O SOPRO DO VENTO CRIADOR

Levou 2 horas para chegar na cidade. Se não precisasse de remédios não teria ido.

O cenário ali era o mesmo das cidades e povoados da região, carros abandonados, enferrujados, lixo e mato pelas ruas desertas. Na entrada do supermercado, cacos de vidros espalhados pelo chão, embalagens rasgadas, restos de alimentos. As prateleiras estavam vazias. Havia escuridão nos fundos.

Entrou na farmácia. Motivo da viagem.

Os armários estavam quase vazios. Pegou o que restava, analgésicos para dor de cabeça, antibióticos, soro para picada de

cobra, remédio para males do estômago. E lenços umedecidos, que era melhor que papel higiênico, além do mais, ocupava menos espaço na mochila.

Saindo, resolveu entrar numa casa elegante, logo adiante, também abandonada. Sem pedir licença, empurrou a porta, entrou.

No vestíbulo, encostado na parede, estava um relógio de coluna. As engrenagens congeladas no tempo. Quando os ponteiros pararam, faltavam 3 minutos para a meia-noite, ou talvez, meio-dia. De algum dia, dias atrás.

Para ele as horas já não tinham mais importância. Vivia agora sem compromisso, sem hora marcada. Sem pressa. Poltronas de couro, sofá Luiz XV, mesa de mogno, talheres de prata, pinturas, estatuetas. Tudo coberto por uma fina camada de pó.

Na cozinha, a despensa estava vazia, apenas com restos de farelo embolorado, resquícios de saques.

Algo corriqueiro naqueles tempos.

Na geladeira, um pé de alface murcho, um pote de massa de tomate mofado e uma garrafa de água mineral. Pegou a garrafa, colocou na mochila.

Subiu ao dormitório. Ali estavam duas pessoas O que restava delas. Com olhos frios, observou a cena.

O homem havia matado a mulher. Talvez ela estivesse doente, acamada e ele abreviou o sofrimento dela. Depois ele se suicidou. Se sentou na cadeira de balanço e deu um tiro na cabeça. Atitude extrema de quem não tinha mais esperança de nada. Nada mais importou para aquele homem. Apenas a fuga da realidade aterradora.

O projetil havia destroçado a mandíbula. Um pedaço caiu, quando não havia mais nada para sustentá-lo. Ficou pendurado na camisa. O revólver tombado sobre a barriga. Usava um macacão de brim, camisa xadrez e botas.

Se interessou mais pelas botas. Estavam em melhores condições do que as suas velhas sandálias de couro cru. Quando pegou o calçado, a perna do esqueleto se desprendeu. Caiu no assoalho com um tilintar de ossos.

Colocando os sapatos, andou de um lado para outro, ensaiando um passo de dança. Ficou satisfeito.

Sobre a cômoda, estava uma Bíblia aberta. No Livro de Lucas, uma passagem sublinhada com um traço vermelho; capítulo 21, versículos 10/11; “Nação se levantará contra nação, reino contra reino. E haverá grandes terremotos, e num lugar após outro, pestilência e escassez de víveres”.

O morador apenas confirmou a profecia e depois deu cabo da vida. Preferiu uma morte rápida. Ao lado do Livro sagrado, um porta-joias. Tirou a tampa, examinou o conteúdo. Anéis, pulseiras, brincos, um colar de pérolas. A mãe sempre quis ter um colar de pérolas. Pegou o colar, deixou o resto.

Em seguida, saiu da casa. Parou em frente a um prédio antigo, do século 19. Lá estava a data da construção, no alto,1874. Um costume dos tempos passados.

Porta de madeira de carvalho, com duas folhas de abrir. Janelas venezianas. Telhas romanas. Acima da entrada, a placa de metal revestida de esmalte, anunciava; Biblioteca Pública do Município de Córrego Verde.

Uma biblioteca! Oportunidade para ler novos livros, pensou. Colocou a mão na velha maçaneta, fez pressão para baixo e para frente. A porta abriu uns 40 centímetros. Emperrou no assoalho da madeira empenada.

O vão era pequeno, mas conseguiu passar. Se fosse mais gordo, não conseguiria.

Entrou, sentindo o cheiro de mofo. Estava escuro. Tentou abrir as janelas, mas não conseguiu. As ferragens estavam endurecidas pela falta de uso e ferrugem. Não carregava lanterna, mas tinha uma caixa de fósforos. Acendeu um palito.

