O Jovem Que Sonhava com Pradarias Ultravioletas

O generoso racho dos Weaver, “A Sede”, como era chamado, ficava na porção mais ao sul da Pequena Estepe, onde esta se encontrava com as margens do Rio Amarelo, as formações finais das Mesas Amarelas e início do longo declive acidentado que levava às margens do Mar Círculo e aos Caos Decapolitanos. O assentamento mais próximo era a vila de pescadores chamada Tucunarâmbar, a pouco mais de 10 quilômetros. Boa parte das benfeitorias da vila foram promovidas pelos Weaver e as Héxades, que construíram um pequeno porto que possibilitava que recebessem todo tipo de mantimentos, o que também gerou um incipiente porém promissor comércio local.

Nesta época do ano, entre os meses de Amarelomês e Segundovelho, vários amigos da família, parentes distantes e membros proeminentes dos vários estratos sociais se dirigiam à Sede para lá passar uma pequena temporada de festividades, de aniversários a celebrações religiosas. Como Racho era isolado e de difícil acesso, os Weaver a tempos decidiram concentrar os eventos em uma única época do ano.

Todos sabiam que a família Weaver tinha muito prestígio nas Héxades. Contava-se que o rancho onde moravam e a pensão que recebiam eram fruto desse status. A organização provinha tudo que seus protegidos precisavam, até mesmo os criados. De maneira geral, eram todos muito competentes e demonstravam lealdade, como o velho mordomo Abke. Este fazia parte do rol de gestores capazes que vieram trabalhar ao longo dos anos na Sede.

Mesmo quando eram indicado um criado que fizesse por merecer a desconfiança de Abrain, este reagia de maneira sutil, nunca contrariando sua patrona de maneira direta. Foi o caso de um certo Guhaad, um azulita mal-encarado e ar soberbo. Ele deveria ser um auxiliar de Abke, mas foi sendo pouco a pouco “aliviado” de suas responsabilidades, até terminar com os criados da dispensa.

Assim, o patriarca precisava tomar poucas decisões efetivas. Félix achava uma pena, pois adorava ver seu pai em ação, mesmo sendo poucas as ocasiões. Fosse resolvendo conflitos na família, ou alguma disputa mais grave em Tucunarâmbar, Abrain conseguia ser um líder quase hipnótico, surpreendendo seus interlocutores.

Quando ele discursava, por exemplo. Pouco importava o quanto banal fosse o que ele dizia (o era bastante, às vezes), algo na forma como ele falava impunha respeito e admiração na plateia.

Naquela mesma noite, Abrain Weaver, pai de Félix e irmão de Ean, havia feito um pequeno discurso na festa de aniversário do filho:

-… estou satisfeito por saber que A Sede terá Félix como meu sucessor! Este jovem tem o que é preciso para levar adiante o nome da nossa família com honra. Honra esta reconhecida desde A Disputa de 596, contra as Grandes Companhias, quando meu avô, Amond Weaver, negociou o fim daquele conflito custoso em nossa terra e ainda garantiu a hegemonia das Héxades nas Terras Amarelas sobre as Grandes Companhias. Ele amarrou acordos tão bons que nossos rivais estão comprometidos até hoje! O que dizer então do papel dos Weaver na pacificação do conflito interno, o Grande Desentendimento de 622, do qual eu mesmo participei? Não vou falar muito deste pela modéstia que me é particular. Apenas vou dizer que nossa família ainda vai fornecer grandes serviços para nossa organização. A próxima geração de Weavers será bem representada por meu filho!

Conforme o esperado, a plateia no salão reagiu com palmas, exclamações de concordância e até alguns “vida longa aos Weaver!”. Félix olhava para as pessoas sentindo a repercussão das palavras, da voz de seu pai. O efeito era bom o suficiente para que o próprio Félix se sentisse o filho exemplar que Abrain pintava em seu discurso. Como se os atritos que tivera com ele nos últimos tempos, não tivessem existido.

De fato, pelo menos enquanto ouvia seu pai discursar, coisas como o fato de sua família viver tão isolada, de não poderem sair da Sede quando quisessem e todas as outras regras impostas pelas Héxades, as quais seu pai aceitava, nem pareciam tão revoltantes assim.

Cantaram em homenagem aos 17 anos de Félix e o manjar comemorativo foi servido. Os convivas conversavam alegremente e muitos vieram cumprimentar novamente o aniversariante.

Félix viu seu pai se aproximar trazendo o seu debilitado irmão, o tio Ean, com a mão em seu braço direito. No esquerdo, Abrain trazia um embrulho.

-Seu tio te deseja feliz aniversário, Félix.

O jovem sorriu e abraçou o tio como fazia nos velhos tempos. O olhar de Ean continuava perdido, mas ele pareceu reagir debilmente ao abraço. A cuidadora sorria, a um ou dois passos de distância.

-Isto é para você, filho. É um presente do Ean. - Félix recebeu o embrulho e olhou para o tio.

Durou apenas um breve momento, mas Félix vislumbrou um brilho nos olhos do tio, algo que julgava estar para sempre no passado. Franziu o senho levemente e abriu um pouco a boca, mas seu pai prosseguiu antes que pudesse dizer algo:

-Ele mandou isso a meses atrás, na verdade. Antes dele… adoecer. Disse que temia não estar aqui no seu aniversário. Ele acabou voltando mais cedo por isso, mas... achei melhor esperar para entregar hoje.

-Obrigado, pai. Obrigado tio!

A safranesa de braços roliços, rosto redondo e sorridente se aproximou.

-Está sendo uma bela festa, jovem Weaver! Mas acho melhor eu preparar seu tio Ean para dormir cedo. O senhor entende, não é?

-Obrigado, dona Phara. Boa noite! - Félix abraçou o tio e lhe desejou boa noite também.

A cuidadora tomou Ean Weaver pelo braço e o conduziu sem resistência. Os olhos deste estavam novamente vagueando perdidos pelo ambiente.

