UMA VOZ DISTANTE

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Altamira. Ano de 2023

Depois do divórcio, Miguel pegou suas economias e comprou uma casa no subúrbio. Uma construção antiga, mas bem conservada, com dois quartos, cozinha, sala, área de serviço e uma ampla garagem. A porta do porão estava trancada, o corretor de imóveis alegou que havia perdido a chave. Na verdade, o antigo morador havia se enforcado lá embaixo e o vendedor achou melhor não revelar o fato.

Certo dia, Miguel ouviu um telefone tocar. A princípio pensou que era no vizinho, depois descobriu que vinha do porão. Ele resolver arrombar a porta. Pegou um martelo na caixa de ferramentas e óculos de proteção, começou a destruir a fechadura. Ao abrir, descortinou uma escada sumindo na escuridão abaixo. Encontrou o interruptor de luz, mas a lâmpada não acendeu. Ele foi até o armário da cozinha, pegou uma lanterna de mão e desceu.

Descobriu um cômodo espaçoso, com as paredes calafetadas para evitar a umidade do exterior. Tinha alguns caixas de papelão e um sofá velho. Duas das caixas continham revistas dos anos 60/70, a terceira jornais antigos e um telefone Motorola sem fio, com antena. Miguel pegou a caixa e subiu. Limpou o pó do aparelho e o deixou sobre a mesa. Estava examinando os jornais, quando o telefone tocou. Após reanimar-se do susto, pegou-o e falou:

— Alô?

— Tio Edu! Eu preciso ir aí falar com o senhor. Não aguento ficar mais nessa casa.

A voz parecia ser de uma adolescente.

— Não sou seu tio. Meu nome é Miguel Rosenberg, sou advogado, e não conheço o Edu. Encontrei esse telefone no porão da minha casa. Como é o seu nome?

— Bruna Santelmo.

— O que está acontecendo?

— Meu padrasto bate em minha mãe e em mim.

— Você não tem outros parentes, além do seu tio?

— Não Só o tio Edu.

— Você precisa ir na polícia, ou na delegacia da criança e adolescente.

— Não adianta.

— Por que não?

— Ele é da polícia. Anda armado e tem distintivo. O senhor pode achar o meu tio?

— Claro. Como é todo o nome dele?

— Eduardo Maldonado, ele mora na rua São Francisco, número 198.

— Esse é o endereço onde eu moro. O seu tio não mora mais aqui.

— O senhor pode encontrar ele?

— Vou ter que ver com a imobiliária. E o endereço aí onde você mora?

— Rua do Riacho, número 310.

— Ok, vou ver se encontro teu tio, depois entro em contato contigo.

— Não! É melhor eu ligar quando meu padrasto não estiver em casa.

— Está bem.

***

Altamira. Ano de 1997-

Bruna desligou o telefone e o escondeu debaixo do colchão. Jonas era policial e os policiais nada fariam, como das outras vezes. Agora que vendia maconha para Jonas, para não levar uma surra, era melhor não envolver a polícia. Já havia convidado a mãe para fugir, mas ela não aceitou a ideia. Disse que Jonas Iria atrás delas, que era melhor não o contrariar, assim, viveriam em paz. Na verdade, Bruna achava que a mãe ainda gostava do maldito.

***

Ano de 2023-

Miguel telefonou para Gustavo, o corretor de imóveis, perguntando se ele sabia para onde o antigo dono da casa tinha se mudado. Gustavo foi obrigado a contar a história.

Edu Maldonado morreu em 1996. Ele descobriu que a mulher tinha um amante, matou os dois e depois se enforcou.

Miguel chegou à conclusão de que Bruna não sabia que o tio havia morrido. Mas, alguma coisa estava errada. Edu morreu há mais de 20 anos! Teria que ir à casa de Bruna, na rua do Riacho 310 tirar aquela dúvida, descobrir também, se aquele telefonema não era um trote. Chegando na rua, encontrou o número 310, mas a casa estava abandonada. Só restavam as paredes e o telhado, o pátio tomado pelo mato. Miguel foi conversar com o vizinho mais próximo.

— O senhor conheceu os moradores daquela casa abandonada?

— Conheci. O Jonas, dona Maria, a mulher dele e a filha, Bruna.

