GERMINAÇÃO

As notas musicais choradas pela guitarra de David Gilmour arrancam-lhe um profundo suspiro e parecem querer grudar em sua pele. Confortably Numb era uma das músicas favoritas dela. Nunca mais ela escutaria Pink Floyd e ele nunca mais sentiria a intensidade dos olhos negros de Natália pousando sobre seu corpo magro.

Relutantemente retira os fones de ouvido. Era a sua vez de subir ao telhado e ficar lá por horas e horas observando a paisagem quase sem vida da cidade.

Uma turba enfurecida poderia surgir a qualquer momento.

Sua posição é privilegiada, empoleirado como um pássaro no alto de um prédio, ele pode ver muita coisa. O vento é forte, mas também é inspirador. Enquanto seus cabelos ficam assanhados pelo vento ele lembra de várias coisas que já haviam acontecido em sua vida. Lembra das coisas boas (bem poucas) e das ruins (muitas, ele diria).

Lá embaixo a vida já não transcorre em toda a sua plenitude. Carros não buzinam mais, pessoas não andam com os olhos presos aos celulares, as vitrines das lojas não são apreciadas por mais ninguém, não existem pessoas atrasadas para o trabalho.

Pela luneta de sua mira telescópica ele observa o que restou do caos. Ele nunca havia morrido de amores por aquela cidade, chegou inclusive, por várias vezes, quando era muito jovem, ter desejado ir embora dela. Essa vontade deixou de existir quando conheceu Natália e seu sorriso aberto e franco.

Do alto de sua posição percebe um homem em cima de um caixote de madeira com um megafone em sua mão. Cabelos desgrenhados e roupas amassadas parecendo serem grandes demais para o seu corpo. Ele brada palavras que Tomás não consegue escutar, mas que provavelmente estão recheadas de medo, ódio e revolta.

Já no limite da visibilidade de sua mira ele divisa o shopping onde conheceu Natália. Ele está com suas paredes enegrecidas, restos de um incêndio, a bonita cúpula que ornava seu teto estava agora destruída. Nunca mais haveriam pessoas circulando por seus corredores, lojas vendendo toda sorte de produtos, pessoas rindo e conversando, estacionamento lotado de veículos.

Eles eram de turmas diferentes, porém da mesma escola. Uma tarde em que ambos mataram aula, Entre sorvetes e risadas na praça de alimentação algo foi surgindo. Tomás nunca esqueceu de um detalhe trivial daquela tarde maravilhosa: Natália usava um colar com um astronauta em miniatura. Para ele aquilo havia ficado como o marco inicial de uma bela história. Em sua imaginação de adolescente ele havia se transformado em um astronauta para ela.

- Alguma movimentação lá embaixo? – Tomás surpreendeu-se com o som da voz grave atrás de si. Era Max, o pesquisador-chefe daquele que era um dos poucos lugares do mundo que ainda tentava fazer algo para conter a praga que estava varrendo a humanidade da face da Terra.

- Sim, doutor. Tem um homem lá embaixo que está desde ontem berrando em um megafone. Tem várias pessoas em volta dele. Olha, pode demorar, mas acho que a qualquer momento as coisas podem...

- Vejo que você tem heterocromia – Max falou interrompendo-o e dirigindo-se para ver mais de perto os olhos do soldado. Percebeu que um olho era verde e o outro azul.

Tomás havia sido pego de surpresa com o que o cientista havia falado. Mesmo assim reuniu o que ainda restava de sua boa vontade e resolveu continuar aquela conversa.

- Sempre fui assim, doutor. Quando estava na escola viviam fazendo gozação comigo, diziam que eu era ladrão de olho, que pintei errado os olhos, falavam que saia raio laser deles, essas coisas. – Não conseguiu conter um leve sorriso ao lembrar de histórias tão antigas.

Lá embaixo o homem continuava a bradar em seu megafone e, aos poucos, mais pessoas iam se juntando ao seu redor. Eles não eram muitos, alguns famélicos, outros aparentando debilidade física, porém todos demonstrando estarem inflamados pelas palavras proferidas pelo orador do megafone.