***

Não muito tempo depois da saída de seu tio, os últimos convidados da festa foram se despedindo, indo se recolher nos numerosos quartos de hóspedes da Sede. Félix foi para seu quarto, levando o embrulho ainda oculto. Entrou e fechou a porta.

No quarto iluminado por quatro globos luminosos nos cantos, Félix desvelou o conteúdo. Um livro de aventuras, como imaginara. Uma nova estória nas Pradarias Ultravioletas do personagem Vicky Setevidas, amigo dos Lordes Felinos da Cidade Violeta e grande descobridor de maravilhas do Há Muito Tempo. O volume encadernado em material sintético flexível e o papel era alvejado. A impressão era quase impecável. Os livros produzidos nas Terras Amarelas, com literatura em Alto Comum, eram artigos muito apreciados pelas elites em todas as Terras Arco-íris, perdendo, talvez, apenas para os feitos nas indústrias do Distrito da Terra Vermelha eram melhores. Um dos negócios tutelados pelas Héxades. Na lombada da capa nova estava o escrito “Ean Weaver”, mostrando que havia sido encadernado em microfabril pelo tio.

Ao lado da janela que dava para o jardim central da propriedade, estava uma estante com a preciosa coleção de livros de Félix. Boa parte deles eram livros sobre as Terras Amarelas e circunvizinhanças, sobre os Caos Decapolitanos. Política, economia, retórica, comércio. Coisas que seu pai adorava ver em sua estante. Eram bastante usados por Félix, em especial para fazer as tarefas que seu preceptor (naturalmente, indicado pelas Héxades) lhe passava.

Mas atrás desses volumes, ocultos no espaço que sobrava até a parede, estavam aqueles que Félix chamava de livros de aventura. Destes, nenhum foi dado por seu pai e apenas um foi adquirido de um mercador por Félix durante uma visita à Vila dos Pescadores. O restante foi presente do seu tio Ean. Do pobre tio Ean.

Abrain achava aquelas fantasias coisas inúteis, mas Félix sabia que aquela literatura, ao contrário do que o pai acreditava, o fizera abrir horizontes maiores que os dos demais membros de sua família, vivendo paparicados pelas Héxades e esperando seu chamado, como se fossem os cães treinados de um pastor da Estepe...

Felix era mais parecido com o Tio Ean. Ele sempre fora apaixonado por livros e mecanismos. O tio chegou a trazer um microfabril de livros para a propriedade. Com ele encadernava várias coisas como os balanços patrimoniais do pai de Félix ou as poesias no estilo Quintilhas Ocrealma da mãe de Félix, mas encontra uma satisfação especial em recuperr livros em mau estado. Além disso ele adorava trabalhar com relíquias e invenções estranhas. Vários membros da família recebiam suas engenhocas como presentes. Félix tinha um tubo de luz: Um cilindro com uma pequena esfera luminosa e um obturador. Estava sempre com ele.

Um dia chegou a notícia que Ean deveria se apresentar na Dreipoli, famosa cidade decapolitana. Era uma sede importante das Héxades. O serviço chamava um dos prestigiados Weaver e Abrain ficou eufórico, dando conselhos e elogios ao irmão.

- Agora sim chegou a hora, e a honra, de usar suas habilidades para algo mais útil que ficar perdendo tempo montando brinquedos e encadernando livros. Vá e carregue seu nome com orgulho!

Félix lembrou da manhã quando a família estivera na entrada principal da propriedade esperando o autogollem que o levaria até o porto na Vila dos Pescadores. Ean estivera animado com a nova aventura, prometendo à Félix contar tudo que vivesse quando retornasse, e que mandaria sempre notícias. E livros, quando possível.

Uma voz cheia de estalidos e chiados, acompanhada do movimento análogo da estranha face de meio metro de altura fixada na dianteira do veículo, viera pedindo atenção para sua aproximação. O grande veículo, com sete metros de comprimento, alto e largo, manobrara até estacionar lateralmente ao longo da largura do portão. Executara a manobra de maneira lenta e calculada. Dustie, uma personalidade artificial oriunda do Há Muito Tempo integrada ao autogollem, impedia qualquer manobra minimamente perigosa para seres humanos e reagira limitando a velocidade à visão da pequena multidão em frente ao portão. Podia, porém, permitir grande velocidade no relevo quase sempre plano da Pequena Estepe, para deleite do condutor.

O tio Ean se despedira afetuosamente de todos ao entrar no autogollem pela porta lateral que se abrira automaticamente. Félix observou com olhos marejados o veículo que sumia na estrada. Conseguira ver ainda um último aceno se Ean.

Uma semana depois, a Sede começara a receber cartas de Ean sobre suas viagens, o serviço para as Héxades e tudo o mais. Félix tivera permissão para ler as primeiras cartas e até mesmo recebera alguns livros novos. Mas a quinta ou sexta carta o tio começada a demonstrar um tom mais sério e sucinto. Félix passara a não poder mais ler as cartas.

Passara-se quase um ano de respostas lacônicas aos pedidos de Félix por notícias do tio. Um dia, notara seus pais agitados. Vira que um quarto estava sendo preparado.

-O tio Ean está voltando?

Seu pai ficou sério.

-Sim.

-Ele está… Com aquela doença?

-Está. Mas vamos cuidar dele. Já temos um lugar para ele. As Héxades vão dar o que precisarmos, como sempre.

***

Mais tarde, na mesma semana, Félix estava em sua escrivaninha segurando o livro sobre a pilha de papéis da lição prescrita pelo seu preceptor, já devidamente concluídas. Desviou a vista da leitura e a descansou olhando pela janela. A empregada conduzia o tio pelo jardim de flores cristalinas. Os reflexos fugidios e vislumbres de furta-cor estavam entre as poucas coisas capazes de dar aqueles olhos mortiços algum sinal de interesse pelo mundo exterior. Félix deu um suspiro melancólico.

