They were crying when their sons left, God is wearing black

Eles estavam chorando quando os seus filhos partiram, Deus está vestindo preto

He's gone so far to find no hope, he's never coming back

Ele foi tão longe para encontrar nenhuma esperança, ele nunca voltará

They were crying when their sons left, all young men must go

Eles estavam chorando quando os seus filhos partiram, todos os homens jovens devem ir

He's come so far to find the truth, he's never going home

Ele foi tão longe para encontrar a verdade, ele nunca vai para casa

 

Soldier Side

- System Of a Down

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Eu amo John, mas ele é uma pessoa complicada.

 

A velha fazenda foi o resultado da soma insana dos medos dele. Nunca partilhei dessa paranóia obsessiva, pois a única coisa que realmente dividíamos era um forte sentimento de longa data que eu achava ser amor. John comprou e modificou aquele lugar com quase todas as economias que tinha, mas, por algum motivo decidiu não mexer em um centavo do meu dinheiro. Foi bem sincero ao dizer que eu não tinha nenhuma obrigação de seguir aquele caminho, e que poderia pular daquele barco quando bem quisesse.

 

Ambos tínhamos pedido demissão de nossos empregos seis meses antes, e foi nesse tempo que nosso relacionamento, já um tanto ruído, começou a definhar lentamente. Eu com certeza o amava, mas toda aquela conversa sobre a proximidade de uma guerra nuclear total estava tirando meu sono noite após noite. Era cansativo demais ouvi-lo falar sobre como cada ação e reação da dança política mundial nos colocaria em rota de colisão com uma grande guerra atômica, e o quão terríveis as consequências daquilo poderiam ser. “Tínhamos que sobreviver, a humanidade tem de sobreviver”, dizia ele em seus inflamados discursos ao pôr do sol.

 

Estávamos isolados numa antiga fazenda caindo aos pedaços, longe o bastante para fazer a cidade mais próxima parecer apenas um conjunto de pequenas luzes brilhantes e achatadas na longínqua linha do horizonte. O lugar tinha falido cerca quase cinco anos antes, por isso não foi tão cara sua compra, diferente da construção do maldito bunker entre a casa e o celeiro. John tinha gasto quase cem mil naquela construção monstruosa.

 

Tinha tudo lá, muita comida enlatada, bastante água, filtros e geradores, um pequeno quarto com banheiro, até mesmo armas ele colocou lá, tudo dentro de uma fúnebre caixa de concreto reforçado, enterrado bem perto da nossa sala. Era uma loucura, pura e palpável. Mesmo assim sempre estive do lado dele. Por mais que as idéias sobre a provável extinção da humanidade como resultado da próxima guerra não me entrassem muito na cabeça.

 

Já tinha se passado mais de um ano e meio desde nossa mudança, mas John ainda mantinha o mesmo genuíno espírito paranóico de sempre, mantendo em dia toda a manutenção do abrigo, checando a validade dos mantimentos e até mesmo repetindo à exaustão todos os malditos treinamentos e procedimentos no caso de ataque.

 

Não me lembro de quantas noites perdi após despertar sob o pânico agudo do alarme sobre a casa e dos gritos dele, enquanto me puxava às pressas para a escotilha do abrigo no meio da madrugada. Foram tantas as vezes que quase me acostumei com o desconfortável e fino catre que ele fixara em uma das paredes de concreto de nosso “quarto” subterrâneo.

 

No início até foi bom. Nosso relacionamento era tão bom quanto o de um casal normal, mas aos poucos tudo mudou. John só conseguia pensar e se preocupar com a iminência do fim do mundo. Com o passar do tempo fiquei amarga, me perguntando centenas de vezes por que deveria passar por aquilo. Todas as vezes que me indagava nunca chegava perto de uma simples conclusão lógica. Era como se eu tivesse que estar ali cuidando de uma criança doente, de um menino teimoso, birrento ou algo assim. Era triste pensar que não teríamos um futuro saudável juntos, pelo menos não daquela maneira patética e louca.

 

Numa manhã ensolarada de domingo, John estava no fundo de seu escritório, mexendo em seu grande rádio e monitorando as notícias como sempre. Eu entrei e sentei perto dele, ele porém pareceu não perceber, continuou focado no som ruidoso do maldito aparelho como se eu nem estivesse ali. Toquei seu ombro em busca de alguma atenção e tudo que recebi foi um olhar vago e sem sentimento por um segundo, até que ele se voltou para o rádio.

 

Nunca me senti tão só. Nunca me senti com tanto ódio. Todos os sentimentos ruins que tinha enterrado afloraram de uma vez. Fui até o celeiro e arranquei o velho machado do antigo dono, voltei correndo na direção de John, que ao perceber meu olhar de ódio apenas cruzou os braços numa frágil tentativa de se defender do golpe. O machado percorreu um arco perfeito, descendo num golpe duro com ajuda da inércia do aço em movimento. John sentiu o golpe passar a poucos centímetros dele, com a lâmina enferrujada se enterrando bruscamente no console sobre a mesa.

