamento do ser humano a ciência soubera ultrapassar com rapidez a etapa dos presídios, penitenciárias e demais locais de internamento de indivíduos deslocados, transviados, inquietos, insaciáveis e insociáveis.

Estávamos agora em duas etapas, a dos centros de reeducação onde sem fronteiras, guardas ou cercas os internos simplesmente permaneciam pois em sua alimentação e bebidas eram colocadas substâncias que lhes aboliam os impulsos antissociais, com o que concordavam plenamente em permanecer em tais centros de reeducação, ao mesmo tempo em que os portões abertos facultando acesso ao mundo externo funcionavam como confirmação de estarem livres.

Só que qualquer deles chegando a tais portões, no uso de sua liberdade, para olhar lá fora, ia-se sentindo cada vez mais angustiado e tendo esgotado a resistência e coragem com olhada mais prolongada, sentia-se enormemente bem em usar seu próprio e livre arbítrio – e voltar aos alojamentos, com rapidez maior ou menor.

Sistema perfeito.

O outro meio de satisfazer as massas, estas que não podem ser confinadas, a menos que encaremos todo o planeta como sua prisão, era mais simples.

O genial trabalho de uma equipe de de psicólogos-educadores no século XXI fundava-se na compreensão de que o melhor meio de manter o homem em determinado lugar, sem prendê-lo ou contrariá-lo de modo algum, era exatamente esse – nem prendê-lo nem contrariá-lo de modo algum.

Em outras palavras, o princípio se assentava na brilhante afirmação de Boskowitz III: “Não há melhor meio de manter um homem num lugar do que satisfazê-lo plenamente nesse lugar”.

E qual a ambição maior de uma pessoa normal, sadia, lúcida?

Ter segurança total ou, pelo menos, sentir-se totalmente segura. Tendo tal noção/certeza e podendo consumir tudo quanto lhe der vontade, o homem está quase inteiramente satisfeito.

Só falta o mais importante: receber a atenção dos semelhantes, na medida que requer.

Pois nossa sociedade se achava equipada e preparada para proporcionar a cada componente toda a atenção de que ele pudesse prestar. Os mais engenhosos processos haviam sido elaborados para fazer os próprios habitantes de Derra se ocuparem dessa tarefa – dar atenção aos semelhantes.

Assim tínhamos a população mundial dividida em três partes dinâmicas que se alternavam conforme os dias de semana.

Um terço ocupava-se em dedicar toda sua atenção, boa vontade, compreensão, fraternidade, solidariedade humana e social e a coisa toda a outro terço, enquanto o terceiro ficava em descanso.

O terço A se dedicava inteiramente ao terço B, enquanto o terço C se mantinha na salmoura, em descanso, fora da jogada mas armando as suas.

No dia seguinte o terço B entrava em cena, passando adiante (e procurando melhorar) o que recebera de A, dedicando tudo isso, por sua vez, ao terço C enquanto A descansava.

E a cada ano, mudava-se um pouco aquilo para evitar a monotonia, fazendo tudo ao contrário.

Difícil descrever a emoção e empolgação gerais a cada vez que tal ordem era modificada, todos se enchiam de esperanças de que tudo ia dar ainda mais certo no novo arranjo.

De tal maneira as pessoas se empenhavam em prelibar a atenção que iam receber dentro de um ou no máximo dois dias (a espera de três dias não funcionara bem, muitos se angustiavam na espera prolongada demais), e de tal maneira se empenhavam na atenção que por sua vez iam proporcionar às outras dentro de um ou dois dias que toda a civilização – no que tange às massas – se achava empenhada em tal círculo fechado e o entusiasmo por se achar assim tão viva e interessada mantinha a massa sossegada, sem dar mais trabalho às autoridades educacionais do planeta Derra e suas colônias.

Inventavam-se novidades e variações a cada cinco anos, outras a cada dez e havia quinze séculos que tudo marchava à perfeição nesse esquema de harmonização social.

Mesmo assim surgiam rebeldes, insatisfeitos, criaturas desinteressadas em dar e receber, desinteressadas em diálogo e comunicação, desinteressadas do todo social – logo as recolhíamos e enviávamos aos centros de reeducação onde tranquilizantes e outras substâncias se encarregavam da questão – ninguém ultrapassava os portões abertos, com honrosas e formidáveis exceções – como a de Crisantemo Florimundio Beijaflor, que saíra correndo e gritando obscenidades, atravessara o portão – e fora esborrachado por pesado veículo que por coincidência passava na movimentada rua em frente.

