NO ESPAÇO TEM TRAMPO - ENGENHEIRO

Edvandro se dirigia para a sala de Paulo, o dono da mineradora onde trabalhava. Ajeitou os óculos e respirou fundo antes de entrar na sala, que ficava sempre de porta aberta. Lá dentro havia duas mesas, a de Paulo, que estava vazia, e a da secretária, ocupada por uma bela moça. Ela estava entretida, olhando uma pequena tela holográfica que saia de um cilindro metálico, do tamanho e formato de uma caneta. Era um celular. A calma dela o irritava, todos podiam perder o emprego e ela não parecia se importar. Esse emprego era tudo para Edvandro.

A jovem secretária tirou o olho da tela quando viu Edvandro entrar, e lançou um olhar de desdém.

— Sabe onde o Paulo tá? — Edvandro perguntou mais por educação do que curiosidade, já imaginava onde ele estava.

— O senhor Paulo — a jovem deu muita ênfase na palavra senhor — saiu há muito tempo. Ele…

Edvandro só suspirou e foi embora deixando a jovem falando sozinha. “Eu tentei ser gentil. Se ela fosse tão bonita que nem ela pensa, o chefe não sairia daqui”.

Sabendo que seu chefe odiava o trabalho de escritório, foi para a área de mineração. Não foi difícil encontrá-lo.

— Como assim não vai dar? — Paulo esbravejava com Luiz, um dos encarregados da mineradora. O funcionário mantinha um ar indiferente ao esporro do patrão — É para tirar tudo ainda essa semana. Eu falei como que tinha que fazer. Você faz tudo do seu jeito. Tem a mudança. Sabia que não devia ter posto um molenga como você no comando.

Paulo era moreno e alto, o tamanho e a voz fazia com que Edvandro ficasse com ainda mais medo de falar com o chefe. Era poucos centímetros mais baixo, porém não era apenas a diferença de altura que o fazia se sentir inferior.

Paulo foi quem falou primeiro:

— Desculpa, eu esqueci da reunião — disse em um tom calmo, diferente de antes —, fiquei de saco cheio de esperar e vim ver como estão as coisas.

— Tudo bem. Consegui marcar a viagem. Falta só confirmar qual o elevador será usado. Tudo indica que vamos aproveitar todo o nosso maquinário e só vai gastar uma semana de mudança, antes de poder começar a cavar.

— Aquele corno do Carlin fudeu minha vida. Fazer o quê? Tem que ir. — Na verdade ele não precisava ir, podiam ter contratado um técnico de segurança. Mas conhecendo a teimosia de Paulo, desistiu de tentar convencê-lo a mandar outro.

No dia da viagem, Paulo partiu com Luiz, Carol e Vinicius. Usavam uma nave triangular de carga nada confortável e todos os equipamentos que deveriam levar piorava a situação. Paulo digitou no computador para onde queria ir. Ao contrário dos outros passageiros, ele nunca tinha ido para lá, mas fazia questão de ficar no comando.

Assim que a inteligência da nave reconheceu o destino e calculou a rota, levantou voo. Sem falar nada todos começaram a pegar um dos vários celulares disponíveis. O aparelho reconhecia a pessoa que estava utilizando e ajustava o conteúdo conforme o gosto da pessoa e, principalmente, do pacote pago. A viagem foi bem curta, o veículo viajava em velocidade supersônica.

Paulo olhava a tela, mas não prestava atenção, se sentia incapaz de fazer o que devia, mas era orgulhoso demais para deixar outro tomar o seu lugar. Não aguentava mais ver seus homens e mulheres olhando com ar de piedade. Imerso em pensamentos, tomou um susto quando Carol avisou que tinham chegado. As torres deviam estar no campo de visão a muito tempo, mas Paulo nem percebeu.

À medida que a nave desacelerava, o perfil da asa mudava para se adequar a velocidades abaixo da do som. Não queria deixar transparecer, mas estava óbvio que estava impressionado com a visão do primeiro destino. Olhava para cima, mas não conseguia ver o topo das torres, era como se elas perfurassem o próprio céu. Embora tivessem alguns quilômetros de diâmetro, se comparado a sua altura pareciam alfinetes.

Achava impressionante como estruturas tão altas permaneciam em pé, ainda mais pelo fato de que era a altura que permitia isso, ultrapassando a órbita geossíncrona e sendo sustentadas pela força centrífuga da rotação da terra. Conhecia essa explicação, mas não entendia o significado físico do fenômeno. O que importava é: elas alcançavam o espaço. Por isso eram usadas como elevadores para levar objetos para o espaço, por isso o nome Elevadores Espaciais. Viu vários trilhos metálicos por onde contêineres metálicos subiam e desciam transportando satélites, pessoas, equipamentos para estações, mas principalmente naves.

Vendo de perto conseguiu entender porque a construção do primeiro elevador foi tão importante para a humanidade. Fazia sentido contar o tempo a partir de sua inauguração. Estavam no ano 102 d.E.E (Depois do Elevador Espacial). Vários países diferentes tinham calendários próprios, por ser uma ferramenta para todos, independente da nacionalidade, um calendário único foi decidido.

A viagem de subida pelo elevador foi bem mais demorada que a viagem até ele. Na entrada do elevador, havia vários locais onde podiam pegar celulares, como era um dispositivo disponível de graça em qualquer lugar, era raro alguém que ficasse carregando o aparelho. Após pegar um novo celular, em menos de um segundo já estava configurado conforme os gostos do usuário. Paulo botou os fones e começou a ouvir histórias sobre mineração no espaço. Encontrou uma notícia sobre um homem, que tinha se sacrificado para salvar todos os seus colegas. Sabia que a parte do sacrifício era inventada, mas tinha bastante informações verdadeiras relacionadas às leis atuais e algumas leis que eram prováveis de entrar em vigor.

Ele tinha medo do espaço. Sabia que não era o tipo de história que deveria ler, mas se sentia atraído por isso. Ele era o tipo de homem que faria algo assim.

— Essa segunda é bem melhor, né? — Vinicius tentava puxar assunto, enquanto subiam — já perdi a conta de quantas vezes fiquei preso naquela porcaria da primeira.

— Não sei porque chamam de pirulito — Paulo respondeu, sem tirar o olho do celular —, ainda mais agora que são duas. E parecem mais parafusos. Falar parafusar seria o certo. — ele só tinha visto o topo por fotos e vídeos, mas queria mostrar experiência.

