Perfeitamente humanizado
Rapaginei um pouco minha alma, carregada de simbolismos terrenos. Era isso ou viver automaticamente, até que por fim encerrasse minha trajetória de sangue, suor e lágrimas. Me certifico de ainda ser humano. Mas isso é uma história para depois. Primeiro devo contar o que me ocorreu. Com um pouco da sanidade que ainda me resta.
Convivendo com todas essas máquinas, que zombam de nossa questionável inteligência. Embora, quem os criou, sejam sempre entitulados como uma dessas mentes brilhantes, que vira e mexe passam por aqui. Sempre dispostos a deixar alguma criação a altura de seu ego inflado. É para o bem da humanidade, diziam. Haverá progresso e novas formas de trabalho, repetiam. Como um mantra. Como querendo convencer que bilhões de pessoas estariam perfeitamente aptas para sobrevivência, nesse sistema que sempre foi excludente. Tendo a meritocracia como seu porta estandarte, não adiantou de nada.
A projeção populacional que outrora a ONU fazia para 2060 de dez bilhões, saiu um pouco de controle. 2052 e já somos 12 bilhões na Terra, de carne e osso, como costumávamos dizer, pois agora dividimos esse espaço caótico com milhões de enlatados. Tudo bem, sei que é uma forma bem pejorativa de se referir a esses quase semelhentes, visto que está cada vez mais dificil distinguir o real e artificial. Na verdade, essa dicotomia não se aplica. Não mais.
Mas esse crescimento exponencial da população mundial, gerou consequências.
Por isso, agora vivemos um rigoroso controle de reprodução. Imposto, mas também muitas vezes internalizado. Ninguém em sã consciência quer ter um filho, neste momento, neste planeta. A expedição a Marte avança cada vez mais, com bilionários com pedaços de terra comprado, e construções a pleno vapor. Lembro até hoje o dia que noticiaram que foi encontrado água por lá. E o quanto eu ri dos memes compartilhados.
Mas a verdade é que todo esse avanço no planeta Vermelho faz com que alguns mantenham ascessa a esperança de deixar um pouco do seu DNA, neste vasto e misterioso Universo. Com muitas teorias mas ainda poucas respostas. O que a grande maioria não entendeu ainda e nem sequer cogita, é que eles nunca vão pôr os pés lá. Nem seus filhos, nem seus netos, nem a sétima geração. Se pudéssemos chegar até lá. Já que nossa saga terrena parece cada vez mais próxima do fim. E desta vez não é uma profecia de crentes fanáticos ou teoria da conspiração. É tão palpável, tão real, tão sufocante.
A desigualdade aumentou exponencialmente. Me percebo cada vez com menos possibilidade de futuro. Não este futuro tecnológico e científico. Este parece não ter mais limites, irá se expandir até que o analógico seja para sempre esquecido, enterrado, fossilizado. Assim como houve um tempo de Dinoussauros na terra, houve também carta, pianos, abraços quentes, cachorros e gatos dormindo no sofá, livros de papel e capa dura.
Por isso, qual não foi o meu espanto, de encontrar um livro infantil. Amarelado, mas intacto.
Eu costumava ser aquele tipo de cara que fugia de choro de criança. Se eu soubesse que no futuro cuidaria de bebês robôs, não reclamaria tanto no passado. Muita gente se envolve e cria vínculos emocionais. Mas eu não consigo deixar de achar patético e surreal . Um robô com formato infantil assistindo por horas a fio vídeos com comportamentos de nossas crianças. Tão naturais para nós. E sendo incessantemente programados a repeti-los.
Em 2024, eu era um recém graduado em engenheira de inteligência artificial, com apenas vinte e cinco anos e iniciando minha carreira no banco que melhor pagava no Brasil. Entrei como Jr. mas minha ambição era grande.
Eu tinha aquela chama que somente jovens promissores costumam ter, sabe como é? Brilho nos olhos! Cheguei querendo mostrar serviço e impor minha juventude àquele sistema arcaico e conservador. A gente sempre acha que vai mudar o mundo. Mesmo sendo apenas um grande babaca. No fundo a gente sempre acha. Talvez um dia eu conte mais sobre isso.
Mas o fato é que agora estou aqui, com 53 anos. Trabalhando com outros jovens promissores e com brilho nos olhos, nascidos no início dos anos 2030. Literalmente em outro mundo, apesar de ainda ser no mesmo espaço físico chamado Terra. E que acham surreal o fato deu ter nascido em 1999. E debocham de naquele ano pessoas terem se apavorado com o Bug do milênio. E nem sequer me olham nos olhos. É estanho como eles costumam fixar o olhar na testa. Ainda tenho o hábito de passar a mão, achando que tem algo errado. Fazendo assim de mim um ser ainda mais estranho nesse ambiente. Sou um profissional raro neste departamento. Um dos poucos acima de 30 anos. O único acima de 50. Mesmo com todos os avanços para manter a juventude e eu ter um físico bem conservado e inimaginável para homens de meia idade no anos 2020, nenhuma tecnologia é capaz de repor a vivacidade da pele jovem. Tudo isso me faz ter sentimentos bem complexos. Odeio meu emprego mas me sinto lisonjeado por ainda não ser descartado e destinado a funções mais repetitivas e entediantes.
Eu estava cansado. Eu que sempre fui racional, lógico, hiperativo. Eu que sempre preferi os números, apaixonado por tecnologia, viciado em telas. Eu que zerava fase após fase de game, que construía protótipos, que não tinha religião. Eu que gravava vídeos, que produzia conteúdos, que decifrava códigos, que seguia coachs de carreira. Eu que investia meu dinheiro, que sabia poupar, que sabia gastar e que sempre queria mais. Me sentia exausto de tudo que antes era projeto, desejo humano, meta. Senti falta de dias mais lentos, de atividades em grupos, de sonhos.
Eu estava há meses empenhado em fazer aqueles bebês robôs ficarem tão perfeitamente humanizados, que não restasse dúvida que ali do lado esquerdo batia um coração. Era preciso de algum jeito saciar os milionários que ainda sonhavam em viver a experiência de criar, cuidar, ninar um pequeno ser. Mas em nenhum momento seus gestos e aparência podiam remeter a chips e algoritmos.
Faltava alguma coisa. Decidi então buscar a resposta através de uma prática humana, agora, quase pré-histórica. Não fazer absolutamente nada, deixar a mente fluir. Ou quem sabe, fazer algo ainda mais revolucionário. Apelar para o lúdico. Peguei o velho livro infantil que eu carregava há alguns dias em segredo. Comecei a ler em voz alta a saga de um macaco que tentava colocar uma mola dentro de uma mala e suas inúmeras tentativas fracassadas. O fiz, assim, imaginando que alguém lia para mim. Assim, meu tom de voz foi ficando cada vez mais alto sem que eu percebesse. Até ser interrompido por um barulho, que a princípio não consegui identificar. Após uma ronda pela sala, vi que um dos bebês robôs gargalhava. Li mais alguns trechos para me certificar que não era loucura minha, era do macaco e de sua mola que ele ria. Naquele dia eu chorei, como há muito não fazia.