Nos círculos mais restritos onde aquela “norma” de atendimento por rodízio não vigorava e não se usavam drogas especiais – que soubéssemos – corriam boatos extremamente interessantes, os que correm em círculos privilegiados e temos a satisfação de circular entre nossos pares de confiança e sonegar aos elementos de categoria inferior.

No caso, corria o boato de que os portões permaneciam abertos, sim, dia e noite, e nas ruas movimentadas em frente circulavam veículos automáticos e fantasmas, com sistema foto celular perfeito a medir a progressão e velocidade de qualquer reeducando rumando ao portão, de modo que era automaticamente fácil esborrachá-lo com um veículo qualquer, caso se atrevesse a chegar à rua.

De fato o tráfego comum se efetuava inteiramente nas três pistas internas da alameda, tradicionalmente arborizada, existente diante dos portões, sendo proibido o tráfego de qualquer veículo pela pista mais próxima à calçada.

E nessa pista fechada ao tráfego comum havia sempre alguns veículos parados a dezenas de metros dos portões, cujos motores entravam automaticamente em ação assim que o comando fosse recebido.

Dormiam ali motoristas humanos revezando-se e atentos, instruídos no sentido de prestarem à pátria o serviço especialíssimo e secretíssimo de, recebendo o sinal, passarem por cima do demente alucinado, subversivo, inimigo e compactuado com o Demônio das profundezas que o sistema foto celular anunciava sair pelo portão.

A morte de Crisantemo Florimundio Beijaflor viera tornar-se tópico dos mais comentados e a esmagadora maioria se inclinara naturalmente à atitude de que o pobre infeliz, afastando-se tresloucadamente do tratamento réeducacional que o tornaria homem integrado feliz e normal, afinal, encontrara fora dos portões algo como a confirmação de que o mundo externo era perigoso demais para seu estado de ânimo.

Fugindo loucamente à reeducação, encontrara morte acidental, o que vinha de modo claro e direto demonstrar a excelência e legitimidade das instituições.

A questão fora examinada à exaustão e as obras científicas sobre o caso equiparavam-se, em teorias e comentários eruditos e abalizados, àquelas que preenchiam bibliotecas inteiras examinando o mistério do continuum dobroznizekano.

O que nos faz voltar à nossa matéria, o leitor por certo compreenderá que a digressão tem seu motivo, uma vez que apresenta aspectos essenciais da felicidade e harmonia reinantes na sociedade derrestre e em suas colônias pela Galáxia, por onde implantávamos tal modelo de vida, way of living que exportávamos caridosa e generosamente a toda a parte e direção.

Com exceção de Dobroznizek, de cuja cultura colonial pouco ou nada sabíamos.

Aquele chatérrimo continuum espaço temporal!

Para nós, nos círculos internos, a existência dessa colônia – ou seria possível ter de considerá-la como ex-colônia?! -- correspondia a verdadeiro espinho na carne.

Precisávamos levar a luz e a harmonia de nossa civilização àquelas paragens primitivas, sujeitas ao erro e à desumanidade.

Por isso experimentávamos mais uma vez, adotando o processo do torpedo/foguete lotado de religiosos reeducáveis porém escapes do centro réeducacional.

Para eles não apenas o portão estivera aberto como nenhum veículo os acossara com intuito-alvo-objetivo de esborrachá-los a todos. Apenas um veículo menor os acossara, sabendo-se de antemão que a maior parte escaparia.

E exatamente nesse veículo, que teria de parar ao alcançar alguns (nossas leis de tráfego eram de severa perfeição), eles poderiam embarcar e partir para o cosmódromo, onde por coincidência haveria aquele petardo/torpedo astronáutico que, por coincidência, ambos nossos agentes saberiam pilotar, embora fazendo-se de inexperientes.

Fora ao tropeçar estupidamente e cair, obrigando os fugitivos a não mais esperarem por ele que fraturara a canela e não podia mais andar, que um dos agentes-fugitivos-religiosos ficara para trás – para ser por sua vez internado e reeducado, sujeito a tratamento intenso no Centro Especial de Reeducação do qual, circulavam outros boatos, não sairia para abrir a boca quando terminasse o efeito das medicações.

A nosso círculo interno tais fatos, desencadeados pelos planejadores que propositalmente deixavam transparecer algumas informações de caráter mais geral, traziam uma animação de tal modo vibrante que não eram de admirar o empenho e interesse com que passamos a acompanhar a fuga rocambolesca dos egressos.