A cabine do elevador era de vidro para que pudessem apreciar a vista. A nave iria ser entregue no topo. Após o comentário de Vinicius, começou a reparar na diferença de velocidades dos elevadores. O que estavam parecia subir com o dobro da velocidade. Paulo desejou que estivessem no primeiro, assim teria mais tempo antes de encarar o seu destino.

Um sinal alertava que estavam quase no topo e que deveriam se afivelar na cadeira. A gravidade da terra já estava perdendo seu efeito. Paulo sentiu seu corpo mais leve. Deixou escapar um suspiro preocupado e ficou com raiva de si mesmo. “Não deixe eles verem seu medo. Tome controle da situação”.

Eles pararam no topo do elevador, uma estrutura hexagonal. Ficou aliviado por lembrar a cabeça de um parafuso, como tinha dito. Estava tendo dificuldade de se mover flutuando, mas nenhum de seus funcionários se ofereceu para ajudá-lo. E preferia que fosse assim.

A parede externa da estrutura era de vidro, permitindo apreciar a vista do espaço. Foi a primeira vez que Paulo viu a Terra de fora. Pelo menos a visão compensou. O falecido Carlin tinha razão ao querer preservar o planeta.

Eles iriam dormir no topo antes de partir. O elevador contava com restaurante e quartos, porém não tinha sistema de gravidade artificial. Paulo ficou em um quarto individual e os outros três dividindo o outro. Normalmente não ligava para dividir, mas não queria passar vergonha por não ter experiência em ambientes sem gravidade.

Na manhã seguinte, tomaram café no restaurante do local. Uma refeição sem graça escolhida de acordo com a necessidade nutricional de cada um. Todos deveriam usar o uniforme que o cliente forneceu. Paulo era o único que não estava usando, achava o logo ridículo e só iria vesti-lo no último segundo. Não queria ter que fazer esse serviço, muito menos estar ali. Mas achava que não tinha muita escolha. Tudo por causa daquele e-mail, há três meses.

"Devido a política ambiental, conhecida como lei Carlin, a exploração de recursos na Terra está limitada. Com advento de novas tecnologias que facilitam a viagem espacial, sempre deve-se dar preferência pela exploração além Terra de recursos. Portanto, é com pesar que negamos sua solicitação…". Paulo nem se deu ao trabalho de ler o resto.

— Conseguiremos retirar material por mais uns quatro meses só. — disse Edvandro após também ler o e-mail — O jeito é buscar meios de nos capacitar para a mineração espacial. O Luizão tem experiência, na verdade ele conhece mais de mineração espacial do que na terra. Ele pode liderar a equipe. — Paulo acreditava que Luiz tinha mais conhecimento que ele, mas era inseguro. “Liderar é ter pulso firme e tomar decisões. Luiz é muito mole”.

— Maldito Carlin. "Não tem poluição do meio ambiente se não houver ambiente no meio". — disse a famosa frase com tom de deboche — Então vamos. Marca treinamento para mim também. Vou achar uma pedreira boa para nós.

Paulo fez só o básico dos treinamentos para se adequar às normas para trabalhar no espaço, via apenas como burocracia desnecessária.

Pesquisou em tudo quanto é lugar, inclusive ouvindo histórias jornalísticas, em busca de alguma informação útil. Os jornais perderam a muito tempo a sua função de informar, se transformando em entretenimento. Mas Paulo sabia que algumas das histórias tinham um fundo de verdade e foi com a sua habilidade de detectar isso que conseguiu encontrar sua nova pedreira.

— A lua daquele planeta tem minérios bem parecidos com os que nós exploramos aqui. — relatava Edvandro em outra reunião. — Como você descobriu com antecedência o local, a licitação já é nossa, mas vamos ter que fazer um serviço antes. Isso é parte do escopo da proposta. E pior que tem muita burocracia para terceirizar essa parte. É mais fácil nós mesmo fazermos.

A lembrança de três meses atrás foi interrompida pela necessidade de seguir viagem. A visão da Terra era bonita, a do espaço era assustadora. Um infinito negro com pontos brilhantes. Sem som, sem ar, sem possibilidade de vida. Como alguém poderia querer ir para o espaço? Para fugir desses pensamentos, focou sua visão no destino, vários pontos luminosos à distância, que já davam a ideia do formato do local. Partiram assim que terminaram o café.

À medida que a nave se aproximava, conseguiu ver a estrutura metálica onde estavam instaladas as luzes. Era composta de um grande anel metálico, com vários tubos indo do centro até o anel, formando 12 divisórias iguais, parecidos com fatias de pizza. Duas delas eram preenchidas com luzes azuis, como se fossem portais. E eram. Toda a estrutura era chamada de Portal. O nome oficial era Transportador Quântico de Buraco de Minhoca. Paulo sempre odiava quando diziam que algo era "quântico", só para dar um ar ao mesmo tempo, científico e misterioso.

Antes de irem para o Portal, eles deveriam se identificar em uma estação de manutenção próxima. Não dava mais para enrolar. No banheiro da nave, Paulo começou a vestir seu uniforme com bastante dificuldade. Bateu a cabeça no teto com bastante força tentando vestir as calças. “Maldito Carlin. Maldito serviço. Não queria tá aqui. Construí minha vida na Terra, porque isso tinha que acontecer?”

Ele odiava o logo do cliente, mas tinha que usar. Era um desenho bem minimalista, em preto, branco. Mostrava o planeta Terra com os dois elevadores, mais parecendo parafusos do que torres. A estrutura em forma de roda também estava no logo, à direita, no que deveria ser o espaço. Mas era um desenho bem simplista, quase mal feito.

Paulo odiava tudo relacionado ao espaço. Construiu sua vida e uma empresa de sucesso. Trazia progresso para humanidade e não botava a vida de ninguém em risco desnecessário. Mas não era respeitado só porque não era no espaço. “Tudo tem que ser no espaço agora”.

A estação não era muito impressionante, parecia ter o tamanho de uma casa simples. Apenas cinco pessoas trabalhavam lá, uma vez que a maioria dos trabalhos era automatizado. Não só no local, mas em todo lugar. Isso era possível graças à revolução da automação, principalmente após a melhoria das Inteligência Artificial, diminuindo muito a necessidade humana na execução das atividades industriais. Se não fosse por sindicatos e outros motivos, a estação teria menos do que cinco funcionários.