— Sabe onde estão morando?

— A dona Maria e a Bruna morreram. O Jonas chegou em casa embriagado, discutiu com a mulher e acabou matando as duas.

— Quando foi isso?

— 1997, se não me engano.

Miguel agradeceu e retornou ao carro. Enquanto voltava para casa, ficou pensando naquela situação. Talvez outra garota se passando por Bruna resolveu fazer um trote, uma brincadeira. De qualquer forma, aquelas datas ficaram em sua memória. No dia seguinte resolveu ir na biblioteca pública pesquisar jornais antigos. Descobriu uma reportagem que noticiava o suicídio do advogado Eduardo Maldonado em 1996. O endereço dele era a casa que Miguel comprou. Isso explica que o telefone no porão era de Edu Maldonado. Continuando a pesquisa, encontrou também, a reportagem sobre o assassinato de Maria e Bruna, por Jonas Coutinho. Ele foi preso, julgado e condenado a 30 anos de prisão.

Alguns dias depois, Miguel já tinha decidido esquecer aquela história e até pensou em colocar o telefone no lixo, quando ele tocou.

— Alô?

— O senhor encontrou meu tio?

— Olha, garota, acho melhor você parar com essa brincadeira. Eduardo Maldonado morreu em 1996 e a Bruna e a mãe dela, morreram em 1997, Jonas Coutinho matou as duas. Para de telefonar para cá e dizer que é a Bruna.

Houve alguns segundos de silêncio na linha, até que a garota voltou a falar.

— O senhor conhece meu padrasto?

— Não, por que?

— Como é que o senhor sabe o nome dele, se eu não falei?

— Porque está no jornal.

— Que jornal?

— Gazeta do Vale do dia 26 de outubro de 1997.

— Isso é mentira do senhor. Hoje é 20 de outubro de 1997.

Foi a vez de Miguel fazer uma pausa. Será que a garota está falando a verdade? Há uma maneira de saber.

— Bruna, preste atenção. Acho que nós estamos em anos diferentes. Você está em 1997 e eu em 2023. Como isso está acontecendo, não tenho ideia. Para nós sabermos realmente que é isso, você tem que fazer o seguinte. Escreva algo num papel e esconda em algum lugar que só eu possa encontrar no futuro, 26 anos depois, entendeu?

— Qualquer lugar aqui do bairro?

— Isso.

— Como é que eu vou saber se o senhor encontrou 26 anos depois? Vou ter que esperar todo esse tempo?

— Não. Se você colocar, eu vou encontrar agora em 202 porque você colocou em 1997, entendeu?

— Tá bom, eu vou escrever. Conhece a Ponte do Sobral? Ela existe ainda nesse ano aí?

— Sim. Existe, sei onde é.

— Vou colocar o papel dentro de um buraco debaixo da ponte, no pilar do lado direito. É o lugar que eu fico pra vender maconha.

— Não deixe ninguém ver.

— Com certeza não. Eu ligo mais tarde.

Logo que ela desligou, Miguel foi ao local. Pilar da direita. Teve que subir o barranco e se abaixar para procurar no vão. Passou a mão em todas as direções e finalmente encontrou uma garrafa de refrigerante tampada com rolha e lacrada com cera de abelha. Dentro havia um rolinho de papel. De volta a casa, Miguel tirou a tampa da garrafa, puxou o papel com uma pinça e desenrolou com cuidado sobre a mesa. Em letras miúdas estava escrito;

“Se me ponho a cismar em outras eras

Em que ri e cantei, em que era querida,

Parece-me que foi noutras esferas,

Parece-me que foi numa outra vida”.

Era um poema. Quando Bruna voltou a telefonar, ele leu o bilhete para confirmar que tinha encontrado a mensagem.

— É uma poesia de Florbela Espanca. Eu vou ver se a garrafa continua lá. Volto depois.- disse a garota e desligou.

***

Ano 1997-

Bruna desligou e correu ao local onde havia deixado a garrafa. Verificou que ainda estava ali, intacta e chegou à conclusão que Miguel falava a verdade, ele estava no futuro. Deixou a garrafa no lugar e voltou para casa. Não estava preocupada no porquê aquilo acontecia, mas sim, no que Miguel disse, que ela e a mãe seriam mortas por Jonas, dali a poucos dias.