Em uma das conversas com seu pai Félix, várias possibilidades para a “demência dos Weaver” foram pensadas ao longo dos anos. Talvez a família dependesse de algo que esta terra tem, ou sejam alérgicos a algo de fora. Quem sabe é o estresse da mudança e das responsabilidades que recaem sobre eles quando recebem as incumbências por parte das Héxades... De fato, era comum que Weavers que fossem trabalhar fora voltem prejudicados mental e fisicamente. Além do tio, duas de suas tias-avós eram tratadas aqui. Haviam mais oito Weaver trabalhando para as Héxades naquele tempo, e um primo havia parado de se corresponder há um mês. Uma carta de um assistente dele disse que ele estava em uma casa de repouso. O patriarca Weaver mandou preparar um dos quartos desocupados.

Mas Félix não iria esperar para ver se ele seria chamado pelas Héxades ou vitimado pela demência dos Weaver. Ele estava indo embora.

Desta vez ele não guardou seu livro de aventuras, o último presente do Tio Ean, no lugar de costume. Colocou-o na sua mochila, já arrumada e escondida embaixo da cama.

Um plano simples, cujo primeiro passo dependia de Aindam, o atual condutor de Dustie. Filho de um dos criados da casa, eles se conheceram quando ainda eram crianças. Félix contava as histórias de aventura que lia nos livros e cresceram alimentando sonhos com terras distantes. Em troca, Aindam lhe ensinara esportes, exercícios físicos e até algumas técnicas de pugilismo.

Naquela noite, Dustie, o autogollem de transporte, iria se atrasar. Isso havia sido providenciado por Aindam. Normalmente, os carregamentos não aconteciam à noite, porém a Sede estava em temporada de celebrações e a necessidade de suprimentos extras fizera com que abrissem uma exceção.

O sucesso do plano dependia em grande medida da confiança de sua família de que Félix nunca faria algo do tipo. Ele procurou evitar atritos com o pai no que dizia respeito às suas ideias de deixar a Pequena Estepe amarela, mas não deixou de expressar com suficiente frequência sua insatisfação. Tomou cuidado para que parte da sua rebeldia costumeira fosse acordar mais tarde do que as regras inicialmente impostas preconizavam, até que sua teimosia resultasse em permissão tácita para dormir um pouco mais. Porém em algo ele nunca mostrou indisposição: Dormir no horário certo. Como um relógio.

Ao chegar a hora costumeira de deitar-se, todos da casa, com exceção dos criados responsáveis pela vigília da noite foram dormir. Felizmente, os vigias concentravam suas atenções para os limites da propriedade, evitando invasões principalmente pelos cães das estepes, criaturas quadrúpedes de um cinza escuro meio reflexivo, que às vezes ameaçavam os animais, precisando ser afugentados com fogo e armas.

A janela do quarto de Félix dava vista direta para a estrada que levava à Tucunarâmbar. Frequentemente ele olhava com ansiedade por uma fresta entre as cortinas enquanto vestia as roupas de viagem já preparadas. Ainda esperou muito depois de estar pronto para sair. As horas avançavam. Sentiu vontade de ler, mas não se atreveria a usar alguma luz. Se distraia com pensamentos sobre as maravilhas das Terras Arco-íris e além que iam e vinham em sua cabeça.

Pensou na travessia que faria no Mar Círculo, quando veria a Agulha do Mundo e as tempestades constantes em sua volta. Imaginava também o caminho pela Estrada Direita através das Ruínas Celestes. A travessia do Rio Índigo para as Terras Violetas e a Cidade dos Gatos surgindo sob a crescente Névoa Púrpura à oeste.

Finalmente, as familiares luzes do autogollem surgiram ao longe, no breu da noite, tirando Félix de seu devaneio. Era hora de agir.

Ele pegou a mochila em baixo da cama juntamente com suas roupas de viagem, tudo o mais discreto possível, para se assemelhar ao que se usava na vila de pescadores. Ele deixou para se vestir apenas quando tivesse certeza de seu plano estava correndo conforme o previsto.

Por fim, tirou uma carta de despedida e colocou sobre a cama.

A janela abriu sem qualquer ruído quando ele a moveu. Ele as havia lubrificado mais cedo. Deu uma última olhada além dos muros, onde viu a dança das luzes do autogollem manobrando e parando próximo ao portão principal, e os alertas costumeiros de Dustie. Fosse de dia ou, quem sabe, outra noite que não essa, Aindam chegaria fazendo a costumeira algazarra, com sua voz naturalmente alta amplificada através do altissonante do veículo.

Desceu a altura de pouco mais de um metro que separava a janela do chão com a mochila segura em uma das mãos. Ao descer a colocou nas costas, agachado atrás de uma cerca viva bem cuidada, olhando para confirmar que a atenção dos criados estava voltada para a entrada principal.

Quando se sentiu seguro, correu até o muro norte, onde crescia um coral de terrasseca plantado por ele, quando criança.

Com a adrenalina reforçando seu condicionamento físico, Félix usou o coral para alcançar o topo do muro, a pedra orgânica sustentando seu peso com segurança.

A parte difícil foi a decida de quatro metros do outro lado. Ele soltou a mochila no chão, cujo o som do impacto soou mais desanimador que ele esperava. Então se pendurou pelas mãos do lado de fora, para reduzir ao máximo a queda e então largou-se no ar, amortecendo sua queda com um rolamento ensaiado no jardim.

Ao se recobrar, Félix tomou sua mochila novamente às costas e ficou escutando por pouco tempo. Agora era tarde para se preocupar com a possibilidade de alguém ter escutado sua manobra. Correu o mais rápido que pôde as quase duas centenas de metros rente ao muro até chegar na traseira do autogollem.