Paulo foi se identificar para um dos funcionários do Portal, que se mostrava bastante desinteressado. “O corno tá fazendo nada e ainda consegue ficar puto quando tem algo para fazer”.

Ele informou ao homem da empresa, o que iriam executar, quem solicitou o serviço, a ordem de serviço e mais um monte de informações técnicas. O homem, com ar sonolento, não fazia o menor esforço para conferir todas. Cada um deles recebeu um crachá feito na hora e foram liberados.

Segundo o escopo do serviço, eles iriam trabalhar na primeira fatia à direita das divisões iluminadas. As divisões ativas, que possuem iluminação, eram chamadas de pontos. Eles eram usados para enviar objetos para outro lugar no espaço, apenas de ida.

Um novo ponto seria instalado onde iriam trabalhar. Sua função seria enviar, qualquer objeto que o atravesse, para uma região cheia de asteroides e planetas exploráveis, incluindo para o local que obtiveram permissão para explorar.

A equipe deixou a nave na estação de manutenção. Luiz conferiu todas as ferramentas e EPI de todos. Segundo ele, planejamento é a etapa mais importante do trabalho espacial. Partiram com traje espacial completo, já que a distância era curta. Os trajes possuíam sistemas de propulsão e vários sistemas de segurança. Eles partiram com uma corda ligando eles até a estação.

Ao chegar no Portal, o grupo engatou os dois ganchos de segurança na estrutura e soltaram a fixação com a estação de manutenção, que estava na sua extensão limite. Essa linha de segurança tinha iluminação, para enxergá-la no espaço e sistema de propulsão, controlada remotamente, para que pudessem usá-la para a volta.

O gancho tinha como sistema de segurança o duplo acionamento, portanto tinha que apertar dois locais, ao mesmo tempo, para abri-lo. Paulo estava tendo bastante dificuldade. Portanto, encaixou os ganchos no primeiro local que viu, uma alça ao lado de círculo luminoso vermelho com um olhal no centro.

Como só tinha que vigiar a equipe, voltou a mexer no celular. Ele se sentia estranho, solto no vácuo. A ausência de som era assustador. Tinha os barulhos do traje e do comunicador, mas ele via os outros manuseando os equipamentos em total silêncio.

— Não, segura aí — dizia Luís pelo comunicador para os outros dois —, tem que colocar o gerador primeiro e depois o sistema de projeção. Vem cá, que eu te mostro o projeto. — o celular dele começou a projetar alguns diagramas. Ele tinha um pacote extra que permitia ampliar mais a tela e mostrar hologramas 3d de projetos — Aqui tá o que nós temos que instalar, o que já existe e o que será instalado. Se fizer desse jeito, não vai dar para fazer o sistema de salto. Nós só vamos colocar a iluminação e identificação do ponto. A maioria acha que as luzes são o portal, mas é só para indicar mesmo. O portal é invisível.

Paulo parou para ver como Luiz coordenava. Sempre achou que ele fosse muito lento, porém era caprichoso nas atividades e gostava de ensinar. Ele entende do negócio e sabe explicar. Ficou mais relaxado para deixá-lo no comando daqui para a frente.

— Ter que ficar toda hora mudando o gancho é foda. — disse Luiz, ao engatar na nova ancoragem. — Dá para fazer fácil umas linhas anti escape e o gancho só ir deslizando. Me passa essa chave. Não, caralho. Joga não.

A física no espaço era diferente, os movimentos eram mais lentos e imprecisos. Luiz até tentou agarrar o objeto, que apenas esbarrou na mão e desviou. Sem som no espaço, Paulo não percebeu o que estava acontecendo. Sem a resistência do ar, a chave pegou uma velocidade maior do que o esperado e atingiu o ombro dele. Não foi um grande impacto, mas foi o suficiente para fazer Paulo rodopiar no vazio. O local onde estava ancorado não era adequado e se soltou junto com o gancho.

Desesperado, ele tentou ativar os propulsores, mas por estar girando, os propulsores só pioraram a situação, fazendo com que ele girasse mais e se afastasse dos companheiros. As estrelas deixaram de se tornar pontos para virarem linhas. Parecia com aqueles filmes de ficção científica quando entraram no hiperespaço e essas coisas.

Ouviu seus funcionários desesperados, pensando em como ajudá-lo. Se sentiu enjoado com os movimentos. “Era isso que tinha medo. Não quero morrer sem ar”. Lembrou do pouco treinamento que fez. “É isso que vou lembrar antes de morrer?”

Lembrou de quando o professor explicava sobre as forças no espaço. Pequenas rotações em várias direções geram grandes esforços no corpo. Paulo se sentiu como no giroscópio de treinamento. Tudo perdeu a cor, apesar de não ter muitas coisas coloridas no campo de visão. Seu corpo doía. Ouviu Luiz guiando seus homens para o resgate. “Só quero ir para casa e nunca mais sair do planeta. Tô cansado dessa imensidão negra. Quero ver o céu, com seu azul e nuvens”.

Não foi possível resgatá-lo. O traje tinha oxigênio para mais 20 horas. Mas o desespero, a visão de tudo rodopiando, foi demais para seu coração. Sem que ninguém pudesse saber, Paulo morreu no espaço, de parada cardíaca. Seu corpo nunca foi encontrado.

O ano era 152 d.E.E. Thiago trabalhava, há quase dois anos, como projetista mecânico em uma empresa pequena de engenharia, chamada SOKI. Tinha passado o mês anterior fazendo um projeto para estações de enchimento de naves tanques. As estações seriam instaladas no planeta Pegasi B.

A empresa estava passando por problemas financeiros. Tinham pegado o projeto, mas a execução ainda estava em licitação. Os donos estavam bem confiantes que conseguiriam pegar a obra e sair da miséria.

Não conseguiram a execução da obra.

Thiago não tinha muito o que fazer, o projeto em Pegasi, já estava finalizado. Não tinham projetos novos. Enquanto lia uma norma para não ficar parado, reparou que Guilherme, seu amigo, foi chamado para conversar lá em cima, na sala dos chefes. Os dois trabalhavam no mesmo setor. A conversa não demorou muito e ele voltou desanimado.