A bem do fato eram incidentes dessa natureza que nos mantinham interessados e vibrantes ao máximo, em nossa vida organizada e harmoniosa – da qual fazia parte a grande honraria e distinção de sabermos o que as massas jamais saberiam, massas de criaturas de níveis mentais, psicológicos, intelectuais e pessoais inferiores.

Como nos fazia bem, passar por essa gente guardando ciosamente nossos conhecimentos, penalizando-nos e rejubilando-nos simultaneamente com o fato de sermos detentores de conhecimentos – e portanto poder – dos quais aqueles infelizes não tinham o menor vislumbre!

Infelizes é modo de dizer, naturalmente.

Aqueles infelizes não sabiam que nós sabíamos que eles eram infelizes – e na verdade julgavam-se felicíssimos e por sua vez nos fitavam com o sentimento/emoção secreto de piedade, sabendo que a nós cabia a parte “difícil e dura” de manter a sociedade em sua rota normal.

Tarefa inteiramente indesejável para eles que só queriam usar, consumir, desfrutar, divertir-se. E nós sorríamos intimamente de sua puerilidade, de sua infundada piedade.

Que coisa! O infeliz se apiedava do feliz que se apiedava de sua infelicidade!

Mas tais sentimentos em sua nobreza e elevação são próprios para a manutenção da vida normal, sempre há os que se sacrificam pela humanidade e por isso mesmo desfrutam certos privilégios especiais negados a ela, que não tem em absoluto condições de compreender.

Muito certo afirmava nosso doutrinador milenar, Sebastian Carrapicho, ao declamar uma de suas luminosas alegorias: “Quem quiser levar um coice procure estrebaria, quem quiser ouvir violinos, uma orquestra; querer violinos na estrebaria ou levar um coice e chifrada em orquestra, é procurar no lugar errado”.

Fora um dos maiores contribuintes à filosofia de vida, o way of living de nossa gloriosa civilização derrestre.

Que levados por sentimentos normalmente humanitários procurávamos estender à obstinada e atrasada cultura colonial de Dobroznicek.

Assim volto ao assunto principal: o leitor talvez esteja com tolerância bastante para perdoar tais digressões que, afinal, servem apenas para compor o pano de fundo de nosso relato.

Relato este que eu, Abominácio Reprobano Ignobiliárquico dirijo, compilando a matéria trabalhada e pesquisada por uma equipe de especialistas somando centenas de pesquisadores e cientistas sociais.

Isso porque, após a base numericamente esmagadora das massas, temos o Círculo Interno dos Encarregados, ao qual pertenci por dois séculos, ou sejam dois terços da minha vida.

Sendo a vida normal dos componentes do Círculo Interno programada para trezentos anos, no terço final com mérito suficiente para ser levado ao Sanctum Sanctorum, o Pequeno Círculo de cuja existência apenas desconfiara vagamente durante minha juventude e madureza, pertencente que era, ao Círculo Interno e que se confirmou com minha chamada, iniciação e preparo réeducacional.

Faço agora parte do Pequeno Círculo, formado geometricamente por um elemento para cada 1.600 componentes do Círculo interno.

E afinal posso olhar com piedade aqueles infelizes do Círculo Interno que, num arroubo de ignorância arrogante, apiedam-se dos componentes da massa.

Lidando com eles posso aperceber-lhes a piedade que me dedicam, assim como dediquei por cerca de 200 anos aos raros elementos que nos orientavam, criaturas que então achava merecedoras de pena e desprezo pela noção exagerada de responsabilidade em que viviam e os levava a nos dar orientações que então transmitíamos às massas

Alçado agora a seu convívio e trabalho, só posso apiedar-me desses Circulares Internos, conhecendo-lhes muito bem a vida (tive 200 anos para tanto) e recebendo deles a piedade-desprezo que também dediquei aos Circulares Pequenos (e discretos) que na realidade dirigem toda esta magnífica, soberba, diamantina organização piramidal-social que propugna pela harmonização-cristalização do mundo – e continua lutando para levar nossa norma harmoniosa aos colonos derrestres de Dobroznicek.

Retomando o relato, soubemos que a viagem a bordo do torpedo/petardo decorreu em ambiente confuso e agitado mas nosso agente soube dirigir a nave aparentemente destroçada à órbita de Dobroznicek, tendo entrado em seu continuum e com isso deixado de enviar os sinais combinados pelos quais podemos reconstituir os traços gerais dessa viagem.

Os sinais que recebemos, enviados por nosso agente, informavam que desde a partida tinha ocorrido toda a espécie de problemas.