Prateleiras cheias de livros encostadas nas paredes dividiam a sala em dois espaços. Uma mesa comprida, cadeiras, além de um balcão e porta-arquivo gaveteiro. Foi andando ao longo das estantes. Lendo os títulos, à luz trêmula. A chama apagou-se. Acendeu outro palito.

Ali estavam, João Guimarães Rosa, Sagarana. Lygia Fagundes, Porão e Sobrado. Auta de Souza, Horto. James Joyce, Ulisses. Johann Wolfgang Goethe, Fausto e muitos outros criadores de mundos e personagens.

Viu a claridade das chamas antes de sentir o cheiro da fumaça. Jornais velhos caídos no chão estavam pegando fogo. Os palitos apagados que ele jogava fora! Ainda tinha brasa.

Xingou-se. Como sou estúpido! Deu um pontapé no jornal em chamas. Fagulhas se espalharam, rutilantes. Revistas velhas arderam na prateleira de baixo. A madeira estalou, queimando, parecia impregnada de óleo. O fogo se espalhou rapidamente,

Não conseguiu apagar o incêndio. A fumaça começou a sufocar. Antes de sair, precisava sair, pegou dois livros que estavam sobre a mesa, meteu na mochila. Correu, se afastando, rápido.

Parou a uma certa distância, olhando para trás. O prédio foi sendo consumido pelo fogo. Pelo menos salvou dois livros. Resolvendo cortar caminho, deixou a estrada, seguiu pelo campo. Guiou-se pela bússola.

Chegou a uma charneca. Ali estava um velho carvalho, em sua morte lenta. Devia ter uns 400 anos. Era pequeno ainda, quando deve ter assistido à passagem da bandeira de Antonio Raposo Tavares passando por aquele mesmo caminho. Ou a expedição do corsário Antony Knivet.

Dos 50 metros de altura, possuía só a metade. Fora abatido por um raio. O fogo eliminou sua seiva, secou seu cerne. Mas a árvore não se entregava tão facilmente. Rodeado por um brejo de ciscos, seixos e liquens, jazia moribundo. Alguns galhos ainda com folhas verdes. Talvez durasse mais 400 anos antes de se tornar completamente um tronco seco, carcomido pelos insetos. Deixando a charneca, atravessou um bosque.

A folhagem se modificava com o fim do verão. Faias, bétulas, urzes, plátanos, ganhavam novas cores. O verde das folhas era substituído pelo amarelo, vermelho, laranja, dourado e marrom, antes de caírem no chão.

A luz do sol diminuiu. As folhagens começaram a se agitar. Para o sul, o céu estava negro. Uma tempestade estava chegando. Caminhou rápido, descendo para o vale. Avistou ao longe, a torre de energia eólica. As pás imóveis, pois o vento lá, ainda era apenas uma brisa fraca, leve como um toque de pluma.

Construiu a casa no meio do parque de diversões. Limpava e lubrificava as engrenagens da roda-gigante, do carrossel, dos carrinhos da montanha-russa. Quando criança, desejou ter um parque de diversões só para ele. Agora tinha. Mas nada funcionava, faltava eletricidade. Não havia vento para as pás da torre girarem, gerar energia elétrica.

Mas agora, com a mudança de estação, chegavam os ventos do sul. Com a esperança de ver o parque funcionando, entrou em casa.

No meio da sala tinha uma roda.

Tinha uma roda no meio da sala.

Com quase dois metros de circunferência. Sobressaía do assoalho através de uma cavidade. Destaca-se estranha no ambiente doméstico. Não era objeto de decoração, de ornamento, tampouco um adorno de arquitetura. Uma roda dentada que tinha por função, dar movimento. Uma engrenagem. Mecanismo que impulsiona um universo.

As primeiras criações do ser humano sobre a face da terra, surgiram de acordo com suas necessidades. A primeira obra construtiva do Homem, no sentido de arquitetura, foi uma trama de galhos e folhas que poderia ser chamada de porta para fechar a caverna onde se abrigava com sua família.

Utilitários outros foram criados conforme suas necessidades. Quando tiveram a ideia de enterrar seus mortos, construíram túmulos. Túmulos simples, túmulos- templos, mausoléus, criptas. O alicerce é o princípio da estrutura, a base fincada no chão. Criaram os tijolos, triangular, quadrado, retangular, de barro misturado com palha, cosido ao fogo.

