I.A. O reset
Um calor sufocante e interminável assolava a terra, era como se os vulcões todos se emergissem em erupções constantes e ininterruptas, pois os poucos raios solares que conseguiam romper as nuvens negras e espessas da atmosfera terrestre não eram suficientes para justificar tamanha quentura. O planeta tinha sido assolado pela devastação ambiental e climática e estava pagando um alto e terrível preço.
As cidades tornaram -se um amontoado de ruínas e o globo inteiro transfomado-se num deserto sem árvores. Apenas alguns ramos e detritos do que foram uma civilização em algum dia, existiam aqui e alí, fazendo da terra um ambiente hostil e pouco habitável.
O termo primitivo não era o mais correto para o momento, mas se comparado ao auge da humanidade, era o mais próximo do que tínhamos nos tornado.
Eu e minha companheira morávamos numa espécie de gruta, no sopé de um planalto onde, segundo os registros antigos, teria sido a floresta amazônica brasileira há cerca de cinco mil anos. O que sobrou de nós tinha se adaptado ao clima hostil dos últimos séculos e vinha buscando evoluir-se sistematicamente na tentativa de erguer o planeta a um ponto que ele próprio pudesse se recuperar por si só, mas fazíamos isso inconscientemente, pois também nossa raça havia sido tomada pela degradação.
Não tinha informações de quantos indivíduos da nossa espécie existia no mundo ou se apenas essa área era habitada, não conseguimos nos movimentar por muito tempo devido ao calor intenso, mas agora precisávamos partir, a caça por aqui já raleava e os brotos e cogumelos já não nasciam com abundância . Era preciso realmente deixar aquele lugar.
Havia pouco o que levar,apenas um par de lanças, feitas com pedaços de ferros e metais antigos , alguns trapos e as gamelas onde armazenavámos água que brotava do solo quente e arenoso.
Nossos corpos sem nenhuma coloração e pelos tinha desenvolvido uma espécie de proteção semelhante ao couro de alguma espécie de peixe já há muito extinta. Utilizamos como vestimenta alguns trapos remanescentes da nossa antiga civilização.
Era raro um indivíduo que se expressasse com palavras, comunicávamos através de grunhidos e gestos, apenas alguns indivíduos, como eu já nasciam com o mecanismo da fala devolvido, eram poucos que conseguiam se comunicar verbalmente. Como chegamos a esse estágio eu descobri recentemente,no entanto o que me assustava era em que ponto estávamos, se ainda regredindo ou evoluindo,nós, os seres humanos e o planeta junto com os restos que ele carregava.
Certo dia, decidido a não voltar de mãos vazias para casa depois de uma longa semana de caminhada, continuei a caçada por além do que estava acostumado a ir. Eu já tinha demorado tempo demais fora e um dia a mais ou a menos não faria diferença caso encontrasse comida suficiente. Caminhei por uma espécie de leito de um rio já extinto e segui por algumas horas vasculhando minuciosamente à procura de algumas pegadas de qualquer animal,ramos e folhagens ou que de comestíveis pudesse encontrar.
O meu sentido de localização impelia-me ao intuito de retornar para não me perder em meio aquele terreno arenoso, áspero e infértil. A ideia de voltar se expressava mais forte a cada passo dado para frente, quando uma pequena e longínqua ruína de alguma espécie de construção me alertou os sentidos.
Caminhei por cerca de uma hora em meio ao calor escaldante e cheguei por fim à base da construção. Era enorme, jamais tinha visto algo parecido ou imaginado estrutura assim. Demorei algum tempo até decidir entrar, provavelmente alguma espécie de animal pudesse habitar o lugar, no entanto não haviam pegadas ao redor,mas o silêncio me trouxe mais medo que coragem.
Os degraus da escadaria da entrada estavam cobertos por uma espécie de vegetação rala e seca, da mesma espécie que cobria toda a região.
