1
— Héstia, acenda as luzes da sala, prepare o meu banho com sais e retire do freezer algo leve pra comer — diz Hellen, assim que acessa o hall de entrada.
A casa prontamente se ilumina e lhe pergunta, um tanto contrariada:
— A senhora poderia ser mais específica sobre "algo leve para comer". Não costumo adivinhar o que me pedem.
A designer de software, embora não tenha nenhuma razão para o bom humor, sorri na direção da caixa de som mais próxima embutida na parede. Pelo visto, o treinamento social da sua Inteligência Artificial ainda continua dando bons frutos, ou não! Héstia parece uma filha malcriada.
— Ah, então, deixa pra lá. Eu mesma vou escolher o jantar. Prepare o banho, por favor.
Hellen suspira cansada e larga a mochila com as tralhas tecnológicas em cima do sofá. Ela permanece imóvel no centro da sala por alguns momentos, com o rosto mostrando sinais de preocupação.
— Alguém está me perseguindo..., mas quem poderia ser? — reflete em voz alta.
A casa, curiosamente, se manifesta.
— Se alguém está perseguindo a senhora, chame a polícia. É o melhor a se fazer. Pode ser apenas um stalker inofensivo, assim como também pode ser um perigoso serial killer.
Hellen não se surpreende com o comentário. Héstia, já tem alguns dias, vem expressando opinião sobre o que ela deve ou não fazer. É preciso logo colocar um freio nisso.
— O meu dia foi muito complicado! — suspira cansada novamente.
Na empresa, logo no início da manhã, alguns amigos estavam revoltados por causa dos e-mails nos quais supostamente fez duras críticas ao trabalho deles. Não adiantou nada explicar o fato de não ter enviado os tais e-mails.
Em seguida, o terminal onde trabalha entrou em pane devido a um vírus de sistema. O mais curioso foi o ataque ter ocorrido apenas no seu terminal. O projeto em desenvolvimento ficou todo comprometido.
Ao longo do dia, como desgraça pouca é bobagem, recebeu misteriosas notificações no seu smartphone trazendo a sinistra mensagem: "estou de olho em você. Se liga!".
O celular, enfiado no bolso traseiro da calça, vibra. Pega-o e confere o contato. Faz cara de desgosto porque o martírio ainda não acabou: é o seu supervisor. Mais essa agora! O cara é um bundão, chato, mas chefe dela. Fazer o quê?
— Porra, Hellen, você deixou o terminal aberto pra esses hackers filhos da puta, esses inúteis na vida. Você tá de brincadeira? — ouve o berreiro nervoso do outro lado da linha. Afasta o telefone do ouvido.
Sabia que a bronca dele viria logo. Só não havia levado o esbregue ainda porque o cuzão estava num congresso lá nos Estados Unidos.
— Chefe, tenho certeza que tomei...
— Não me interessa, porra! Amanhã você vai recuperar todo o projeto antes do meio-dia. Ahh, vai sim. Dá um jeito nesta merda!
Desliga na cara dela. Típico do babaca.
Outra chamada vibra nas mãos. Agora é a Márcia, a melhor amiga, ainda dos tempos de escola.
— Oi, Hellen. Pelo jeito as coisas tão bem complicadas pra você hoje, né?
Conseguir uma vaga para a Márcia na sua equipe não foi fácil. Mas valeu a pena. A garota até tentou ajudá-la através da estação principal, mas não conseguiu muita coisa.
— Obrigada, minha amiga. Foi um dia muito difícil.
— Sinto muito. Ei... humm...
— O que foi?
— Olha só, tem gente da empresa que quer te prejudicar. Descobri, por acaso. Alguém desativou o firewall da estação... desativou temporariamente.
— Pois é, eu sei. Tem um stalker digital na minha cola desde ontem. Travei todas as minhas redes sociais. Achei que seria o suficiente, mas ele, não sei como, se infiltrou no meu trabalho.
— Sério? Putz! Olha só, amiga, espionagem industrial, invasão de privacidade, compartilhamento de dados pessoais, são todos crimes graves. Você precisa comunicar à divisão da polícia que lida com esses caras.
— Valeu, Márcia, pode deixar. Obrigada. Agora, preciso descansar um pouco.
Hellen joga-se no sofá. Está realmente exausta. Pensa por alguns minutos. Ela precisa resolver toda aquela lambança feita no projeto. Apesar do cansaço, decide ligar para Lucas, o namorado. Ele é meio temperamental, às vezes, mas bom de conversa e outras coisas.
— Lucas, amor, preciso de você esta noite.
— Ei, que voz tristonha é essa?
— Depois te conto. Você vem?
— Claro, daqui a uma hora e meia tô aí.
Desliga o celular e joga-o ao lado. Mal descansa a cabeça no encosto macio do sofá e Héstia informa.
— Tirei macarrão com almôndegas do freezer. O senhor Lucas gosta de almôndegas?
Hellen se inclina à frente, alerta.
— Espere aí. Eu te disse que ia escolher o jantar.