— Me demitiram. — ele disse para Thiago — Disseram que a situação está ruim. O que todo mundo já sabia. Que tentaram evitar isso ao máximo. Vão manter só o suficiente para tocar a empresa. Mas não esquenta com isso, como você é o único projetista, não deve rodar.

Muitos outros foram demitidos. Como Thiago era o único projetista mecânico, estava calmo. Tinha grandes chances de ficar. Precisam dele para ter projetos.

O telefone tocou. Thiago foi chamado para conversar lá em cima. Os dois donos estavam esperando ele. Eles não pareciam nada felizes. Passaram a manhã inteira demitindo.

— Bem, você já deve saber da situação da empresa, né? — Thiago estava nervoso, tinha falado com eles poucas vezes, e sempre travava perto deles — Não é o que gostaríamos, mas vamos ter que desligá-lo da empresa. Vamos reduzir o pessoal e fazer algumas mudanças. Perdemos a obra da estação em Pegasi B, mas obrigado por tudo. Todo mundo gostava de seu trabalho.

Thiago ficou sem chão. Achava, com certeza, que iria continuar. No seu setor trabalhavam ele, Guilherme e Eduardo. Era o único que sabia usar bem o SolidIA, um programa que fazia projetos 3D. O software gerava hologramas tridimensionais que eram usados como base para fabricação e montagem.

Thiago gostava de ensinar. Já fazia um tempo que estava mostrando para os outros dois como usar o SolidIA. Dos dois, Eduardo era o que estava mais disposto a aprender. Foi o único dos três que continuaria, por ter mais tempo de casa. Ou seja, o acordo seria caro.

Mesmo demitido, Thiago fez questão de ensinar tudo que podia no mês de aviso, já que eram amigos.

Quando contou sobre a demissão para sua mulher, Luísa. Ela ficou mais arrasada que ele.

— O que vamos fazer? — ela perguntou, Thiago era o único que estava empregado — Eu não quero voltar para casa dos meus pais. — o casal tinha vindo de outro país há 6 anos. Para ter mais oportunidades de estudo e trabalho. Luisa estava quase terminando a faculdade.

— O jeito é ir mandando currículo, ficar de seguro o quanto puder. Se nada der certo eu volto para Solarium — a ideia de voltar a trabalhar lá, afligia ele. A empresa era bem ruim, ele trabalhou lá por quase dois anos. Comparada com a SOKI a engenharia e gestão eram ridículas.

Durante o aviso, continuou trabalhando normalmente. Os outros que foram demitidos estavam muito chateados e passavam o dia todo só conversando e reclamando. Thiago mandava vários currículos por dia, se inscrevia em redes de empregos e usava app para relocação, tinha vídeo de apresentação em tudo quanto é site de emprego.

Se não conseguisse emprego logo teria que voltar para a casa de seus pais. Quem não tinha emprego ou estava estudando não era respeitado. Não sabia se Luísa continuaria com ele.

— É muito injusto esse pessoal de RH — ele disse para Eduardo — Tem o funcionário que quer o emprego e a empresa que busca o funcionário, certo? Aí vem essas bostas do recrutamento para dificultar esse encontro, só para você precisar deles. "Os recrutadores não usam mais isso" — disse imitando em tom de deboche — Porque não? A empresa tem que deixar de contratar esse povo, porque você quer? Ah! Se foder!

Thiago não pagou para um recrutador ajudar, mas mesmo assim conseguiu uma entrevista, um pouco antes do fim do aviso. A empresa em questão, chamada RXW, trabalhava linhas anti escapes e serviços de segurança para ambientes de pouca gravidade. A principal atividade era adequar as empresas na norma Nr 45 — Trabalho Abertos em Ambientes de Gravidade Reduzida.

— Gostamos do seu currículo — disse um dos entrevistadores — Estamos sempre precisando de projetistas e é raro achar alguém que já tenha experiência, como você. Viajar vai ser um problema?

— Não, problema nenhum — respondeu Thiago — Tinha até comentado, com meus antigos chefes, que gostaria de viajar mais. Para ter mais experiência.

— Isso é bom. Aqui usamos o InvenIA, usávamos o SolidIA antes, mas tivemos que mudar. Isso é problema?

— De jeito nenhum. Esses softwares são parecidos. Vai ser fácil a transição.

— Então é isso. Se não for problema, pode começar segunda. A Juliana, do RH, vai te passar tudo que tem que saber e marcar o exame de admissão.

Thiago estava feliz. Emprego novo, salário melhor, outras experiências. Porém, mesmo assim sentia-se triste, porque gostava do antigo trabalho. Adaptar a um novo emprego deixava ele ansioso.

Assim que conseguiu o novo emprego, e pegou o acerto do antigo, saiu para comemorar. Levou a esposa para comer fora.

Com o intuito de ter trabalhadores mais saudáveis e evitar desperdícios desnecessários de recursos naturais, a nutrição passou a ser controlada. Não que fosse proibido, mas passou a ser caro comer fora do básico necessário. Então levar a esposa para comer fora era um evento. Luísa estava muito nervosa com o fim da faculdade e fazia tempo que eles estavam com problemas financeiros.

Passou quatro meses trabalhando na nova empresa. Thiago estava ralando para fazer um projeto simples. O que faria em meia hora no SolidIA, demorava duas horas no programa novo. Os outros projetistas também não tinham tanta experiência com o software, então não podiam ajudá-lo. Em várias situações Thiago descobria uma maneira mais fácil de usá-lo que os outros desconheciam, graças a sua experiência.

— Vai ter uma viagem para EspaceMinas, esse final de semana. — disse Marcelo, coordenador do setor de projetos — Estou pensando em mandar a Denise e o Thiago. Já que os dois vão precisar fazer integração.

Thiago achava o Marcelo estranho, não conseguindo saber se ele estava feliz ou chateado. Era diferente dos outros chefes, não só delega, como também trabalhava se necessário. Porém, como também fazia, não dava muito espaço para que os projetistas aprendessem ou soubessem o que estava acontecendo.

EspaceMinas era um cliente antigo da RXW. Era bem comum ter viagens para lá. Thiago achava estranho ter que ir tanto. “Será que não dava para fazer tudo numa viagem só?”

— Além disso — continuou Marcelo —, na volta vocês vão passar em Marte. Para fazer uma inspeção anti escape. Depois nós vamos passar tudo certinho.