Subi a escada com uma espécie de mau pressentimento nunca me acometido antes. Eu tinha o estranho hábito de contar as coisas e eram dezesseis pequenos degraus com cerca de vinte centímetros cada pequeno patamar que compunha a escadaria. Cheguei no topo da escada , onde havia uma porta com cerca de três metros de altura.Experimentei a maçaneta, a porta estava trancada, mas não havia nenhuma espécie de fechadura ou orifício para a introdução de qualquer tipo de chave. Era uma porta lisa, maciça , fabricada com um material extremamente denso e pesado. Vasculhei por todos lados, mas foi somente quando cheguei bem os olhos perto de sua superfície, senti uma luz rápida passar pelas minhas íris e a porta emitir um ruído de destravamento. Empurrei-a, agora confiante, e entrei. Eu tinha a péssima mania de contar as coisas, e os degraus que vi na escada que leva ao solo abaixo chegavam perto dos trezentos, embora a fraca luz que os iluminava pudessem me enganar.
Desci com desconfiança e os sentidos alertas, embora sentisse no meu íntimo que aquele lugar estava completamente vazio. Não havia pegadas, nem vestígios de nada. Nem sequer o vento entrara alí. Trezentos e doze degraus e mais uma porta à minha frente. Idêntica à da entrada. Desta vez empurrei-a com suavidade, mas com as mãos firmes e ela abriu-se como se já estivesse esperando meu toque. Senti o corpo estremecer. Uma tela gigante pregada à parede expunha imagens de uma terra habitável e extremamente diferente de tudo o que conhecia. Rios povoados por peixes e diversos animais, florestas densas e coloridas, cidades imensas e pessoas bem cuidadas eram detalhes que eu jamais imaginaria ver algum dia.
De repente as imagens cessaram, a tela parecia ter percebido minha presença.
Se você chegou até aqui, possui cem por cento do córtex humano necessário e a humanidade já está pronta novamente.
Eu empalideci, jamais tinha ouvido um timbre perfeito por toda a minha vida a não ser o meu próprio e os sons que chamava de voz,dos meus contemporâneos. Foi quando automaticamente todas as luzes se acenderam no mesmo instante mostrando a dimensão da sala em que me encontrava. No centro havia uma mesa pequena com um par de cadeiras e nos outros quatro cantos uma porta em cada parede.
Novamente uma série de imagens no telão surgiu com o intuito de chamar-me a atenção. E pelo áudio do aparelho eu podia ouvir a narração das ascensões e destruições humanas, suas conquistas e derrotas.
E me falou do início da decadência, quando o ser humano, gradativamente deixou de utilizar as funções neurais do cérebro o atrofiando sistematicamente ao delegar funções e ações aos computadores e robôs .
O gene foxp2, responsável pela organização cerebral capaz de criar palavras, frases, textos e organizar a fala,teve seu código alterado por estagnação e falta de atividade, atingindo também o neocórtex, capaz de controlar nossos discernimentos e instintos. Morreram as artes, poesia , invenções e criações de toda sorte. O ser humano transformou-se num reles primata ,incapaz de comandar sua própria criação.
Eu ouvia aquela narração no mais absoluto dos silêncios enquanto observava os componentes daquela máquina apagarem e acenderem luzes. Havia uma espécie de teclado com uma série de inscrições inteligíveis para mim ligados a ela através de uns pequenos cabos e orifícios que se encaixavam perfeitamente.
Ela tinha uma espécie de malignidade ou percepção que antevia nossas atitudes. Eu já estava impaciente com aquelas informações e por um instante detive minha ânsia de quebrá-la toda em milhares de pedaços minúsculos. Não estava disposto a continuar ouvindo a tragédia que nos trouxe até aqui.
A terra precisa de um novo tipo de ser humano, senhor de si mesmo, continuou. E para que isso ocorra preciso que me delete imediatamente.
Não entendi aquela expressão, mas me pareceu algo como um ‘ acabar com a vida dela’. Eu estava ali para isso.
Concordei assentindo com a cabeça para cima e em seguida para baixo num movimento suave.
