Uriel e Jofiel
[Uma história imediatamente posterior à "Cidade fechada"]
A "recomendação" (leia-se "ordem") que recebera, antes de sair de Moscou rumo a Ecaterimburgo, e de lá para Novaya Verkhoturye, fora "circular uns dois dias, para se ambientar no destino", e ela estava seguindo à risca a recomendação. Já havia "circulado" bastante, usando uma bicicleta emprestada pela anfitriã, Vera, e como a cidadezinha era pequena, praticamente já conhecera tudo o que havia para se conhecer - ao menos, na superfície. Porque, como logo percebeu, havia uma outra cidade, de extensão desconhecida, por baixo do pitoresco povoado dos Urais. Por ironia ou conveniência, uma das entradas para o domínio subterrâneo ficava justamente sob a igreja branca de cúpulas douradas, em frente à praça central do vilarejo. Em circunstâncias normais, tirar fotos numa área de acesso restrito como Novaya Verkhoturye, poderia lhe trazer consequências extremamente desagradáveis, não estivesse ela ali justamente para... tirar fotos. Mas até mesmo a sua atividade precípua não era um salvo-conduto para fazer o que bem lhe desse na telha: ao adentrar o suposto templo, para averiguar o fluxo de civis que ali entravam e saíam, viu-se diante de um biombo de madeira, decorado com figuras de santos e cartazes anunciando supostas festividades religiosas, protegendo a nave de olhares curiosos de quem passasse pela rua. E mais adiante não pôde ir, pois dois soldados das Forças Especiais, a Spetsnaz, armados e vestidos de preto dos pés à cabeça - coberta por uma balaclava que só deixava os olhos à mostra - surgiram de cada lado do biombo, impedindo-lhe a passagem.
- Desculpe, camarada Yekaterina Stepanovna, - disse um deles - mas não tem permissão para ir além deste ponto sem autorização superior.
- Se sabe o meu nome, deve saber porque estou aqui - replicou ela, sem se intimidar pelos grandalhões fardados e suas metralhadoras RPK.
- Sabemos, e temos ciência de que não pode entrar aqui sem permissão - retrucou com firmeza o outro soldado. - Queira conduzir suas atividades lá fora, por favor.
Kate engoliu o orgulho, e, câmera LOMO pendurada no pescoço, bateu em retirada.
No fim da tarde, ao voltar para a residência dos anfitriões, comunicou sua contrariedade à Vera.
- Imagino que possa falar com você sobre qualquer coisa relacionada às minhas atribuições aqui, não é? - Indagou.
- Pode e deve - foi a resposta direta.
Seguiu-se um relato sobre a visita frustrada à presumida igreja ortodoxa, o qual Vera ouviu atentamente e sem fazer qualquer comentário.
- O que você me diz? - Perguntou finalmente Kate.
- O general Naumov lhe deu carta branca para entrar em áreas de acesso restrito? - Questionou Vera.
- Não - admitiu Kate.
- Então, siga as instruções do jeito que as recebeu... você circula pela cidade... e tira fotos do que achar interessante - sugeriu Vera.
A jovem fez um aceno de cabeça.
- Certo... entendi... mas estou começando a achar que vou morrer de tédio aqui. O lugar é pequeno e, depois de uma semana, provavelmente já vou ter fotografado tudo o que há de interessante. Será que vão me autorizar a dar umas voltas pelo campo?
Vera olhou com um misto de pena e simpatia para Kate.
- Eu e Sasha podemos levar você de carro para conhecer os arredores, no fim de semana - prometeu. - Quanto ao tédio... amanhã você deve levar para revelar os filmes que usou nestes dias, e prevejo que irão trocar a sua câmera e lhe dar instruções de como irá operá-la. Aí, tenho certeza de que o seu tédio vai se evaporar rapidinho!
A expressão de Kate não era de quem parecia muito animada com a perspectiva.
- Nossa... uma nova câmera. O que poderia ser, uma LC-A?
- Espere para ver - Vera parecia tão certa do que estava falando, que Kate desconfiou que não era a primeira vez que passava por aquela situação.
- Você já teve outras hóspedes como eu, não é? Nos verões anteriores...
Vera balançou a cabeça, sorrindo de leve.
- Não é a primeira vez que uma das meninas do projeto chega aqui no segundo dia, reclamando de tédio - assegurou. - E quando vão embora, ficam loucas para voltar.
Kate perguntou-se o que poderia haver ali de tão interessante para fotografar, que alguém ficasse "louco por voltar" após gastar algumas dezenas de rolos de filmes durante toda uma estação, tendo sempre os mesmos locais como cenário. Mas guardou as dúvidas para si, já que Vera obviamente sabia muito mais do que ela.
- Vá tomar um banho e trocar de roupa - orientou-a Vera com ar quase maternal. - Depois você me ajuda na cozinha, organizar as coisas para quando Sasha chegar do trabalho.
Kate já havia percebido que Vera não era apenas uma simples dona de pousada - com uma única hóspede - e que meio que estava ali à disposição dela, Kate, durante toda a sua estadia. Nos dias seguintes, a jovem começou a desconfiar que sua anfitriã provavelmente possuía formação médica, o que só tornava ainda mais estranho o fato de que ela aparentemente jamais saía de casa para atender quem quer que fosse. Confrontada, Vera não negou nem confirmou as suspeitas da jovem; apenas disse que passar todo o verão com ela já era uma atividade prazerosa o bastante, e que esperava que pudessem terminar a temporada como amigas. Kate encarou a mulher mais velha, um tanto surpresa com aquela revelação.
- Você tem filhos, Vera?
A resposta tardou um pouco e Vera pareceu constrangida ao dá-la:
- Tenho dois... eles moram em Ecaterimburgo. Infelizmente, não posso trazê-los para cá.
Kate ia perguntar a razão, mas imediatamente concluiu que isso tinha relação com o status de "cidade fechada" de Novaya Verkhoturye. E também com o estranho fato, que já lhe havia despertado a atenção, de que não havia visto crianças ou adolescentes pelas ruas. Aliás, após refletir mais um pouco, sequer mulheres jovens: ela parecia ser a única, numa cidade habitada por homens de mais de 30 anos e mulheres que já haviam entrado na menopausa.