Thiago odiava isso. Sempre avisava das viagens em cima da hora. Deixavam para explicar o serviço só no último instante e mesmo assim sempre pediam que fizessem uma atividade e cobravam além do que foi solicitado. “Se for para adivinhar, tem que pelo menos fornecer o material, uma bola de cristal, tarô ou búzios”.

— Tinha uma história jornalística sobre pirulitar Marte — Thiago disse para seus colegas assim que o chefe saiu. Mal terminou de falar e já tinha se arrependido. Dizer que ouvia esse tipo de histórias, podia dar a impressão de que ele era infantil.

— Mas estão mesmo. — respondeu Denise — Instalamos algumas linhas no Elevador de lá. Só não sei se já ativaram.

Denise tinha aparência comum. Era o braço direito de Marcelo, já que possuía mais experiência. Ela não era muito de conversa.

O assunto morreu. Thiago não tinha conseguido criar amizades como no serviço antigo. Como não pensou em outro assunto, voltou a trabalhar no projeto. Olhou para o holograma que fazia, uma linha de segurança para uma escada vertical. Essa escada estava localizada em uma estação espacial. Ele não sentiu orgulho quando olhava para seu trabalho. Lembrou dos projetos que fazia e sentiu saudades.

— Você está animado? — perguntou Luísa, quando ele contou da viagem.

— Não muito. Preferia não ter que ir.

— Não gosto que você vá. Não vamos dar certo se você ficar viajando desse jeito.

— É meu trabalho — Thiago ficava puto quando ela falava disso. — Eu não queria ter que ir e ter que usar o Portal. Nunca usei antes. E você ainda fica criticando ao invés de dar apoio. Vou fazer a mala que eu ganho mais.

Chegou o dia da viagem. Denise iria buscá-lo na casa dele, bem cedo, já que ele não tinha habilitação para conduzir naves. Como as naves eram autônomas, habilitação era mais para controlar do que medir habilidade. Não tinha motivos para Thiago não ter carteira.

Os dois foram de nave até os Elevadores Espaciais. Agora eram três, o primeiro foi desativado, servindo de museu. Iriam pelo segundo, que transportava pessoas. O terceiro era mais robusto, usado apenas para transporte de cargas pesadas.

A ida até o Elevador durou menos de 10 minutos, subida até o espaço, meia hora, a ida, de nave, até a estação de check in do portal mais meia hora.

— Você trabalhou onde antes da RXW? — perguntou Thiago. Ele não queria falar de trabalho, mas não conseguia pensar em nada.

— Trabalhei em lojas e coisas assim. Como engenheira só lá mesmo.

Thiago não conseguiu pensar em mais nada. Tinha medo de falar sobre o que gostava. Seu hobby favorito era ouvir as histórias de jornal, principalmente as histórias onde os fracos superaram as adversidades e venciam, contrariando as expectativas. Sabia que muitos tem preconceito com esse tipo de histórias, fantasiosas. Porém, era disso que ele gostava, a fuga da realidade. Gostava principalmente das que se passavam em Marte.

Antes de pegar o portal eles pararam em uma estação alfandegária. Essa era a parte que Thiago tinha mais medo. Atravessar um portal que mandaria para um lugar a anos luz de distância, não o assustava. A burocracia sim. Entretanto, foi bem tranquilo. Tudo já tinha sido acertado. Qualquer um dos vários celulares disponíveis mostrava as passagens, a nave e bagagem seriam transportadas e entregues do outro lado.

O Portal tinha sido ampliado. Um círculo menor foi feito, dobrando o número de divisórias. Os pontos ativos foram ampliados para quatorze, sobrando dez ainda inativos. Ao invés de uma roda de bicicleta, o portal agora parecia uma teia de aranha.

Todos os pontos ativos eram preenchidos com outdoors holográficos. Neles estavam escritas informações que indicavam o local de envio e a cor do holograma, dizia a companhia responsável.

A travessia foi feita por uma nave pequena. Estavam os dois e mais treze pessoas, homens e mulheres de idades e tipos variados, todos trabalhadores, como eles. O envio para outro lugar no espaço foi tão suave, que se não tivesse o aviso luminoso nem teriam percebido.

A estação do outro lado era bem menor. Foi fácil retornar à nave e retomar a viagem. Próximo a essa estação, tinha outro portal, mas era apenas um anel, bem menor. Esse era o Portal usado para retornar.

O local onde estavam era um campo de asteroides. Thiago ficava admirando as várias fábricas e minas que tinha ao longo do caminho. Ainda estava com a mentalidade de quem está procurando emprego. Eles viajaram por mais algumas horas e dormiram em um hotel no espaço. Esse hotel tinha gravidade artificial gerada por centrifugação. A maioria dos funcionários da mineradora que iam ficar lá.

Thiago resistiu ao impulso de ficar entretido com bobagens no celular, para ouvir um artigo resumido sobre o trabalho no espaço. O artigo dizia:

“Os órgãos que regularizam as questões trabalhistas determinam que, para cada dia trabalhado em condições de gravidade reduzida (abaixo de 50% da gravidade da Terra), o trabalhador deveria ganhar a metade do tempo trabalhado como folga. Estes dias devem ser retirados assim que retornarem do trabalho, para que o corpo possa regenerar. O tempo máximo seguido que o trabalhador pode ficar nessas condições é de 90 dias. Esse período cai para 60 se não for possível o repouso em ambientes com gravidade, seja ela artificial ou natural. O adicional mínimo devido ao perigo desse tipo de atividade é de 10% do salário base.”

“Então, trabalhar viajando não é tão ruim. Vai dar para levar a Luísa para comer fora e resolver finalmente nossa vida financeira”.

Thiago e Denise acordaram cedo. Tomaram o café que o hotel disponibiliza e saíram. A mineradora ficava a 30 minutos do hotel.

— A integração é muito tranquila. — disse Denise — Deve ser só o período da manhã. Vamos tentar pegar tudo que der de tarde e volta amanhã só para conferir.

Thiago já estava ficando acostumado com as integrações. Ele não aguentava mais ter que ouvir a mesma conversa.