***

Ano 2023-

Miguel raciocinava sobre aquele fato. Em 1997 ele tinha 12 anos, foi o ano que sua mãe morreu atropelada. Ele estava no colégio quando recebeu a notícia. Foi no mês de dezembro.

Bruna havia dito que estava no dia 20 de outubro de 1997. Selma morreu em dezembro, dia 5. Miguel pensou que, talvez a garota pudesse salvar Selma. Quando Bruna voltou a telefonar no dia seguinte, ele falou:

— Vocês têm que sair de casa e se esconder de Jonas.

— Não temos nenhum lugar para ir. Os vizinhos não vão nos ajudar.

— Minha mãe mora na zona Norte, o nome dela é Selma Rosenberg. Vocês poderiam se esconder lá. Ela vai morrer atropelada em dezembro. Você poderia impedir que ela saia de casa. Bruna, você poderia salvar minha mãe?

— É claro! Mas, será que ela vai acreditar em mim?

— Ela acredita em profecias, premonições, horóscopos, essas coisas. Você poderia dize que teve uma visão, que ela vai morrer no dia 5 de dezembro. Diz que recebeu uma mensagem do avô dela, Sebastião Camargo Rosenberg

— E como farei para ela acreditar em mim?

— A mãe perdeu um anel de estimação fazia tempo e não encontrou mais. Só encontrei depois do falecimento dela, quando desmanchamos a cama. Diga que o anel está numa fresta atrás da cama dela.

***

Ano de 1997-

Bruna aproveitou que Jonas estava trabalhando e a mãe capinando na horta, para ir à casa de Selma. Talvez se ganhasse a confiança dela, Selma ajudaria a convencer a mãe abandonar Jonas. Quando bateu na porta da casa, quem abriu foi um garoto que ela supôs fosse Miguel ainda adolescente.

— Eu queria falar com dona Selma. Ela está?

— Sim. Entra.

Miguel foi até o corredor e chamou a mãe dele. Selma surgiu limpando as mãos no avental.

— Dona Selma, eu sou sensitiva, recebo mensagens de espíritos. A senhora conhece alguém chamado Sebastião Camargo?

— Sim, é meu avô. Ele morreu faz uns 8 anos.

— Recebi uma mensagem dele, recomendando para a senhora não sair de casa no dia 5 de dezembro. Se sair, vai morrer atropelada.

Bruna percebeu que a mulher não deu muita importância às suas palavras. Talvez não acreditasse e a considerava doente mental, ou algo parecido.

— Olha, se você quer dinheiro em troca da mensagem, pode...

— Não! Não vou cobrar nada. Apenas ajudo as pessoas. Seu avô me deu uma outra mensagem, ele disse que o anel que a senhora perdeu está em seu quarto, numa fresta do assoalho debaixo da cama.

Selma fez uma expressão de espanto.

— Meu anel? Procuramos em todo lugar da casa e não o encontramos. Achei que tinha perdido na rua. Vou lá ver.

Selma foi para o quarto. Miguel perguntou:

— Tem alguma mensagem para mim?

— Seu avô disse que você vai ser advogado.

— Desde quando recebe mensagens de espírito?

— Desde os 9 anos.

Miguel percebeu que o pulso da mão esquerda dela, tinha uma mancha roxa, mas não disse nada.

Selma retornou, sorridente, exibindo o anel no dedo.

— Eu devo ter tirado por algum motivo que não lembro. Agora acredito no que você disse, pra eu não sair de casa dia 5 de dezembro.

— Para não ser atropelada.

— Tem alguma coisa que eu possa fazer por você?

— Gostaria que a senhora convencesse minha mãe a abandonar o meu padrasto. Ele bate nela e ela tem medo de sair de casa. Precisamos de um lugar para nos esconder.

— Por que não vai à polícia?

— Jonas é policial e a polícia parece que tem medo dele, ou são cumplices. Não fazem nada para nos ajudar.

— Olha, bem que eu gostaria de ajudar. Talvez eu possa conversar com um promotor de justiça, amigo meu. Posso marcar um encontro.