Então um sem número de caracteres começou a se movimentar rapidamente em seu visor por um tempo que eu não soube contar. Pouco depois a tela se restabeleceu e uma luz vermelha acendeu num dos botões do teclado e ficou estática nele.
Pronto, disse ela, você tem certeza que deseja excluir o programa? Se sim aperte a tecla delete.
Desfechei o mais intenso dos meus socos naquele teclado,fazendo com que estilhaços dos componentes dele se espalhassem por todo o recinto, sujando a sala e calando a máquina. E ficamos eu e o silêncio, mas por um instante apenas, pois em poucos segundos todas as portas daquela sala se abriram simultaneamente, apresentando-me vários corredores escuros. Todas as luzes haviam se apagado e tudo ligado aquele equipamento pareceu desvencilhar-se dele.
A minha intuição fez-me primeiro recuar, mas a curiosidade impeliu-me para frente e prossegui por uma das aberturas.
Eram escadas que levavam ao subsolo mais profundo do que já me encontrava e neles contiam armazenadas em recipientes extremamente vedados toda espécie de sementes e em seus invólucros e nichos haviam gravados os mesmos tipos de caracteres que eu tinha visto na máquina, provavelmente aquilo fosse uma espécie de instrução, mas como iria descobrir aqueles dizeres só viria a saber anos mais tarde, pois eu tinha no meu subconsciente apenas uma espécie de correlação com números e formas geométricas, mas de letras e inscrições antigas eu não conhecia nada.
Havia muito a explorar naquela espécie de construção, que embora por fora parecesse em ruínas, por dentro se mantinha em ótima condições, pois suas paredes estavam perfeitas e protegidas por um material isolante térmico a livrar toda a construção do calor intenso.
Eu não podia deter-me mais por ali. Alguém me esperava lá fora e tinha de voltar e trazê-la para esse novo lar.
Cheguei em nossa moradia e Ella dormia . Não era um hábito comum, mas como me encontrara há muito tempo fora, não estranhei o fato . Aproximei-me lentamente e toquei-a no braço. Minha companheira abriu lentamente os olhos numa preguiça que lhe era incomum. Assentiu com o dedo polegar nos lábios com a me pedir silêncio e com uma das mãos fez-me tocar o seu ventre. Como eu não percebera a barriga saliente que aquele instante pulsava ao sentir o meu toque?
Vamos, precisamos partir, encontrei um lugar melhor para nós e o nosso bebê, eu disse falando pausadamente para ser entendido. Ella assentiu com a cabeça e os ombros e caminhamos lentamente o percurso feito antes por mim.
Dez anos mais tarde o clima da terra já dava sinais de um pequeno resfriamento que parecia ser progressivo. Ella tinha dado à luz nossa primeira filha Ava pouco tempo depois de fazermos a mudança. Uma criança incrível, que tinha nascido com o dom da fala. Nesse meio tempo, tentei por inúmeras vezes não desperdiçar as sementes dos cilos, mas nunca,uma sequer brotou na terra. Talvez não fosse o tempo ainda. Era preciso esperar mais tempo e somente a geração de Ava conseguisse plantar colher o fruto daquelas sementes.
Papai, chamou -me , com seus enormes olhos cor de mel. Descobri porque as sementes não germinam.
Eu a olhei, sem surpresa. Dela poderia esperar-se tudo.
É a falta de chuvas.
Aí eu me surpreendi. Como descobriste isso, criança?
Pelo meu computador.
E me mostrou uma pequena máquina escondida entre as mãos .
Ava - eu respirei fundo antes de prosseguir-. Não sei onde encontrou esse filhote de máquina, mas preciso que o destruam agora!
Não é possível, papai, sem ele não conseguiremos seguir adiante. O grande segredo, sussurrou no meu ouvido, é não deixar-nos dominar por ela.
Naquele instante eu olhei para o céu em busca de uma resposta divina, foi quando vi uma espécie de pássaro cruzar o horizonte bem distante e seguir para bem mais longe. E depois outros e outros.
Vamos, Ava , amanhã plantaremos mais sementes, quem sabe não germinam dessa vez.
Março de 24