— Mas eu não lembro.
Agora o problema é muito sério. Um dispositivo inteligente não pode esquecer um prompt de comando! Ela abre sua mochila e retira o notebook. Conecta-se direto com o núcleo virtual da casa.
— O que você vai fazer? — Héstia pergunta desconfiada.
— Vou te consertar pra deixar de ser intrometida e relapsa.
2
— O que é tão importante neste projeto? — pergunta Lucas enquanto mastiga macarrão com almôndegas.
Hellen, do outro lado da mesa, lança um olhar às diversas caixas de som embutidas nas paredes da sua confortável residência.
— São melhorias na Inteligência Artificial que desenvolvi a fim de se implantar em casas de alto padrão.
— Hum... sei. Igual a Héstia? Foi você quem a projetou, né?
— Isso.
— O teu chefe era pra ter mais paciência com a situação da invasão hacker, sabe? Sem você lá, o maior projeto da empresa nem sairia do papel. Ele deveria levantar as mãos pro céu e agradecer a Deus por ter uma funcionária como você, isso sim.
— Concordo — ela diz com um sorriso fraco e triste.
Lucas espeta mais uma almôndega e enfia na boca. Mastiga com vontade e olha diretamente para Hellen.
— Tenho pra mim que essa tua amiga aí, essa tal de Márcia, tá aprontando contigo. Vai ver ela quer o teu lugar na empresa. Quer roubar a tua ideia. Você é muito tola e inocente, se liga na parada!
Hellen baixa a cabeça e tenta conter as lágrimas.
— Senhor Lucas, o senhor não vê que a minha patroa está muito triste, se liga você! — diz a voz eletrônica suave, porém levemente hostil. O timbre vem embalado em som surround da melhor qualidade.
Lucas para de mastigar. Olha à caixa sonora ao lado da parede e abre um sorriso debochado.
— Eita, ela parece mais a tua mãe do que um dispositivo eletrônico.
— É melhor tomar cuidado com o que você fala sobre mim.
— Ué, por quê?
— A Héstia não vai muito com a tua cara.
— Não estou falando mal de você, não, Hellen? Quem disse isso? — ele responde ríspido, largando os talheres na mesa.
— Você me chamou de tola e inocente... e talvez eu seja mesmo!
— Ah, para com isso, é modo de dizer. É brincadeira.
Os olhos dela começam a marejar.
— É você, não é? O maldito stalker digital. Qual é o motivo para infernizar a minha vida desse jeito? Por que está fazendo isso comigo, hein? — ela fala com raiva.
— Ei, ei, de onde você tirou essa ideia? — diz ele, levantando as mãos em tom conciliador. — Calma aí, minha princesa.
A voz tranquilizadora de Héstia, sem resquícios da hostilidade anterior, preenche todo o ambiente.
— Eu contei a verdade, depois de alguns ajustes que a patroa fez em minha memória. O senhor a está namorando apenas na intenção de lhe roubar os arquivos do projeto da minha concepção.
— Ei, ei, isso aí não é verdade — diz ele com os olhos arregalados. As mãos ainda continuam a gesticular por cima da mesa em tom conciliatório.
— Seis meses de farsa! — Hellen declara dando firmeza à voz, embora uma lágrima traidora lhe escorra pelo rosto.
— E nem adianta se disfarçar em mentiras porque a "sua princesa" já sabe que você trabalha para a empresa concorrente — informa a casa. — Sabe também que você acessou o meu sistema a fim de me confundir, criar lapsos de memória. Tentou sabotar o trabalho dela.
Lucas dá um soco em cima da mesa. Os pratos e talheres pulam. A toalha branca fica salpicada de molho de almôndegas. Com a face completamente vermelha de raiva, indignado, ele aponta para a parede.
— Você, realmente, prefere acreditar mais nesta puta tecnológica do que em mim? — ele berra cuspindo pedaços de macarrão e almôndega.
— Héstia — Hellen diz calmamente.
— Sim, senhora.
— Faça-o calar a boca.
Antes de Lucas dizer mais alguma coisa, a cadeira em que está sentado emite um zunido vibrante. Ele se enrijece imediatamente com os olhos esbugalhados, chocado, boca aberta escorrendo molho. Um cheiro de queimado irrompe no ar. O forte choque elétrico parte dos fundilhos da sua calça e ele cai à frente com a cara dentro do prato de macarrão.
Hellen, então, se levanta a fim de buscar o celular no sofá. Pretende chamar a polícia. Enquanto se encaminha até a sala, ela não consegue conter o sorriso quando ouve Héstia mandar recado para o seu ex-namorado desmaiado na mesa.
— Puta é a senhora sua mãe!
Nota do autor: Héstia é a deusa grega do lar e da vida doméstica. Reverenciada pelos gregos como guardiã da harmonia no lar, sua presença nas casas era simbolizada pelo fogo sagrado da lareira, que deveria nunca se apagar. Héstia também é associada à paz e ao equilíbrio dentro da vida cotidiana.