- Doutor, ainda tem alguma salvação? Todas essas coisas que vocês estão fazendo lá dentro vão tirar a gente do buraco?

Max retirou do bolso um cigarro e o acendeu, dando uma longa tragada antes de responder – Esse gesto deixou Tomás surpreso pois não conseguia imaginar um cientista fumando, ainda mais um que chefiava pesquisas que pareciam tão importantes.

- Soldado, você também deve ter perdido alguém, não é?

Sem esperar pela resposta ele segue falando.

- Acho que temos uma chance muito pequena. Talvez dê certo. Você reza, soldado?

- Doutor, deixei de rezar no dia que Natália morreu...

- Ela era sua mulher?

Tomás não queria ter que falar de Natália. Uma paixão que havia nascido na adolescência. Quase dois anos depois a dor ainda era grande. Manchas roxas em seu corpo, pulmões que viraram papa, uma gestação de oito meses e a morte em três dias. Tão rápido...Duas vidas em uma só. Quando Natália morreu, Tomás passou a odiar todas aquelas palavras que a mídia usava para se referir àquela doença maldita: imunidade de rebanho, vírus mutagênico, baixa imunidade, doença sistêmica, cepas, epidemia, pandemia... Palavras que se juntaram depois a outras como: mundo em perigo, juízo final, apocalipse... Coisas que, em sua opinião, só serviam para explicar que o inferno havia chegado para todos sem exceção.

- Sim... Ela morreu em casa. Estava grávida do nosso primeiro filho, era uma menina. Não havia mais vaga em nenhum hospital, nem tinha quase médico para atender. Cheguei a pegar meu revólver para arranjar na marra um leito para ela, mas de que adiantaria? Os médicos e as enfermeiras estavam morrendo também...

- Mas você não contraiu a doença...

- Sim, não peguei, mas me disseram que não tem jeito e que a merda desse bicho muda tanto que um dia vai terminar me pegando. É isso, doutor?

- Olha, vou ser bem sincero... Acho que sim. Todos nós vamos terminar contraindo.

Essa resposta não foi surpresa para Tomás. No fundo ele achava que merecia morrer. Que vida ele ia levar se sobrevivesse em um mundo que já tinha virado um inferno há muito tempo? Quando aparecessem os primeiros sintomas ele meteria uma bala em sua cabeça sem pensar duas vezes.

- Você fuma, soldado? As vezes isso ajuda a relaxar...

Tomás apenas balançou a cabeça. Alguém ficar jogando fumaça para dentro do pulmão sempre lhe pareceu uma coisa idiota.

- Soldado, como você se chama?

- Meu nome é Tomás, doutor! Como meu avô...

- Tomás... Estamos coletando amostras de material biológico para uma série de testes e, quem sabe, conseguir dar uma cartada final nessa merda toda. Já coletamos de várias pessoas. Você aceita? Pode nos ajudar?

- Doutor, é só me dizer o que eu tenho que fazer...

*****

Mais um turno empoleirado no alto do prédio. Em pouco tempo o dia amanheceria. De sua posição Tomás observa que partes imensas da cidade não têm mais energia elétrica e que os incêndios se alastravam por bairros inteiros. Por um breve momento sua atenção se desvia da cidade caótica lá embaixo. O que será que eles iriam fazer com o sangue, cabelos e saliva que recolheram dele? Ele não tinha muito estudo, mas achou tudo estranho, como aquilo poderia servir para fazer uma vacina?

Afastou essa pergunta da mente e concentrou-se em seu trabalho. Ele tinha que se manter vigilante. Lá fora haviam grupos armados e pessoas fanáticas que pregavam o caos e a anarquia. Não existiam mais instituições que pudessem manter o controle de alguma coisa. Tomás sabia que era questão de tempo até que pessoas armadas invadissem aquele prédio. Sentiu-se tenso de repente, não estava com medo, mas não iria relaxar e entregar tudo de graça. Checou sua pistola, seu fuzil com mira telescópica e o rádio portátil. Estava tudo em ordem. Após fazer isso sentiu-se um pouco mais tranquilo. Se houver uma invasão ele tem certeza que vai levar muitos com ele.