Chegaram na empresa quinze minutos antes do horário marcado. Thiago estava maravilhado com o ambiente, a grandiosidade da mineradora. Pararam no prédio de entrada, que tinha oxigênio, mas não gravidade, pelo menos podendo tirar o capacete. Se apresentaram para uma recepcionista bem solícita, que forneceu crachás temporários para os dois, em seguida, foram guiados até uma sala onde iriam assistir à apresentação de segurança da empresa.

O local da apresentação era uma sala simples, com várias cadeiras em círculo com fivelas, já que não tinha gravidade. Tinha pessoas de outras empresas lá também. Thiago achava que um deles tinha feito a passagem pelo portal com os dois, mas não tinha certeza.

No centro da sala, havia um projetor holográfico. O equipamento se equiparava ao de um cinema pequeno. Quando deu o horário, uma projeção holográfica de uma moça começou a apresentação.

"A SpaceMinas é uma empresa de 110 anos de tradição. Possuindo 5 minas em asteroides e 2 em planetas — o holograma alterou para mostrar as minas —, a SpaceMinas é uma das pioneiras na exploração de minérios além terra.

"A mina Itaúna — apareceu a imagem da planta onde estavam — conta com mais de 200 funcionários, além de várias empresas terceirizadas. — antes da revolução da automatização e quando ainda era permitido a exploração na terra, uma mina desse porte teria pelo menos 4000 funcionários.

"A SpaceMinas segue critérios rígidos de segurança. O descumprimento das regras a seguir acarretará demissão ou cancelamento de contrato:

É proibido o uso de celular nas áreas de processo, existem placas avisando as áreas onde o uso é proibido e onde é permitido.

Não usar o celular enquanto caminha, principalmente em escadas e plataformas. Use sempre o corrimão.

Não entrar em áreas de acesso restrito sem a devida permissão.

Para trabalhos abertos sem gravidade, deve-se preencher a PT (permissão de trabalho), ter os treinamentos adequados e usar os EPI necessários.

A circulação deve ser feita pelas plataformas de pedestre.

Para acessar os ambientes abertos deve-se ter o treinamento adequado, andar nas passarelas com botas magnética e se locomover sempre com pelo menos um ponto ancorado.

Os veículos devem sempre dar preferência para os pedestres e respeitar a sinalização. É proibido o uso de celular ao operar veículos.

Fotos e vídeos só são permitidos com autorização prévia. A publicação de imagens das instalações ou funcionários, sem autorização, acarretará punição severa.

Para todas as regras sempre mostrava uma animação simples sobre o que deve e não se deve fazer. Não tinha nada que Thiago não tivesse visto nas outras integrações.

Após finalizada a apresentação, foram instruídos a esperar por Marcos, que iria acompanhá-los no levantamento. Para ganhar tempo, os dois já começaram a vestir o uniforme e EPIs (equipamentos de proteção individual).

Os equipamentos consistiam de traje espacial, resistente a detritos e poeira, bota com capilaridade magnética, trava escape com absorvedor, além de sistema de eutanásia. O avô de Thiago, conhecido como Paulo da Pedreira, tinha se perdido no espaço, então ele estava contente de ter esse sistema. Não queria ficar vagando na imensidão até morrer.

Depois de preparar, Marcos foi até eles e se apresentou. Era um homem alto, de óculos, barba curta. Não parecia muito feliz de ter que recepcioná-los. Ele foi na frente mostrando o caminho.

O solo do asteroide era pedregoso e incerto, podendo esconder buracos. Por causa disso foram instaladas passarelas, conhecidas como pranchões. São chapas metálicas que distribuem o peso dos pedestres. Ao longo delas havia várias linhas de cabo de aço, conhecidas como linhas anti escape. A bota deles possuía um sistema magnético, para fixar em terreno metálico. Quando não pisavam em metal, era acionado o sistema de capilaridade, que também prendia ao solo, mas com menos intensidade.

O local onde estavam era uma área de processamento de minerais e não a mina propriamente dita. Marcos saia na frente, andando apressado até os pontos que precisavam ser medidos. Ele não falou nada durante o caminho. Chegaram até uma máquina composta por um cilindro gigantesco que girava. Parecia um betoneira gigante.

— Isso é um moedor? — perguntou Thiago.

— Sim. Aqui é a moagem. É um dos pontos onde serão instaladas as linhas.

— E vai para onde depois? — Thiago tentava aprender sobre o processo e, ao mesmo tempo, puxar assunto.

— A máquina depois de diminuir o tamanho dos minérios, separa por diferença de densidade, em três tipos. — ele apontou para três tubos que saíam da máquina, um à direita, um à esquerda e um ao centro — Dentro dos túneis ficam as correias transportadoras. O da direita é o minério mais caro. Ainda vai para um tratamento químico, que é bem agressivo, mas como não tem nada a ser poluído aqui, vai tudo para o espaço. Depois de tratado ele vira um pó preto. É o produto mais caro produzido aqui, quanto mais escuro melhor.

Denise comandou os drones para tirar fotos e medidas da máquina. Thiago já olhava para ela pensando em como a projetaria e onde colocaria os suportes para linha anti escape.

— Tem o projeto dessa máquina? — perguntou Thiago.

— Tem sim. Acredito que vai ter algumas alterações. Eu tô terminando o projeto. Te envio como vai ficar.

Thiago ficou animado. Confiava mais no projeto do que nas informações que levantava. Achava que com o projeto não tinha sentido ir até la para fazer o levantamento. Mas, era outra coisa que estava deixando ele feliz.

— Qual programa você usa? SolidIA?

— Sim, sim. Antes usava só os básicos de projetos. Foi difícil convencer o pessoal aqui a comprar a licença. Mas eu gostava bem do EdgIA.

— Eu tenho saudades de usar ele. Mas na empresa mexe só com InventorIA. Esse EdgIA eu nunca usei. É bom? Qual deles prefere? — Thiago estava a um tempo querendo falar mal do programa e ao mesmo criar amizade.

— Tem vantagens e desvantagens.

— Eu prefiro o InventorIA — disse Denise — Para mim, o melhor é o que a pessoa está mais acostumada. Terminamos aqui, vamos pro próximo?

“Ela não gostou muito. Eles não gostam que discordem dos métodos deles”.

Por ser um ambiente industrial se prezava mais pela funcionalidade do que estética. A maioria das instalações era de estruturas metálicas, abertas, ou seja, sem paredes. Não tinha muitos funcionários, já que o grosso das atividades eram automatizadas. Não tinha distinção de homens ou mulheres, já que a capacidade de gerar lucro não dependia do gênero.

