A HOLOGÊNESE

A HOLOGÊNESE

A HOLOGÊNESE

Por : Alexandre Florez

(...) Sob os rubores d’esplendor de um fim de tarde no verão, íntegro na nova carne, estranhou o tato; sensível em demasia n’algumas partes, noutras arrefecido. Estranhou a audição, na nova forma corpórea, limitada a captar vibrações de frequência intermediária veiculadas no meio atmosférico onde se propagam lentamente. Sentiu falta da superfície membranosa da antiga pele, repleta de cerdas e filamentos ultrassensíveis às vibrações.

Arqueado, ainda não se acostumara ao peso dos músculos rijos, maciços; aptos a esforços inimagináveis. Assustado constatou haverem-se superado todas as expectativas...

Flexionando as pernas agachou-se. Abaixou-se até o solo e distendendo bruscamente o conjunto de músculos dos membros inferiores saltou. Projetou-se para o alto testando a potência formidável das pernas. Entusiasmado passou a examinar com atenção todos os sentidos e capacidades físicas do próprio corpo. A visão agora possível somente num ângulo limitado, se prestaria ao especialíssimo exercício da predação. Com a visão frontal ele perceberia imediatamente a profundidade. Estimaria a distância com precisão, calcularia a velocidade de seu alvo provável prevendo com razoável exatidão a cadência e a direção dos seus movimentos. No seu critério enxergar a faixa estreita do espectro luminoso visível ao antropoide trazia desvantagens, porém, na condição presente teria lá suas compensações.

Curioso a respeito das capacidades da nova morfologia movimentou seus apêndices articulados. Braços, pernas, dedos dos pés e das mãos. Conjunto harmônico de sensíveis ferramentas... Divagando, descobrindo-se, tateava-se com extremo cuidado e vagar. Demorou-se mais bolinando os genitais bem conformados, deliciando-se com a manipulação... Ele se julgava pronto. Experimentando o ineditismo de um aparelho fonador encheu os pulmões com o ar tão necessário e erguendo os braços para os céus bradou uma prece desconexa composta de urros incoerentes e grunhidos sem significado. Uma prece de agradecimento dirigida a um deus inominado.

Era o começo. Articularia sons, fonemas, linguagem lógica. Seguindo passo a passo as técnicas desenvolvidas por ele próprio engendraria outros iguais a si naquela forma. Milhares de outros semelhantes. Dotados da mesma perfeição em corpo e mente. Viveria feliz entre seus congêneres; e os amaria, e os instruiria. E seria amado, e se sentiria seguro entre eles, sem importar-se com quanto tempo lhe houvesse destinado à natureza – lei magna dos vivos; para gozar a nova existência.

(...) Em julgado, o cidadão Imerghe foi declarado culpado pelo crime de difusão e ministério de conhecimentos e práticas tecnológicas para civilizações pouco adiantadas. A sentença? O banimento. Seria cumprida num mundo longínquo e simiesco. Em uma galáxia não explorada, distante alguns milhões de anos luz do seu próprio aglomerado estelar. Trancafiado numa cápsula hiperbárica transparente a ser acondicionada no nicho côncavo a bordo d’uma naveta piramidal recebeu, ainda na rampa de acesso à nave, da parte do magistrado sênior uma pergunta de cunho sarcástico:

- Há mais alguma coisa relevante ao caso que eu deva saber?

Atacado pela modorra induzida pelos vapores da câmara de suspensão anímica, ele percebeu vagamente o desdém mofino contido entre tons na expressão da frase do magistrado. Como poderia ter algo mais a revelar? Mesmo sendo os de sua espécie incapazes de emitir qualquer sonido de origem vocal por conta da inexistência de um aparelho fonador, ainda assim comunicam-se muito bem.

Podem audir com precisão as ondas lentas dos infrassons, percorrendo enormes distâncias nos meios sólidos ou líquidos ao encontro das finas cerdas capilares espalhadas de maneira generosa e uniforme pela superfície do corpo.

Podem igualmente ouvir muito bem frequências rápidas. Ondas de comprimento curto oscilando a grande velocidade, na faixa dos ultrassons. Então, Imerghe distinguiu com clareza cada estalido e sibilar provocado pelo agitar nervoso dos membros do magistrado formando no ar o desenho sonoro e visual das sentenças enunciadas. Não bastassem os sentidos apurados, os armanazianos – como se chamam, partilham uma consciência coletiva, um elo psíquico através do qual recebem uns dos outros impressões de ordem emocional. Dotados desta faculdade prospectam entre si os menores indícios de medo, raiva, ternura ou hesitação.