Já de longe escutava a voz de Aindam fazendo gracejos e soltando conversa fiada para os criados da dispensa. Chegou a ouvi-lo xingando a plataforma de transporte que, ao que parecia, estaria emperrada dentro do veículo. Félix sentiu alívio quando sua mão girou a alavanca e percebeu que a escotilha traseira estava destrancada, como o combinado. Entrou suavemente. A porta lateral do autogollem estava voltada para o portão principal, e a carga de barris ocultavam a porta e o novo passageiro. Félix colocou a mochila no chão e se espremeu para dentro de um compartimento na parte de trás.

- Já verificou a trava de segurança, senhor Aindam? - Soou a voz metálica vinda da parte da frente.

Um breve instante e o homenzarrão soltou uma praga e uma risada meio sem graça. Teve que aguentar as pilhérias dos criados da Sede. Um estalo e a plataforma se soltou, caindo lentamente do autogollem e parando a quinze centímetros do solo, suspenso sobre um campo de antiforça. Sem olhar para trás, Aindam puxou facilmente a carga que, apesar da massa de mais de 1800 quilos, se deslocava sem atrito.

Se por curiosidade ou apenas para se certificar de que nada havia ficado para trás, Guhaad contornou a plataforma em movimento, carregada de barris, e olhou para dentro do depósito de carga. Um brilho passou por seu olhar quando ele viu a mochila, de qualidade fina demais e, talvez familiar, no fundo do veículo. Ergueu as sobrancelhas e se preparou para entrar no autogolem, mas a voz de Aindam soou repentinamente alta, paralisando-o:

-Feche a porta, Dustie!

-Fechando. - Seguiu a voz metálica, e a porta fechou rapidamente demais na percepção de Guhaad, e como para aumentar sua impressão de hostilidade, os vidros das janelas ficaram completamente escuros. Este olhou para Aindam um tanto contrariado. O gigante, com uma mão sobre a alça de tração da plataforma olhava para por cima dos barris, com um sorriso inocente no rosto:

-O cheiro de comida que ficou aí pode atrair animais. Não quero nenhum cão da estepe imundo dentro de Dustie.

Guhaad preferiu não começar nenhuma discussão. Sua credibilidade já estava abalada à muito com a casa dos Weaver. No momento deveria gozar de menos prestígio que Aindam, o bobalhão!

O compartimento onde Félix se encontrava estava apertado e abafado, mas ele se concentrou nos seus sonhos de aventura para controlar a ansiedade que ameaçava devorá-lo por dentro.

Subitamente, a mesma voz metálica soou dentro da área de carga do autogollem, desta vez em um tom diferente, mais grave e com menos chiados:

- Não há pessoas por perto agora, jovem Weaver. Não posso ver onde o senhor está agora, mas não há esconderijos confortáveis para seu porte em meu interior.

Félix saiu do compartimento para a escuridão praticamente total:

- Obrigado, Dustie. Você avisa se eles se aproximarem de novo?

- Estou atenta. Mestre Aindam não irá demorar.

O alívio físico fez com que ele sentisse o nervosismo com mais intensidade. Ele tateou um bolso da mochila e sacou um cilindro prateado. Segurou-o com as duas mãos e girou delicadamente as duas metades da superfície do cilindro em direções opostas, abrindo um só um pouco o obturador que permitiu que um fino facho de luz do cilindro.

- Dá para clarear uma das janelas? Melhor! Melhor! Uma fresta em uma delas?

Desculpe, senhor Weaver. Meu controle sobre a tonalidade dos vidros é limitado. Mas todas os vidros abrem deslisando para baixo.

-Certo. - Disse Félix, indo até a janela que lhe ofereceria uma melhor visão através do portão principal.

Ele abriu uma brecha menor que um centímetro do vidro escuro operando controles manuais abaixo da janela. Dois guardas conversavam junto ao portão e vigiavam a escuridão da Pequena Estepe para o caso de surgirem cães ou outros animais. Mais à distância, o mordomo Abke, supervisionava o descarregamento das provisões. Pobre velho, procurava sempre cumprir seus deveres com o máximo de energia. Havia um dos empregados que ajudava colocando os barris vazios do último carregamento sobre a plataforma, à medida que os cheios eram retirados. Guhaad, é claro, sequer fingia disposto a ajudar. Ele olhava frequentemente para a direção do portão. Mas Félix estava certo que ele não seria capaz de percebê-lo olhando pela fresta.

Ficou olhando por mais algum tempo o trabalho ser executado. Sentiu um alívio quando viu que Aindam havia acabado de colocar o último barril vazio e rejeitava o que presumivelmente seria um convite para pernoitar na propriedade. Mas Félix teve um sobressalto quando percebeu que, sem qualquer razão que pudesse imaginar, Guhaad estava acompanhando Aindam no caminho de volta para o autogollem.

Félix fechou a fresta da janela e voltou apressadamente para seu esconderijo, tropeçando na mochila devido à pressa. Entrou novamente no compartimento e fechou o obturador do dispositivo.

Alguns segundos depois ele já ouvia a voz arrastada e petulante de Guhaad fingindo uma conversa casual com Aindam, a qual o grandalhão correspondia com a maior naturalidade possível.

A porta lateral ainda se abria quando Félix escutou a voz desagradável de Guhaad ecoando no compartimento vazio, fazendo o coração do jovem Weaver disparar pela impressão súbita de proximidade:

-Esse autogollem é mesmo um achado, não é, senhor Aindam?

-Dustie é do cacete!

Gehaad demorou um instante para troçar:

-Quase sua namorada, presumo.

Aindam respondeu com uma risada de rude amistosidade.

-Ah, porque não? Os Weavers me fazem trabalhar feito um gollem, mesmo. Eu e Dustie temos muito em comum!

A piada de gosto duvidoso vinda de Guhaad não surpreendeu o jovem escondido no compartimento vertical, mas seu sangue teria gelado se tivesse visto o sorriso malicioso que o péssimo criado mal disfarçou ao ver a mesma mochila que tinha chamado sua atenção antes caída para o lado, em vez de estar de pé.