Como os prédios eram só colunas, escadas, e corrimãos, mesmo não tendo perigo de queda, eles tinham que ficar sempre ancorados nas linhas e pontos de ancoragem. Por trabalhar em uma empresa do ramo, Thiago tinha que dar exemplo. Sempre ancorando em locais identificados, com um círculo luminoso vermelho. Nos pontos onde tinha que mudar de faixa, fixava um dos ganchos para só depois passar o outro. Passar os dois de uma vez era mais rápido.

O próximo local era as correias transportadoras que o Marcos tinha falado antes. Elas eram tubos grandes o suficiente para caber uma pessoa que terminava em caixas metálicas.

— Nas minas no planeta — Marcos explicava, agora andando mais devagar — essas correias são abertas. Aqui iria tudo pro espaço. E lá, não iria para esses caixotões. São empilhadas no chão mesmo, formando montanhas.

— Você já trabalhou nas minas em planeta?

— Sim, mas na de outra empresa. É bem melhor. As de asteroides são temporárias. Cavam até praticamente acabar com o asteroide. Assim que terminam, montam a mesma estrutura em outra, então tem muitos equipamentos velhos nas minas. O bom é que essa que estamos é nova. Fui em uma que já tinha sido reaproveitada duas vezes, só dava dor de cabeça. Quando é em planeta dura a vida toda.

Thiago disse para os drones de medição para também pegarem as estruturas perto. Ele sabia que iria precisar para os cálculos.

As linhas anti escape para ambientes abertos eram as mais fáceis de projetar. As que davam trabalho eram as que tinham interferências perto. Elas tinham que segurar a flutuação da pessoa antes que ela se chocasse no objeto mais próximo. Era bem difícil minimizar o percurso percorrido antes do sistema segurar de forma completa. Esse percurso era conhecido como ZLF (Zona Livre de Flutuação).

Eles vistoriaram mais dois equipamentos antes de terminar o expediente. O levantamento rendeu. Iria faltar só mais um local, que era mais afastado. Thiago conseguiu o contato de Marcos, para o caso de precisar mandar currículo para ele. Fazia pouco tempo que tinha sido demitido da SOKI. Nunca se sabe.

Na volta, Denise aproveitou para ligar para a empresa. Queria dizer o que fizeram e perguntar se precisaria de algo mais. “Ela também não sabe muito bem o que tem que fazer”.

— É por aí mesmo — disse Marcelo — É para diagnóstico, não precisa ser tão minucioso. Foca mais nas fotos.

“Porque não falou antes? Porque não pegar a medida de uma vez? Aposto que vai mandar alguém aqui de novo para levantar as medidas. Essas viagens tem custo”.

Thiago estava exausto. Tinha ficado o dia todo indo de um lugar para outro, em um ambiente sem gravidade. No hotel, ele estranhou a sensação familiar de ser puxado em direção ao chão. Ligou para Luisa, informando como foi e que está tudo bem.

Na volta à mineradora, Denise estava bastante irritada. Não tinha gostado de não ser informada sobre o que era para fazer. Mas pelo menos faltava pouco para terminar.

Marcos já estava esperando por eles. Parecia bem mais animado para acompanhá-los. Ficou faltando apenas os tanques de reagentes. Thiago viu tubulações e aparelhos de medição similares aos que projetava na SOKI. Assim que Denise se afastou ele perguntou para Marcos:

— Essas tubulações são terceirizadas ou vocês mesmo que fazem? — tinha esperança de recomendar a SOKI.

— É feito tudo aqui. Mas é mais manutenção, de trechos curtos.

Denise tinha chegado perto deles, então Thiago desconversou. “Ela não ia gostar de ver ele perguntando sobre coisas relacionadas ao trabalho antigo”.

O que faltava do serviço foi finalizado antes do horário de almoço. Marcos assinou a documentação relatando as atividades e os dois partiram.

A passagem de volta pelo portal estava marcada para o dia seguinte. Portanto, teriam a tarde livre. Thiago ficava preocupado quando isso acontecia. Achando que não iriam gostar do fato dele estar recebendo, mesmo sem trabalhar. Mas não tinha o que fazer.

No dia seguinte, tomaram o café e partiram. Com uma hora de antecedência, já estavam na estação, como recomendado. Ficaram no celular até dar o horário da travessia. Ao chegar do outro lado, ficaram mais três horas na estação principal. Tinham horário marcado para ir para Marte.

Thiago conseguia ver a lua da estação. Ela parecia ser bem maior lá do que vista da terra. “Se plantar árvores desse dinheiro, a humanidade florestaria a Lua”. Era outra das frases de Carlin. Thiago tentava enxergar as três árvores que foram plantadas lá, mas não teve sucesso. Uma delas foi batizada com o nome Charles Carlin, homenageando o biólogo, as outras duas também levavam o nome de figuras importantes.

Finalmente deu o horário da viagem e Thiago estava animado. Sempre quis conhecer Marte, depois que o planeta foi transformado em um polo industrial. Sua colonização começou antes mesmo da criação do Portal. À medida que as políticas de não poluição diminuíram as indústrias na Terra, a industrialização em Marte só aumentava.

À medida que se aproximavam era possível ver uma haste metálica saindo do planeta vermelho. Destoando do vermelho típico, era possível ver uma mancha cinza, cheia de pontos luminosos, próximo do Elevador Orbital marciano.

Como passaram o dia todo esperando e viajando, ficou muito tarde para trabalhar. Ficaram em um hotel em Marte, onde encontraram com mais dois funcionários da RXW.

O planeta era muito diferente do que tinha ouvido. Muitas das histórias dos jornais envolviam mutantes ou alienígenas. Ele sabia que essa parte era mentira, mas achava que o complexo seria bem maior e que a vegetação artificial estava bem desenvolvida. Porém o planeta não era muito diferente do complexo industrial de sua cidade, apenas tinha mais usinas nucleares, indústrias químicas e outras empresas poluentes.