A pergunta continuou martelando o pensamento de Tomás por muito tempo até que certo dia saindo do refeitório ele encontra o pesquisador-chefe. Mesmo com receio e vergonha resolveu interpelá-lo.

- Doutor, me diga como é que uma mexa do meu cabelo, umas gotas de saliva e um pouco de sangue poderão ajudar a salvar a gente? Como é essa vacina que vocês estão fazendo?

- Tomás, o que nós pegamos de você também foi recolhido de muitas pessoas. Tem dois dias que todo esse material foi enviado para fora do país. Não coletamos essas coisas para fazer uma vacina e sim para...

Max foi interrompido pelo barulho ensurdecedor de algo que parecia vir dos portões de entrada do prédio. Gritos e tiros, muitos tiros.

- Doutor, busque segurança para o senhor! – Falou já sacando sua pistola do coldre – Eu acho que os desgraçados conseguiram entrar...

*****

Eis que um laboratório, escondido em algum lugar remoto do planeta, criou um organismo microscópico extremamente agressivo e letal a todas as formas de vida. Em algum momento seus criadores perderam o controle sobre sua criação. Em pouco tempo este começou sua jornada destrutiva. Contra ele não havia defesa possível. Descobriu-se que, em uns poucos anos, a Terra inteira se transformaria em uma bola sem vida circulando em torno do Sol.

Em meio ao caos que se instalou em todo o mundo, com profetas messiânicos em cada esquina pregando uma salvação impossível e grupos armados lutando entre si para impor uma ordem que jamais haveria, eis que surgiu uma ideia que poderia ajudar a espécie humana a continuar a sua existência.

Não era a salvação para o planeta e nem para aqueles que nele viviam. Para estes o fim era inevitável. A ideia era simples, mas com possibilidades muito remotas de vir a dar certo. E se por um acaso tivesse sucesso seus mentores jamais saberiam disso.

Antes que a existência humana chegasse ao fim foram reunidos os poucos recursos intelectuais e tecnológicos que restavam. Um último projeto humano foi encaminhado. Não haveria livros ou historiadores para descrever e analisar aquela que seria a última grande aventura humana.

Minúsculas capsulas foram construídas e lançadas ao espaço. Em cada uma delas foi colocado o genoma humano. A sequência de DNA da raça humana viajando pelo espaço sideral na esperança de um dia semear a vida em algum planeta distante. 23 pares cromossômicos, acondicionados com o máximo de segurança, em pequenos casulos singrando a imensidão do universo. Uns poucos grãos de areia em uma praia gigantesca.

*****

Ele era baixo e atarracado, seus membros superiores e inferiores exibiam músculos bem definidos, as cicatrizes no seu peito eram um sinal das muitas batalhas pela sobrevivência. Seus sentidos vigiavam o ambiente ao redor. Em suas mãos um longo e pesado osso de alguma criatura era sua única arma contra os predadores da região. Por um breve momento seus olhos pousam sobre sua fêmea e seus filhotes que dormem enroscados uns aos outros.

O cansaço percorre seu corpo. Daqui há pouco a luz do dia irá chegar. Ele contempla as três luas pálidas acima de sua cabeça. Não consegue entender por que aquelas coisas ficam um tempo no céu e depois vão embora cedendo lugar para uma outra muito mais brilhante, mesmo assim ele acha aquilo muito bonito. Seus olhos possuem cores diferentes, um verde e outro azul, mas ele nunca saberá disso, pois jamais em toda a sua existência verá o seu próprio rosto.

O dia chegou trazendo com ele a necessidade de ir atrás de alimento. Sua fêmea e seus filhotes estão acordados. É hora de caçar.

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 05/06/2024
Reeditado em 05/06/2024
Código do texto: T8079100
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