Finalmente a plataforma de antiforça estava acomodada no interior do autogollem, com os barris vazios devidamente organizados sobre ela. Aindam se despediu e a porta começou a se fechar. Passos pesados e a oscilação da carroceria sobre a suspensão indicou que o homenzarrão embarcava na parte da frente do carro. As janelas estavam transparentes novamente, Félix podia dizer com certeza, pela luz tênue que delineava as bordas da porta do compartimento em que se encontrava. Segundos depois, mecanismos vibraram e o transporte se pôs em movimento.

Guhaad entrou imediatamente na propriedade cruzando o jardim. Viu que a janela do quarto de Félix estava aberta. Aquela mochila… Ele já havia visto aquela mochila. Foi quando visitaram Tucunarâmbar, a dois meses com Abrain e seu filho. Félix usava aquela mochila.

Passou por um poste de iluminação, abriu as travas e retirou o globo luminoso. Aproximou-se da janela aberta e cuidadosamente afastou as cortinas, deixando entrar apenas um pequeno faixo de luz. Então as abriu totalmente iluminando todo o quarto com o globo. Vazio! Trava interna da porta trancada!

Correu até Abke com um sorriso de antecipação maldosa no rosto. Ele melhoraria seu prestígio com as Héxades.

-Velho!- Disse, quando encontrou o mordomo indo para seus aposentos. Este se virou pronto para responder seu atrevimento à altura, mas Guhaad se adiantou – O garoto Weaver fugiu! O filho de Abrain. Fugiu!

Abke olhou firmemente para Guhaad por um instante, tenso.

-Como? Está louco. Os estábulos ficam trancados à noite…

-Ele foi embora no autogollem. Vi a mochila dele lá dentro. Além disso o quarto dele está vazio. O moleque e o grandalhão abobalhado tramaram isso juntos!

-Vamos avisar Abrain. - O velho fez menção de passar por Guhaad, mas este o deteve.

-Lembra que nos mandaram ficar de olho no garoto? “Ele tem ideias perigosas”, foi o que nos disseram.

Abke fez uma expressão angustiada e tentou novamente passar, mas Guhaad o deteve segurando seus braços rudemente.

-O garoto simplesmente fugiu. Sabe que isso não é aceitável. Não de um Weaver! - Então estendeu a mão aberta diante do rosto de Abke – A chave!

Demonstrando vigor inesperado, o ancião se soltou de Guhaad.

-Não! EU faço isso.

Guhaad deixou que passasse, mas o seguiu. Abke não o impediu. Estavam juntos ainda quando Abke transmitia uma mensagem diante de um raríssimo responsível oculto na propriedade, na antiga adega, protegido por uma porta metálica da qual apenas o mordomo possuía a chave.

Quando terminou, Abke sacudiu a cabeça, lamentando:

-Por que o jovem Félix não puxou mais ao pai?

Enquanto isso, Dustie se afastava velozmente da Sede.

Félix planejou esperar algum tempo antes de sair do seu esconderijo, controlando sua ansiedade em favor da prudência. Já que teve autocontrole até agora, poderia esperar mais um pou…

-Félix, você tá aí, né? - O jovem estremeceu dos pés à cabeça. Ainda bem que não gritou.

-Talvez o senhor Weaver não queira sair do esconderijo agora, senhor Aindam. - Soou a voz interna de Dustie.

-E porque ele não iria querer? Já estamos com os pés na estrada!

-São minhas rodas que estão na estrada, senhor Aindam. O senhor Weaver pode estar temendo que estejamos sendo observados com ampliadores óticos.

-Quê? Aquela gente estava era louca pra ir dormir, isso sim!

Enquanto isso Félix já estava abrindo caminho pelos barris.

-Aindam!

-Félix, garoto! Você teve coragem, mesmo?

-É, está feito. Bom trabalho! Partimos assim que chegarmos no porto?

-Sim, tem um amigo com um escaler esperando a gente. Ele também vai tratar de devolver a Dustie.

O jovem fugitivo assumiu um assento na cabine ao lado de Aindam, para observar a estrada iluminada pelas lanternas do autogollem.

-Alguém… - “desconfiou de algo?” era o que ele iria perguntar, mas desistiu porque seria uma pergunta tola. Se Guhaad, por exemplo, tivesse desconfiado de algo, bastaria perguntar diretamente à Dustie e tudo estaria acabado.

-Relaxa, garoto. Logo, logo estaremos navegando no Rio Amarelo. De manhã chegamos no Mar Círculo. Você vai ver que vista!

Nem mesmo a melhor besta biomecânica no estábulo da propriedade seria capaz de interceptá-los antes que chegassem à vila, ainda que percebessem sua ausência ainda antes do amanhecer. Dustie era rápida na estrada.

Conforme haviam combinado, o amigo que forneceria o escaler cuidaria de Dustie até que fosse restituída aos Weaver. Sua família relacionaria seu desaparecimento com a visita de Aindam na madrugada e não queria que o amigo fosse acusado de roubo. A carta deixada para ser encontrada pela manhã pelo mordomo Abke o livraria de uma acusação de sequestro.

Esperava estas precauções seriam o suficiente para que as Héxades não dessem grande atenção ao seu sumiço. Muito pouco fariam com seus próprios recursos para encontrá-los, muito menos para obrigá-los a voltar para casa. Ainda restariam muitos Weaver no “curral” para quando precisassem.

Aindam contava histórias sobre terras distantes que ouvira no porto. Ambos se deleitavam com a ideia de conhecer terras muito além do pequeno mundo onde nasceram. Mesmo Aindam não tinha ido além da Vierpoli.

Apesar da impressão de tranquilidade que o grandalhão sempre passava, dava para perceber que ele estava com sua cota de sono atrasada. Começou a bocejar e por fim falou:

-Olha, Félix, vou me deitar aqui no espaço atrás do banco. Qualquer coisa me acorda. Dustie dá conta sozinha do trajeto.