Cada fugitivo propunha uma direção e após muitos debates inteiramente estéreis um dos rebeldes religiosos se impusera, distribuído pancada a torto e a direito e impondo silêncio e respeito aos demais – todos eles machucados e dotados de contusões.

Imposta essa aparência de ordem e norma, por processos primitivos como se vê, tal figura hercúlea se dirigira manso como cordeiro a nosso agente que pilotava a nave e fizera ver que de navegação eles não entendiam coisa alguma e que, portanto, estavam em mãos dele, Costurino Sebastopol.

E propunha humildemente dirigirem-se a – Dobroznicek!

Nosso agente Costurino Sebastopol julgara-se vítima de nefanda interposição de serviços sigilosos derrestres: onde pretendera tocar para a colônia obstinada, contara com o apoio do companheiro, muito persuasivo em debates.

Mas o pedido feito pelo Hércules Religioso viera pegá-lo de surpresa, supusera haver outros agentes sigilosos a bordo e que Hércules fosse um deles.

Afinal tudo se esclarecera quando um dos contundidos fez ver que aprovava a escolha, mesmo porque, se escapassem pousando em qualquer outro planeta, seriam recambiados para Derra.

Diante da evidência dos fatos os demais companheiros haviam aplaudido a ideia.

Melhor o Inferno, teriam dito, que voltar a Derra.

E o único discordante disposto a enfrentá-los a todos e começar a discutir e perorar sobre o perigo satânico sobre suas cabeças caso tocassem para aquela colônia rebelde, o verdadeiro berço de Lúcifer, logo fora fazer sua arenga no espaço exterior, enfiado num tubo de torpedo e disparado no espaço – sem roupa apropriada.

Tendo-se assim livrado do elemento discordante, discordante no que tocava ao destino visado, o lugar para onde deveriam fugir, os demais pareceram entrar em tamanha concordância quanto a tudo o mais, que nosso agente Costurino Sebastopol voltara a suspeitar que, todos a bordo fossem agentes sigilosos dos diversos níveis da hierarquia social.

Jamais pudera imaginar que uma coletividade de dezesseis pessoas (com ele dezessete, mas não participava nos debates, limitava-se a pilotar o frangalho da nave) se entendesse tão bem sobre um assunto, quando eram sabidamente discordantes em quase tudo e por qualquer motivo.

Mais tarde verificara que a medida enérgica adotada pelo Hércules Religioso, inteiramente primitiva e nefandamente ditatorial, claramente coercitiva e portanto inteiramente antipedagógica e anti-psicológica, traumatizante mesmo, dera resultado pleno e impossível de obter por outros meios sem medicações modificadoras de pensamentos e psiquismos.

E quando o mesmo Hércules Religioso confirmara as bordoadas distribuídas com maestria, deixando-os todos meio moídos, pegando o discordante pelo cachaço e enfiando-o no tubo, disparando-o como torpedo humano pelo espaço exterior, o interior surrado e destroçado do foguete/torpedo conhecera a paz e a calma.

-- Vamos para Dobroznicek – confirmara então o tonitruante Moisés furioso, como que agarrado às Taboas da Lei, dois porretes de bom tamanho e eficiência reconhecida, demonstrada por mãos eficazes.

No final de recursos internos e de energia elétrica, o torpedo/foguete-petardo alcançara o continuum misterioso e se adentrara, emitindo mensagem pedindo asilo.

Esse é o fim de nossas informações, há 10 anos não temos notícia de qualquer trabalho realizado na colônia rebelde, não sabemos se os fugitivos e nosso agente estão vivos ou mortos.

Mas será preciso aguardar, o agente Costurino Sebastopol sabe que se aproxima a ocasião de dar notícias de algum modo.

E procurará safar-se de lá, sair de Dobroznicek trazendo relato completo sobre os fatos que levam os dobroznicekanos a manter tal atitude isolacionista e rebelde, esquizoide e patentemente mórbida de isolamento.

Quando temos generosamente tanto a lhes oferecer, a nossa harmoniosa norma, a paz, a segurança, a abastança, nossos insuperáveis valores morais!

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Valpii 860504 791129

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O ISOLAMENTO MÓRBIDO DE DOBROZNIZEK

Forma parte da Coletânea

CONTRA-CONTOS,de Affonso Blacheyre, (1928-1997),

cuja biografia está publicada no RECANTO..

Trata-se do décimo dos contos da coletânea.

(editado por Gabriel Solis.)

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Affonso Blacheyre

Affonso Blacheyre
Enviado por Gabriel Solís em 14/09/2024
Código do texto: T8151540
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