De repente soaram batidas na porta.

***

Ano 2023-

Miguel estava tomando café, esperando que o telefone tocasse, quando bateram na porta. Abrindo, deparou-se com um homem idoso, mas com aparência de alguém que fazia exercícios regularmente. Era troncudo, careca, com barba rala no rosto de expressão dura.

— Edu Maldonado?

— Não, meu nome é Miguel Rosenberg.

O homem exibiu um sorriso enigmático.

— Não está me reconhecendo?

— Sinceramente, não me lembro do senhor.

— Sou um velho amigo. Não me convida para entrar?

— Entre, por favor.

O homem entrou, mas permaneceu de pé, recusando sentar-se. Ele encarou Miguel.

— Sou Jonas Coutinho. Acabei de sair da prisão.

***

Ano de 1997-

Quando Selma abriu a porta, deparou-se com um homem desconhecido. Num gesto brusco, ele empurrou Selma, a porta e entrou. Bruna soltou um grito. Era Jonas Coutinho. Ela correu para o outro lado da sala.

— Vamos pra casa, peste!

— Não vou. O senhor não é meu pai.

Selma tentou intervir.

— O senhor não pode bater nela!

Jonas a empurrou e Selma acabou caindo. Miguel foi ajudar a mãe, enquanto Bruna se atirava contra Jonas, dando socos no peito dele liberando todo o ódio que sentia pelo padrasto. Jonas a agarrou pelo pescoço e acabaram os dois caindo sobre o sofá. .

***

Ano de 2023-

— Fiquei 15 anos preso por tua causa. Jurei que, quando saísse, iria me vingar.

Miguel ficou surpreso, não se lembrava de ter provocado a prisão de Jonas, mas ele, certamente, mudou o curso da história quando pediu para Bruna procurar sua mãe.

***

Ano de 1997-

Jonas estava estrangulando Bruna, e Miguel, apesar dos seus 12 anos, tentou tirar o homem de sobre a garota. Nisso, outra pessoa entrou na sala, Edu Maldonado pegou uma jarra de sobre a cômoda e a quebrou na cabeça de Jonas.

***

Ano de 2023-

Jonas exibiu uma expressão de ódio, puxou uma longa faca da cintura e avançou contra Miguel. Apesar da idade, o homem ainda possuía o vigor e a agilidade da juventude. Miguel ficou encurralado num canto da sala. Julgou que seria morto. Mas de repente alguém surgiu da porta do porão. Um homem de cabelos revoltos, expressão triste, mas determinada. Ele estava com uma jarra nas mãos, avançou por trás de Jonas e quebrou-a na cabeça dele. Jonas cambaleou, Edu Maldonado, era ele, deu-lhe dois socos no rosto e Jonas acabou desmaiando. Edu olhou para Miguel com um meio sorriso e Miguel adivinhou seus pensamentos. Edu desistiria de se suicidar e se preocuparia em cuidar da irmã e da sobrinha. Salvaria as duas das mãos de Jonas. Ele saiu pela porta e Miguel o viu sumir, como um fantasma que era, no meio da rua.

Após a aparição e o sumiço de Edu, Miguel telefonou para a polícia, relatando que sua casa foi invadida por um assaltante. Jonas foi preso novamente, desta vez num ala psiquiátrica de onde nunca mais saiu.

Uma nova realidade foi criada. Edu abandonou a esposa adultera, desistiu do suicídio e se preocupou em cuidar da irmã, Maria e da sobrinha, Bruna e denunciou Jonas ao Ministério Público. Jonas Coutinho foi preso, acusado de corrupção de menores, lesões corporais e tráfico de drogas. Selma morreu de causas naturais alguns anos depois. No ano de 2023, após a polícia levar Jonas, Miguel nunca mais recebeu telefonemas de Bruna naquele velho aparelho Motorola.

Até que um dia que alguém bateu na porta. Era uma mulher de meia idade, quatro anos mais velha que ele.

— Miguel Rosenberg, suponho.

Disse ela com um sorriso amistoso.

— Sou Bruna Santelmo.

Fim

1923-

Antônio Stegues
Enviado por Antônio Stegues em 28/04/2024
Código do texto: T8051774
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