-Meu protocolo exige uma pessoa supervisionando a viagem.

-Não estou com sono, Dustie. Eu te faço companhia.

Aindam fez um grande estardalhaço se acomodando no estreito espaço. Em pouco tempo estava ressoando alto.

Faltavam algumas horas para chegar até a cidade e a Pequena Estepe estava escura como breu. A Lua iria levar quase uma hora para surgir no horizonte e o jovem Weaver decidiu continuar a sua leitura.

Ao pegar o livro deu uma olhada na lombada: “Ean Weaver”. Pensou em tudo que deixava para trás e que guardaria em seu coração. Faria, fosse o que ele fizesse com a liberdade e novas expectativas que ele almejava na vastidão do mundo, que valesse a pena. Não era sua intenção desonrar sua família. Ele queria voltar um dia, tão amadurecido e provido de conquistas que sua família entendesse que sua iniciativa não foi motivo para vergonha, mas para orgulho. Talvez isso lhes desse uma nova perspectiva sobre sua submissão excessiva.

Félix começou a ler, usando o seu cilindro luminoso.

“Vicky Setevidas se aproximou do Portal Selado. O artefato do Há Muito Tempo começou a vibrar em suas mãos. Seria ele capaz de reativar este portal como ele ativara os portais antigos que estavam nas ruínas onde ele fora encontrado? Que mistérios se esconderiam naquele portal sobre o qual não existem memórias de quando ele estivera ativo? Vicky ergueu o poliedro de vidroforte, a ‘chave-de-portal sobre a”...

A página terminava no meio de uma frase. A página seguinte continha uma do protagonista em pose dramática diante do portal selado.

Quando seus olhos encontraram o início da página seguinte, Félix franziu o cenho. A frase não continuava. Claramente se tratava de algo totalmente desconexo com a narrativa que ele viera lendo. Era um manuscrito, e não a tipografia de máquina.

Se tratava do relato das experiências de Ean a serviço das Héxades. Ele se dizia empolgado e disposto a oferecer o melhor de si nas missões pelo bom nome de sua família.

Voltou a ler o nome do tio na lombada. Ele teria acidentalmente juntado páginas de seu diário pessoal ao livro no fabril? Distração? Os primeiros sintomas da demência? Ou outra coisa?

-Não entendo o que está dizendo, jovem senhor Weaver. - Disse a voz impassível de Dustie reagindo aos murmúrios surpresos de Félix.

-Er… Não é nada, Dustie… Apenas estou um pouco… Surpreso com a história que estou lendo.

-Posso ajudar com alguma informação?

-Não é necessário.

A máquina não insistiu e Félix continuou lendo nervosamente apesar do balanço do veículo na estrada irregular.

Intrigado, Félix começou a passar as páginas pelo polegar rapidamente para verificar se o relato iria até o final do livro, mas percebeu o enxerto correspondia a apenas cerca de cinquenta páginas. Estaria ele completo?

Foleando de volta, ele percebeu que o relato parava de maneira abrupta em certo ponto se transformava num conjunto de notas intrincado e apressado. Reconheceu alguns nomes de figuras das Héxades das quais seu pai falava com alguma frequência. Haviam também nomes de alguns parentes que ele reconheceu, todos desaparecidos a serviço da organização ou mesmo vitimados pela demência familiar. Obviamente Ean havia começado um processo de investigação.

Havia anotações de nomes de drogas e remédios, muitos dos quais ele reconhecia como utilizados pelos parentes que voltavam doentes. Outros ele não conhecia. Todos porém eram sempre receitados pelos curandeiros e magos a serviço das Héxades.

Voltou para o meio da primeira parte do relato, onde seu tio conta que tipo de serviços as Héxades pediam que ele fizesse. Ele leu sobre uma determinada missão na qual ele deveria apresentar uma proposta de solução sobre taxações sobre carregamento de porcelana lazúli com um sindicato de comércio em uma das Decápolis. Prepararam-no com uma rápida explicação sobre a situação e um texto pronto. Ean se dizia completamente inseguro quanto ao discurso que tinha que fazer. Decorar o que dizer era fácil, mas ele não se considerava preparado para responder se fosse questionado. Ainda mais ele achava que a proposta a ser apresentada não era algo que se pudesse dizer que era irrecusável. Na verdade, seria claramente desvantajoso para os comerciantes azulitas.

Os agentes das Héxades ofereceram a ele uma droga pouco antes do início da reunião onde Ean deveria apresentar a proposta. Disseram que ela iria aumentar sua confiança, mas ele recusou. Ean relatou que fora levado a um salão com representantes das facções, à volta de uma grande mesa. Ele começara a despejar as palavras e as pessoas apenas ouviam. Da metade do discurso para frente ele emitiam apenas ruídos de concordância. Inacreditavelmente, no final, ele percebeu que todos estavam satisfeitos e dispostos a assinar o acordo.

Algumas pessoas queriam conhecê-lo, mas os homens das Héxades não permitiram, retirando o Weaver do local de maneira quase abrupta.

Félix foleou mais um pouco e percebeu que Ean fora levado para resolver problemas como uma greve e uma situação com reféns. Ambos os casos resultando em sucesso surpreendentemente fácil. Estarrecido, Ean relata que no último caso ele praticamente convenceu o sequestrador da filha de um chefe das Héxades a libertar a refém e a se entregar, mesmo estando claro que isso resultaria em sua execução sumária.

Na parte final do relato escrito na primeira parte, a mais coerente, antes que começasse a parte das anotações apressadas, Félix teve a atenção atraída para um parágrafo onde Ean se mostrava surpreso como os agentes das Héxades o usavam como porta-voz, mas que muito pouco falavam com ele ou permitiam que ele tivesse qualquer autonomia para compor os discursos ou termos das negociações, mesmo que ele estive convencido de que pudesse oferecer alternativas bastante superiores. Mesmo assim, Ean ficava surpreso com a efetividade da sua atuação, em um nível no qual ele mesmo nunca se julgaria capaz, principalmente pelo fato de que ele nunca tivera oportunidade de exercer a oratória em sua vida na propriedade dos Weaver.