 

Ele caiu sentado, paralisado por algum tempo sem entender o que havia acontecido, olhou pra mim e depois para o rádio destruído. Pensei que sua reação fosse ser violenta, dada a perda do aparelho, mas ele apenas se levantou com calma, pegou as chaves da picape e disse que ia até a cidade comprar um novo. Eu desabei em choro, mesmo assim ele não ligou, apenas pegou o carro e saiu. Não sei quanto tempo chorei aquele dia.

 

Depois de algumas horas me recompus, fiz minhas malas e me preparei para fugir dali. Precisava sair daquele lugar imediatamente para nunca mais voltar, pois agora estava mais do que decidida a deixar toda aquela merda para trás. Peguei tudo que iria precisar e fui até a porta da casa, saí e olhei pela última vez o pôr do sol por longos segundos. estava tão lindo quanto deveria ser. Ao longe a cidade parecia silenciosa e calma. John tinha passado quase o dia todo fora, talvez não tivesse encontrado o maldito rádio. Não importava, eu não iria esperar, não mais.

 

Antes de sair voltei até o escritório e peguei um mapa da região e um dos nossos grandes telefones por satélite. Ao voltar para o rádio percebi que mesmo com o machado fincado ainda funcionava, porém reproduzindo as conversas roucas e cheias de estática de sempre, só que agora com bastante dificuldade. Por um minuto achei o tom mais agitado e mais conversas do que o normal, mas decidi não me importar. Desliguei tudo e saí, tomando o caminho entre as plantações mortas da fazenda.

 

Depois de alguns metros ouvi o barulho abafado do telefone dentro da bolsa, olhei e era John, desliguei e segui meu caminho. O aparelho tocou novamente, e de novo era ele. Tentei desligar, colocar no silencioso ou algo do tipo, mas não fazia ideia como. Foi então que eu ouvi. Era um barulho estranho, um barulho baixo vindo de cima da minha cabeça, como um sibilo crescente de algo rápido cortando o ar entre as nuvens. Olhei melhor e vi que a coisa que fazia aquele barulho soltava um rastro fino de fumaça branca atrás de si. A coisa então pareceu perder altura e mergulhou com velocidade sobre o centro da cidade.

 

Nunca imaginei ver algo como aquilo. Quando a bomba caiu, um clarão branco tomou conta de tudo. Um grito agonizante da cidade ecoou ao longe. Fechei meus olhos, mas mesmo assim eles sentiram a grande onda de calor os cozinhando. Foi como estar de frente para o centro do próprio sol. Lembrei do que John tinha falado, então corri o mais rápido que pude de volta para a fazenda enquanto a terra tremia sob meus pés. A cada passo que dava sentia o calor aumentando cada vez mais. Era a onda de choque a caminho. Depois de alguns metros pude ver os contornos da escotilha de metal do abrigo. Aquilo me deu alguma esperança, porém não fui tão rápida.

 

Não houve tempo de fugir. Fui jogada longe pelo impacto da onda e rolei na grama seca até próximo da entrada do bunker. Tentei me colocar de pé, mas a torrente de furiosa de fumaça quente me manteve no chão, enquanto grandes destroços voavam a poucos metros da minha cabeça. Me arrastei com dificuldade até a escotilha e toquei o metal quase incandescente, o soltando com gritos de dor logo depois. Mais pedaços voaram da casa em minha direção, até que um deles, um grande pedaço de madeira, me atingiu em cheio. Desmaiei na hora.

 

Quando dei por mim estava coberta pelo que restou da casa, que aparentemente não existia mais, assim como o celeiro que tinha ido pelos ares. Gritei de dor assim que percebi que ainda estava viva. Me arrastei com dificuldade pra fora daquela pilha de madeira fumegante e tropecei sem rumo por alguns metros. Eu estava coberta de fuligem quente e uma grande soma de fumaça preta envolvia tudo, dificultando muito a visão. Tentei abrir um pouco mais os olhos, mas uma dor imensa me alertou a não fazê-lo. Toquei com uma das mãos em carne viva o olho direito e percebi que havia pele queimada e um líquido grosso escorrendo aos poucos pela ferida.

 

Olhei ao redor com o olho esquerdo semi-cerrado e vi que tudo tinha sido varrido pelo impacto, nada estava em pé, nem mesmo uma tábua. Olhei então na direção onde deveria estar a cidade, mas tudo que pude ver foi uma grande nuvem escura em formato de cogumelo escuro tocando o firmamento. Era um pesadelo, um pesadelo real, quase como uma piada infame do destino. Algo então começou a cair do céu. No início parecia neve, mas logo depois percebi que eram cinzas da explosão da cidade.

 

Sem forças, me ajoelhei e chorei lágrimas e sangue, enquanto pensava o quanto de John poderia estar naquela neve maldita.

 

 

 

 

 

Eu amava John.

 

 

Ele era uma pessoa complicada.

 

 

Mas infelizmente estava certo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jeff Silva
Enviado por Jeff Silva em 18/02/2024
Reeditado em 25/02/2024
Código do texto: T8001902
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