A incógnita celeste
Córdoba, Argentina, verão de 1881.
Aquilino Lavezzi deu duas batidas na porta do gabinete do diretor do Observatório Astronômico de Córdoba. Lá de dentro, o Dr. Gould respondeu que entrasse.
- Vejo que trouxe as placas - disse o diretor, ajeitando os óculos no rosto barbudo, ao ver o embrulho quadrado que Lavezzi trazia debaixo do braço.
- Não todas, diretor - admitiu o recém-chegado, entregando o pacote ao astrônomo. Este começou de imediato a conferir o conteúdo, enquanto Lavezzi se punha ao lado dele para apreciar o material.
- Muito bom - comentou Gould, examinando com uma lupa algumas das placas de vidro, onde diminutos pontos brancos marcavam a posição de estrelas, fotografadas através do "Gran Ecuatorial", o telescópio refrator de 28 cm da instituição. Ergueu uma das placas, onde se via a Lua em quarto crescente.
- Essa aqui, ficou sensacional - aprovou.
- Podemos usar para o livro que pretende publicar - sugeriu Lavezzi.
- Sim, talvez no prefácio... afinal, a ideia é publicar mapas estelares, não da superfície da Lua - ponderou Gould.
Ergueu mais uma placa contra a luz que entrava pela ampla janela do gabinete, e depois a escrutinou com a lupa.
- Lacaille 9352... acho que vamos precisar repetir a exposição. Tem uma mancha aqui embaixo...
Lavezzi inclinou-se sobre a chapa e Gould lhe passou a lupa.
- Talvez seja da emulsão fotográfica - avaliou Lavezzi. - Mas vou pedir aos rapazes que tenham mais atenção na limpeza das lentes.
- Voltamos a Lacaille outro dia - prometeu Gould, empilhando as placas de vidro e as recolocando cuidadosamente dentro do embrulho de papel grosso onde Lavezzi as trouxera.
Da próxima vez em que Lacaille 9352 foi fotografada, a mancha já não estava lá e o Dr. Benjamin Gould nunca mais voltou a pensar nela.
* * *
Greenwich, Inglaterra, 1931.
- Isso aqui pode lhe interessar - disse o Dr. Gavin Fisher ao entregar um envelope pardo a um colega, o Dr. Godfrey Young, um dos assistentes do Observatório Real.
- Não são fotos sensuais de nenhuma das suas amigas do teatro de revista, eu suponho - redarguiu Young, bem-humorado.
- Vou ficar lhe devendo - replicou Fisher. - São de uma estrela, mas não do teatro de revista... o tipo de estrela que você costuma perseguir pelas noites afora.
Young abriu o envelope e dali retirou duas cópias fotográficas em preto e branco. Franziu o cenho e depois olhou o verso de cada foto.
- Argentina, 1881? O que isso tem de mais?
- São da sua queridinha, Lacaille 9352 - observou Fisher. - A foto marcada com "1", não havia sido publicada até agora, aparentemente por ter uma falha no processamento fotográfico... uma manchinha branca, próxima da estrela-alvo, no centro da imagem. Tiraram a foto "2", meses depois, e a manchinha de fato havia desaparecido.
- Certo... mas continuo sem entender - Young ergueu os sobrolhos.
- Essas fotos me foram enviadas da Argentina, por um pesquisador do Observatório Astronômico de Córdoba, Ignacio Leguizamón. Ele teve acesso a alguns dos nossos levantamentos fotográficos do céu astral, feitos pela expedição Outen de 1896, e diz ter notado a mesma suposta falha, só que com uma magnitude aparente maior.
- Expedição Outen... - Young encarou as duas fotos com ar pensativo. - O equipamento que eles levavam certamente não tinha a mesma resolução que um telescópio fixo, num observatório.
- Eu pensei nisso - admitiu Fisher. - Mas Leguizamón disse que, como temos as chapas fotográficas originais e não uma cópia de baixa qualidade, poderíamos verificar se a suspeita dele procede, ou descartar definitivamente a hipótese.
Young encarou o colega e abriu as mãos.
- Uma estrela que muda de magnitude não chega a ser uma grande novidade - ponderou. - Pode ser uma nova, ou uma variável.
- Só que ela não estaria somente aumentando de magnitude - corrigiu-o Fisher. - Leguizamón suspeita que o movimento aparente seja o maior jamais registrado: ela aparece maior, simplesmente porque está vindo em nossa direção!
- Mas como ninguém havia percebido isso até hoje? - Questionou Young intrigado.
- Fiz essa pergunta a Leguizamón, e ele me respondeu algo que faz algum sentido: porque a velocidade teria que ser tão absurda, que quem a medisse, a tomaria por um erro grosseiro.
- Precisamos ver as chapas no arquivo - decidiu-se finalmente Young.
Dias depois, Ignacio Leguizamón recebeu um telegrama do Observatório Real de Greenwich: os ingleses lamentavam informar, mas as chapas fotográficas da expedição Outen haviam sido danificadas por armazenamento inadequado. Eles não poderiam confirmar se a suposta "mancha", na foto de 1881, era realmente uma estrela.
Leguizamón até confidenciou ao Dr. Charles Perrine, então diretor do Observatório Astronômico de Córdoba, que os ingleses bem poderiam estar querendo lhes passar a perna e registrar a descoberta apenas no nome deles. O Dr. Perrine, cidadão dos Estados Unidos, não descartou a hipótese, mas dias, semanas e meses se passaram, sem que nenhuma menção à descoberta chegasse às revistas científicas.
Enquanto isso, Greenwich havia solicitado ao Observatório de Sydney, no hemisfério sul, que mantivesse a "nova estrela" em Piscis Austrinus sob observação; o que ignoravam é que, devido a crescente poluição luminosa causada pelas luzes da cidade, e a drástica redução de pessoal da instituição, pouco poderia ser feito nesse sentido.
Oito anos depois, o início da II Guerra Mundial tornou a astronomia um assunto secundário. Até que um dia...
[Continua em "Bombshell"]