Intrigado, um dia, segue o relato de Ean, ele decidiu tentar exercer seu poder de persuasão sobre a equipe das Héxades que o conduziam para lá e para cá.

O resultado foi uma demonstração de verdadeiro alarme. Disseram que não era seu papel questionar. Quando ele insistiu, ficaram mais frios ainda no trato com ele e um chegou a sacar um tipo de pistola com uma agulha saindo de onde deveria estar a ponta do cano. Ele relata que passou mal e ficou um tanto letárgico durante uma viagem de uma semana. Suspeitava que haviam colocado drogas em sua comida ou bebida. Porém, caso se mantivesse obediente, passivo e submisso, o tratamento era aceitável. Pelo menos deixavam que ele se distraísse da solidão encadernando livros…

Dustie freou de maneira tão abrupta que jogou Félix com livro e tudo sobre o painel.

-Obstáculo na estrada! Perigo! Formas humanas adiante.

O trecho onde eles estavam era no do limite da Pequena Estepe e várias pequenas colinas marcavam a região, indicando o início da elevação das Mesas Amarelas. A estrada passava entre dois pequenos morros separados por uma depressão causada por algum incidente esquecido, naquilo que chamavam de Passo dos Morros gêmeos. O autogollem não era capaz de subir pelas laterais íngremes ou se desviar das pessoas que barravam o caminho.

Aindam levantou-se imediatamente tão logo a frenagem terminou.

-O que foi, o que aconteceu?

-Parece que alguém bloqueou a estrada.

Aindam assumiu os controles manuais e fez o autogollem girar centro e oitenta graus bruscamente sobre as rodas da direita e as da esquerda girando em sentidos opostos, arremessando cascalho amarelado e poeira para todos os lados no processo.

Assim que as lanternas do veículo iluminaram O caminho de volta, eles viram mais quatro figuras fechando-lhes qualquer possibilidade de fuga. Nada faria Dustie investir contra seres humanos.

Mais pessoas chegavam pelos dois lados, deslizando pelas laterais das pequenas ribanceiras, portando globos luminosos e armas de mão.

-Fique entre os barris, Félix. Eu tiro a gente dessa.

-Salteadores? Nesta estrada? - Disse Félix, já fazendo o que Aindam disse.

-Não devem ser daqui. Vou avisar esses imbecis em que território eles estão. Vão sair correndo e pedindo desculpas, você vai ver!

Aindam pegou o receptor do aparelho altissonante e sua voz, amplificada trovejou:

-Não sei quem são vocês, mas estão se metendo em assuntos das Hé...

-Poupe o fôlego, estivador! Você é que está metido em um assunto muito acima da sua conta - Soou uma voz forte e resoluta. - Entregue o Weaver por bem e poderá seguir o seu caminho.

O grandalhão ficou sem ação por alguns instantes. No compartimento de carga, entre os barris, Félix também sentiu o abalo. Então estiveram sendo muito mais bem vigiado do que esperava. Planejou sua fuga considerando que fazia parte de uma família excluída dos principais eventos do mundo, um componente de segunda classe nos quadros das Héxades. Mas, obviamente... (olhou para o livro enxertado com o relato de seu tio Ean, ainda em sua mão).

Por um instante o sangue de Félix gelou. As pessoas que o pararam sabiam que ele estava lá. Se fosse sua intenção apenas levá-lo para casa, bastaria ter frustrado sua fuga ainda quando o autogollen estava estacionado em frente à entrada principal da propriedade. Algum recurso do Há Muito Tempo fora usado para alertar seus perseguidores. Sabia que as Héxades, e só elas possuiriam algo assim. Não poderia supor que se tratava do leal Abke, mas poderia apostar alto contra Guhaad.

Aindam permaneceu em seu lugar, mas mantendo as mãos à vista para não dar motivos para que atirassem.

O homem que agia como líder do grupo segurava um tipo de pistola, mas a mantinha apontada para o chão. Porém, haviam armas apontados para o grandalhão em quantidade perturbadora. Bestas, rifles de retrocarga e outras armas mais estranhas.

Agora não haveria como saber o que aconteceria com ele. Mas Félix se recusou a sentir medo. Havia meditado profundamente sobre sua pretensão de se afastar da casa da família e admitido para si mesmo que inevitavelmente haveriam situações em que ele só poderia contar consigo mesmo.

Elevando a cabeça sobre os barris, observou os homens armados fazendo um cerco ao autogollem. Procurou decifrar os tipos. O homem com a pistola na mão era um líder bem preparado nos quadros das Héxades. Félix supunha que ele soubesse algo sobre sua Família. O resto deles, porém, sem dúvida eram homens de baixa qualificação. Apostou que eles não estavam prevenidos das capacidades dos Weaver. Assim, se Félix conseguisse de alguma forma neutralizar o chefe, talvez pudesse lidar com o bando. Respirou fundo, tentando ser tão confiante quanto Vicky Setevidas.

Então Félix abaixou o vidro de uma das janelas e gritou no seu tom mais imponente e imperativo diretamente para o líder do bando:

-Ei! Você! Qual é o seu nome?

-Radin! - Respondeu num ímpeto, o homem, estremecendo involuntariamente, como se algo o assutasse. Depois arregalou os olhos e emendou – Barab! Barab!

Os olhos dele correram em volta muito rápido e logo depois ele ficou visivelmente irritado. Os homens à sua volta se entreolharam surpresos e confusos.

Félix percebeu que havia conseguido algum efeito desconcertante e não queria deixar a oportunidade passar. Sacou sua faca pneumática e bravateou:

-Venha logo usar essa pistola em mim, ou eu vou fazer com que seus próprios homens te enforquem!

