MÃE E FILHO
Está escuro. Bem escuro. Aos poucos, a claridade começa a aparecer. O fundo é ainda impreciso. Vem gradualmente. A cena em pouco tempo se oferece em toda à sua plenitude. Observa-se a silhueta de um menino sentado num banco defronte a uma ampla janela retangular. Ele deve ter sete, oito anos. Está reclinado à frente. Parece desanimado, triste. A silhueta dele, de costas, contrasta intensamente contra a janela. Tanto é que não dá para discernir as suas roupas.
A enorme janela retangular cobre quase toda a parede da sala, sem cortinas, límpida, toda só de um vidro reluzente. Ela mostra a frota de carros flutuantes voando em todas as direções lá fora, mas o fazem de forma ordenada e harmoniosa. Ao fundo se pode ver o conjunto compacto de arranha-céus de cores vibrantes contra o pôr do sol.
O menino parece apenas olhar o voejar dos veículos, assim displicente, sem interesse. Dá a impressão de, ao fazê-lo, querer se distrair dos pensamentos preocupantes que lhe atormentam de algum modo.
Em seguida, outra silhueta aparece. Uma mulher surge em cena e anda calmamente até aonde o garoto está sentado. Ela se acomoda ao seu lado, de costas também, a fim de apreciar a paisagem em movimento. Depois de algum tempo, pergunta para o menino:
— O que foi, meu filho? Por que toda esta tristeza?
— Humm.. é...
— Pode falar, querido. Qual é o problema?
— Mãe, o que é alma?
— Hum... pergunta interessante. Há muitas ideias e concepções sobre a alma. É um pouquinho difícil de explicar de uma maneira que você possa entender. Mas podemos tentar. Bem, o corpo físico tem cinco sentidos, certo?
— Sim. Os cinco sentidos são a visão, audição, paladar, olfato e tato.
— Isso mesmo! Os sentidos se conectam com o mundo ao nosso redor. A alma é a essência dos nossos pensamentos, nossas afeições, a maneira como vemos o mundo e as pessoas. Tudo é captado pelos cinco sentidos. É um conjunto de informações e sentimentos que nos fazem ser o que somos.
— Mas, mãe, a alma é um espírito que nunca morre, não é?
— Espírito e alma estão intimamente conectados, sim. Você tem razão. Muitas religiões não fazem distinção sobre isso.
— Quer dizer que são a mesma coisa?
— Do ponto de vista religioso poderia se dizer que sim, querido.
— Então, a alma é igual a um fantasma, né? Quando a pessoa morre, o corpo fica transparente e a gente não vê. Daí se a gente é bonzinho, vai para o céu. Se não é, vai para o inferno.
— Quem te falou isso?
— Os meus amigos da escola.
— E você está preocupado porque tem medo de ir para o inferno? Que bobagem, meu querido. Você é um ótimo filho. Não faz nada de errado. Não precisa se...
— Não tô preocupado comigo, mãe.
— Então você está preocupado e triste com o quê?
— Estou preocupado com a senhora!
— Comigo? Por quê?
— A família do papai não gosta da senhora. Eles nunca vêm aqui. A vovó passa até mal quando eu falo bem de você. Meus amigos dizem que não é certo o que o papai fez. Meus irmãos mais velhos também não. Eu não entendo. A senhora é uma pessoa boa.
— É claro que sou uma pessoa boa. Sou sua mãe! O teu pai não fez nada de errado para sermos discriminados desta maneira. Não se preocupe, meu lindo. Logo eles irão aceitar esta situação. Dê tempo ao tempo e você vai ver como tudo vai voltar ao normal.
— Será? Não tenho tanta certeza, não. Mas eu sei bem porque eles não gostam da senhora.
— Meu filho, você quer falar, mesmo, sobre isso?
— Quero. Vai me ajudar.
— Então, tá. Por que você acha que eles não gostam de mim?
— É porque a senhora não tem alma!
A silhueta da mulher se tenciona um pouco, rosto voltado e inclinado para baixo, na direção do menino. Ele a encara diretamente nos olhos. O silêncio se manifesta entre os dois por alguns segundos. Como responder àquela criança ansiosa e preocupada? Ela se demora a pensar. Então, decide abordar a questão da maneira mais clara possível a fim de acabar, ou ao menos amenizar, as aflições dele.
— Tenho alma, sim. Como não? Claro que tenho! Todas as minhas emoções, memórias, percepções, preferências e gostos, ou seja, o conjunto de informações cognitivas e sensoriais que me constituem enquanto alma estão aqui dentro de mim. Não importa se este conjunto de informações não esteja mais em um corpo de carne e ossos. Esta carcaça sofisticada de titânio, à semelhança de mim, agora reúne a pessoa que eu sou. Portanto, sou a sua mãe e nada vai mudar isso! Entendeu?
— Sim. Entendi.
— As pessoas têm inveja do teu pai. Ele é um dos maiores cientistas deste século. Porém é um homem carente. Ele me ama. Não poderia viver sem mim.
— Mas a senhora morreu, não morreu?
— Não morri. Fui transferida.
— Ahhh, quer dizer que a senhora ainda pode ir para o céu?
— É esta a questão que te preocupa, meu filho?
— Sim. Quando você um dia morrer de verdade, podemos nos encontrar lá. Eu te amo, mãe. Não posso ficar sem a senhora também.
— Não se preocupe, meu lindo. Vou ficar sempre com você. Aqui ou no céu. Agora, não pense mais nisso, ouviu?
— E se a vovó e os meus irmãos mais velhos não aceitarem a senhora como eu aceito? Não quero ver a senhora sofrer sozinha neste apartamento.
— Eles vão aceitar com o tempo.
— Mas se não aceitarem?
A mulher se encolhe ligeiramente. Volta o rosto na direção da janela. Cai no silêncio. A cabeça treme de modo não natural. Parece confrontar-se consigo mesma. Ele fica à espera da resposta. O processamento é demorado porque ela pretende avaliar toda a angústia do menino. O filho, sem dúvida, é a sua prioridade.
— Mãe?
Ele, infelizmente, insiste. A voz dela muda para um tom neutro, menos carinhoso.
— Bom... neste caso vou ser obrigado a exterminar todos eles. De modo algum vou permitir que qualquer pessoa, mesmo a sua avó ou irmãos, deixe você novamente neste estado.
Dito isso, a silhueta da mulher se levanta e se encaminha para o lugar de onde veio antes. O menino volta a olhar novamente o voejar dos carros na janela. A tristeza e a preocupação parecem pesar, agora, um pouco mais.