A gravidade do planeta era menor que a da Terra, mas melhor do que nenhuma gravidade. Thiago dividiu quarto com Rulio e Denise com Alana. Por causa da baixa gravidade, era comum que fosse obrigatório a execução de exercícios físicos para ter acesso a algumas coisas. Para entrar na sala do café, tinha que fazer dez saltos, encher a garrafa de água, alguns alongamentos. No começo era divertido, mas com o tempo foi enchendo. Outra obrigação era tomar medicamentos, viagens longas no espaço e na gravidade baixa podem causar danos em vários órgãos, todos tinham que mostrar, em frente à câmeras, que tomou a dose.

Na manhã seguinte os dois partiram. Rulio e Alana fariam inspeção em uma linha existente. Segundo a norma, as linhas anti escape deveriam ser inspecionadas a cada dois anos ou em caso de escape.

Thiago ficou puto quando soube. Como era fã das histórias jornalísticas, já estava cansado de ouvir que no passado os jornais tinham a função apenas de informar. Mas com o avanço da internet ficou fácil espalhar notícias falsas. Para tornar possível esse mercado da desinformação, iniciaram uma campanha para tirar a credibilidade dos jornais. As notícias tradicionais passaram a ficar cada vez mais parecidas com as falsas, até o ponto de não ter mais fontes confiáveis de informação.

“Como assim a torre já tem pelo menos dois anos e ninguém sabe? Só para não ter que ouvir notícias ruins, deixamos de ter qualquer informação? Bando de fraco que não aguenta a verdade, agora somos nós que pagamos”. Depois começou a se sentir mal por gostar de ouvir as histórias fictícias que contam.

Enquanto a primeira dupla executaria a inspeção, Thiago e Denise iriam tirar as medidas de uma instalação existente. Segundo a NR 45, toda linha anti escape deve ter projeto e cálculo, e a que foi instalada lá, de outra empresa, não tinha projeto. Terminando o levantamento, os dois ajudariam a terminar a inspeção. Embora a RXW tenha feito um complemento, não tiraram as medidas da linha existente. “Claro que não. Aí não teria desculpa para enviar pessoal aqui”.

Thiago e Denise usaram uma nave de grande atitude para alcançar a maior altitude possível e seguir o resto. Escalando.

A linha era composta de um cabo de aço preso em suportes de ancoragem a cada 30 metros. Eles tinham que subir por uma escada, mirar os drones nos pontos e tirar fotos. Tinham que tirar pelo menos sete fotos por ponto. Atualizar a placa de identificação, informando a data da inspeção. A falta de gravidade diminui o esforço, porém não tinha o carrinho adequado para a linha. Então eles tinham que ficar mudando os ganchos para o outro lado dos suportes.

O serviço era bem desgastante. Marte não era um planeta quente, mas o Elevador metálico, naquela altura, absorvia muito calor. Thiago não conseguia achar uma boa posição para tirar as fotos de forma a encostar o mínimo possível na torre. Seu traje não isolava o calor de forma suficiente, era ruim de enxergar e bem desgastante. “Nunca mais quero mexer com isso. Serviço ingrato. Nem ganho tanto assim. Tenho dó do povo que instala de fato”.

O levantamento para o projeto demorou um dia, porém ficaram mais dois dias para ajudar na inspeção. A empresa achou melhor (mais barato) que os quatro voltassem juntos.

Os dias foram cansativos. Thiago não conseguiu explorar o distrito industrial de Marte como queria. Ele só queria ir para casa e aproveitar os dias que teria de folga.

Achou que iria aproveitar para estudar e arrumar a casa, mas a folga foi curta e passou rápido. O final de semana acabou contando como dias de descanso.

Ele ia trabalhar de transporte público. Sempre conversando com Wesley, um colega que trabalhava na produção. Na RWX eles chamavam de oficina. “É muito ridículo isso. Se falo assim com um cliente, vão rir de nós. Nós não consertamos naves”.

— Demitiram a Marcela do RH e o Rafael da produção — disse Wesley. A demissão da Marcela surpreendeu, já a de Rafael era esperada. Ele tinha chegado na empresa alegando bastante experiência e conhecimento, mas sua atuação era bem inferior à dos demais da produção.

No trabalho, Thiago já ia começar a fazer o projeto da linha que mediram, mas Marcelo preferiu passar para outro projetista. Thiago voltou a mexer em um projeto antigo. No almoço só se falava das demissões. Estavam preocupados com a possibilidade de ter mais cortes.

Mesmo não tendo muito tempo de casa, Thiago era o projetista com mais experiência, com exceção do Marcelo. Denise tinha mais tempo na empresa, mas não como projetista. Ele tinha aprendido rápido o novo programa. O mesmo não podia ser dito da Fernanda, a funcionária mais nova. Ela era incapaz de fazer a atividade mais simples sem ser auxiliada. Não por incompetência, mas por falta de confiança.

Thiago estava preocupado com Fernanda. Tinha poucos anos trabalhando como engenheira. Era boa de serviço, mas não acreditava em sua capacidade. “Tomara que ela não caia nesses cortes”.

Quase no fim do expediente, a moça do financeiro chamou Thiago na sala de reunião. Não sabia o nome dela. Ele estava preocupado de ter feito um relatório de viagem errado ou pensando que ela iria dizer algo sobre as viagens.

— É coisa boa? — Thiago disse assim que entrou.

— Então, essa é a parte mais difícil dessa função. Nós vamos estar te desligando a partir de hoje. Nós somos gratos por tudo que você fez no seu período aqui. Mas houve uma queda no número de projetos.

“Como assim? Acabei de voltar de uma viagem. Ralei que nem louco”.

— Então hoje começa o aviso? — Thiago estava meio aéreo, perguntando sem pensar. “Durante o aviso as coisas podem melhorar. O ruim de trabalhar com projetos é a oscilação. Épocas com muito serviço e meses sem nada para fazer”.

— Preferimos pagar o aviso. Fica um clima chato trabalhar de aviso. Vou precisar…

Tudo parecia um filme distante e, ao mesmo tempo, familiar. Thiago só concordava. Nunca se sentiu tão inútil. Achava que era um bom projetista e que seu esforço valia a pena. Estava errado. Não acreditava que estava sendo demitido pela segunda vez. “O que será que eu fiz de errado? Falei algo que eu não deveria? Fui devagar no projeto? É porque eu não tenho carteira? Será que nunca vou conseguir?”

Thiago Pires do Carmo Gonçalves
Enviado por Thiago Pires do Carmo Gonçalves em 03/08/2024
Código do texto: T8120820
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