A situação era insólita. Aindam nunca tinha visto Félix assim. Suas palavras o assustavam, mesmo não sendo ele o alvo do ato de vontade com o qual elas eram proferidas. Elas entravam em sua mente e o deixavam inseguro. Até mesmo os rufiões em volta demonstravam confusão. Alguns até abaixaram as armas, mas só por um instante.

O homem que se chamava Radin subitamente se colocou em estado de urgência e disparou em direção à janela aberta, pistola em riste. A gerações não aparecia um Weaver tão rebelde, tão perigoso!

Porém, em seu impulso descuidado, passou perto demais da porta frontal do autogollem. A perspectiva de um ataque contra seu amigo fez com que Aindam saísse de seu estado de confusão.

Com um movimento rápido Aindam acionou o mecanismo manual de abertura e empurrou a porta violentamente, fazendo-a girar nas dobradiças até interceptar a trajetória desabalada de Radin, derrubando-o no chão desacordado e fazendo a pistola injetora ser arremessada para longe.

O ato de violência fez com que os capangas saíssem de seu estado de confusão e as armas foram acionadas. Projéteis metálicos, virotes, flechas e lâminas em forma de disco atingiram o autogollem, quebrando vidros cravando ou atravessando a carroceria. Por sorte, Félix se jogou em meio aos barris e não foi atingido. Aindam, porém, desprotegido por ter aberto a porta gritou ao ser alvejado, fechando a porta em seguida para tentar ganhar alguma cobertura.

Dustie começou a repetir, como se pedisse desculpas:

-Caminho bloqueado por criaturas humanas! Caminho bloqueado por criaturas humanas!

Cerrando os dentes, Félix se levantou se espremendo brutalmente entre os barris e mergulhou sobre o banco frontal. Agarrou o bocal do altissonante apertando o contato. Reuniu toda sua vontade, revolta acumulada por anos e a indignação pelo que descobrira a pouco, nos relatos de Ean Weaver:

-SAIAM DA FRENTE AGORA! - Soou a voz de Félix, amplificada dez vezes. Os quatro bandidos saltaram lateralmente antes que qualquer objeção consciente ou instintiva conseguisse sair de sob o peso da influência daquele comando.

Dustie soou aliviada, ou assim pareceu:

-Caminho livre. Tração máxima.

Os cascalho amarelo gritou e saltou sob as rodas do autogollem, ganhando rapidamente distância e velocidade. Logo os tiros se perderam na escuridão e poeira ocre na madrugada.

Félix rapidamente se ajeitou no banco e examinou Aindam. Ele estava com um virote metálico cravado na coxa esquerda e um corte fundo no rosto.

-O que deu naqueles imbecis! - Gritou o grandalhão, cheio de ódio – Quase nos mataram! Quase mataram você! O que foi isso? Eles não podem…

-Eles não trabalham para minha família, Aindam. Nem eram bandidos comuns.

-Mas eles sabiam que você estava comigo. Sabiam quem é você!

-Sim, sabiam.

-E quem são eles? Gente das Companhias?

-Não. Gente das Héxades.

-Das Héxades? As Héxades são os patrões! São protetores dos Weavers! Aliados de vocês!

-Não, amigo. São nossos carcereiros. Não vamos para vila. Dustie, apague as lanternas.

Aindam olhou em silêncio para Félix por alguns segundos. Então procurou algo embaixo do banco, com caretas e gemidos abafados de dor.

-Está vigiada, é claro. - Aindam disse, voltando a sentar direito e abrindo uma caixa de primeiros socorros.

A Lua nascia sobre a Pequena Estepe e iluminava as colinas à distância.

-Não teremos como pegar o navio com o escaler. Você tem certeza que o navio é seguro?

Félix se assustou pois Aindam deu um urro alto ao arrancar inconsequentemente o virote da perna, liberando uma profusão de sangue. Em seguida ele pressionou um tecido fervido sobre o ferimento.

-Certeza absoluta (Hunf!). Aquele pessoal é independente. Além disso, eles nem sabem quem é você.

-Bom. Vamos nos aproximar do rio sem sermos notados. Aí vamos improvisar nossos próprios escaleres… - Apontou para os barris vazios. Ou quem sabe – Continuou, dando tapinhas no console de Dustie – Nem precisemos ir pelo rio, não é?

Aindam sorriu para Félix, animado, apesar da dor.

-Não tem nada que me segure nesta terra, irmão! Venha o que vier! Somos nós contra o mundo, agora!

Félix se abaixou e pegou o livro no chão. Leu novamente o nome do tio na lombada e percebeu que teria que ir até o fundo daquele mistério. Decifrar as anotações de Ean seria apenas o primeiro passo. O que vinham fazendo com sua família não era justo. Colocaram-nos em um curral para explorar seus talentos, ao mesmo tempo que os mantinham sobre controle.

Mas isso tinha um outro lado. Se a organização precisava conter os Weaver, talvez isso signifique que Félix poderia ser mais perigoso do que ele próprio imaginava. Essa… magia em seu sangue…

Até onde iria a extensão de suas capacidades? Só o tempo diria o quanto as Héxades tinham a temer de um Weaver livre.

***

Obrigado por ter lido! Espero que tenha sido uma experiência agradável.

Esta história é baseada no cenário/aventura/viagem épica UVG: PRADARIAS ULTRAVIOLETAS E A CIDADE NEGRA, de Luka Rejec, lançado no Brasil pela editora Retropunk.

Trata-se de um material para RPG de mesa que traz um cenário extremamente imaginativo, porém propositalmente vago para que os jogadores e mestres de jogo o personalizem como preferirem, tornando-o uma versão própria e única.

Com este texto eu espero começar uma série de contos que vão consolidar a minha versão deste mundo de Fantasia Científica.

Até o próximo!