Nasceram as construções megalíticas de pedras, as pirâmides, os palácios, as muralhas, os castelos, os estádios, as termas, os aquedutos, as pontes e torres. Formaram-se a categoria dos estilos, a beleza da estética. Surgiram as formas, as proporções, os planos. O equilíbrio dos arcos, das abóbodas, das colunas, das sacadas. Veio a abside, o átrio, a nave, a arcada, o capitel, os frontões e as colunas.

Mas nada se comparava àquela roda dentada no meio da sala.

Não para ele.

Há quatro mil anos, entre o Tigre e o Eufrates, em Ur, se erguia o templo de Nannar, a deusa da Lua. Certa manhã, quando

os sacerdotes encerravam os ofícios daquela noite, ouviram no silencio do deserto, um chiado intermitente. Ficaram espantados ao verem um homem à frente de dois bois puxando uma caixa de madeira com dois “pés” redondos. Era uma carreta de boi, transportando bilhas, ânforas, vasos e potes de barro.

Uma ideia brilhante, concordaram os sacerdotes. O homem pegou duas tábuas, arredondou um dos lados em cada uma e depois juntou as duas pelo lado reto. Fez um encaixe para o eixo, e o eixo sobressaindo, foi preso com uma cavilha enfiada num furo. Pronto, estava criada a roda para carroça. No princípio uma engrenagem desengonçada, em giro lento pelo atrito do eixo. Se olhassem para a roda, sem a caixa retangular de madeira, os sacerdotes não saberiam qual a utilidade dela. Claro, a história dos sacerdotes de Ur, é uma suposição, ficção. Não há registros de quem inventou a roda.

─ Mãe, cheguei.− disse, logo que entrou em casa. Como de costume, a mãe estava sentada na cadeira, Pingo, o cão, deitado ao lado.

Deixou a mochila sobre a mesa. Tirou o colar do bolso e colocou no pescoço da mãe.

─ Olhe o que eu trouxe para a senhora.

Deu um passo para trás para contemplá-la.

─ Tá bunita!

Um trovão soou ao longe. O vento chegou, soprou as hélices. A lâmpada pendurada no forro piscou três vezes, depois a luz se estabilizou, a lâmpada permaneceu acesa. Naquele dia, às cinco horas da tarde, as hélices da torre eólica começaram a girar e o parque ganhou vida.

Luzes coloridas se acenderam. A roda-gigante começou a rodar, os carrinhos da montanha-russa se movimentaram, a princípio, devagarinho. O carrossel, o trenzinho, o chapéu mexicano.

A roda no meio da sala começou a girar lentamente. O eixo, com rolamento de esferas de aço, silencioso. Os dentes da roda se encaixavam em dentes de outras rodas menores embaixo do assoalho, colocavam em marcha, engrenagens, mecanismos semelhantes. Através de dentes helicoidais, hipoides, espirais, parafusos sem-fim, cremalheiras.

Pessoas surgiram no parque, deslizando sobre seus carris, de um lado para outro, se cruzavam sem se esbarrar, em perfeita sincronia.

A mãe se levantou da cadeira, andou suavemente pelo trilho. Foi na pia, fez uma volta, dirigiu-se ao fogão, mais uma volta, e retornou à cadeira. Pingo rodeou a mesa, foi até a porta, e voltou ao seu lugar. Os dois repetiram o trajeto. Deslizando sem ruído.

O homem saiu para o parque e andou em todos os brinquedos. Rindo como uma criança. Já era noite quando retornou à casa. Deu uma olhada ao redor e sorriu, satisfeito com sua criação. Tudo funcionava perfeitamente.

Colocou lenha na lareira. Estava preparado para quando o inverno chegasse. Depois de guardar os remédios, pegou os livros que havia trazido. Se sentou numa cadeira para ler.

Um dos volumes tinha por título, Os Pássaros, de Daphne Du Maurier. O outro era O Paraiso Perdido, de John Milton.

Começou a ler.

"Do Homem primeiro canta, empírea Musa

A rebeldia- e o fruto, que, vedado

Com seu mortal sabor nos trouxe ao Mundo

A morte e todo mal na perda do Éden

Até que o Homem maior pôde remir-nos

E a dita celestial dar-nos de novo. (...)

Antônio Stegues
Enviado por Antônio Stegues em 30/05/2024
Código do texto: T8075030
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