Detectam os mais exíguos traços de afeto, melancolia ou compaixão. Portanto, nessa sociedade de sentimentos à vista mentir ou dissimular é a maior das impossibilidades. Cerceado dentro do compartimento hiperbárico esferóide o ser denominado Imerghe foi posto a bordo da espaçonave. Prestes a ingressar num sono cataléptico assistiu impotente lacrarem a escotilha principal. Sem mais poder manter abertas suas pálpebras devido aos vapores emanados do receptáculo devotou um último pensamento coerente à companheira deixada para trás. Mergulhando nas trevas do espaço exterior viajou. Percorrendo túneis. Atalhos abertos no tecido etéreo do espaço tempo pelos precursores de sua raça na exploração do cosmo. Milhares de anos após haver partido do seu mundo a naveta pousou num planeta inóspito para criaturas de natureza semelhante ao seu tripulante involuntário... O terceiro planeta ao redor da estrela anã amarela circunavegando na espiral da galáxia desconhecida assistia ao fim de uma de suas muitas eras glaciais.

(...) Desperto no lugar onde passava a cumprir sentença limitações lhe fizeram permanecer no claustro da espaçonave. Seu corpo rotundo sem membros aparentes encontraria dificuldades para locomoção sobre um solo arenoso e acidentado, repleto de pedras e abrolhos. A composição do ar e a pressão atmosférica também constituíam um perigo para órgãos e seiva vitais de natureza sulfurosa. Havia ainda o incômodo da gravidade, nem tanto elevada, mas que em combinação com os demais fatores lhe tornaria fatigante o ato simples de locomover-se. Rolando sobre as escamas maleáveis da epiderme impulsionado por uma dezena de tentáculos flexíveis e retráteis capazes de se pronunciar ou recolher totalmente para dentro da célula corpórea esferoide.

...Tempo. Algoz dos perdidos. Flagelo dos desesperados. Os bio analisadores mnemônicos da naveta se manteriam em atividade por três quartos de volta do planeta em redor daquela estrela anã amarela da sequência principal. Depois se decomporiam numa gosma fétida... Pseudomáquinas; mecanismos híbridos orgânico-mineral; quando se desmanchassem numa substância gelatinosa incolor, poriam a perder milhares de anos de conhecimento científico e filosófico. A trajetória de uma civilização. Quando lhe ocorreu esse pensamento um impulso elétrico percorreu a superfície membranosa de seu corpúsculo escarlate provocando uma vertigem seguida de um breve estremecimento.

(...) A carne dos de sua espécie constitui-se de cartilagens semirrígidas. Escamas externas sobre a epiderme e tecidos filamentosos. Cerdas finíssimas de polímero natural interligadas a células nervosas funcionando como uma rede neural secundária cuja única finalidade é coletar e transmitir toda sorte de informação sensorial ao encéfalo. Este alojado no exato centro do conjunto corporal, é sustentado por gânglios no âmago do corpo esférico desprovido de esqueleto.

Capazes de enxergar a reflexão do infravermelho irradiando de qualquer ser ou superfície, também percebem a luz ultravioleta, graças à miríade de olhos de pálpebras diafragmáticas. Sensores de luz revestidos por escleróticas opacas. Curiosamente tais órgãos não registram a incidência de luz de comprimento mediano, espectro visível para o olho do antropóide. No entanto, podem comutar o modo de visão, alternando entre a percepção de ondas infravermelhas e ultravioletas.

Como já havia mencionado a audição entre os armanazianos se realiza pela recepção das freqüências de variável comprimento de ondas hertzianas. Ondas de choque propagadas em quaisquer meios, captadas pelas incontáveis cerdas espalhadas em derredor do corpo. Dependendo da distância e da intensidade da fonte emissora os armanazianos captam bem do infra ao ultrassom. Porém, sem serem possuidores de uma faringe ou pregas vocais só podem emitir sons através do sibilar e dos estalidos provindos do chicoteio do ar ou de outras superfícies por seus tentáculos articulados. Tais membros retráteis distribuídos de modo uniforme ao redor do corpo se retraem totalmente para dentro das carapaças.

...A vida seria difícil para Imerghe neste mundo selvagem. Concorria para tal constatação o estado de falência progressiva dos sistemas mnemônicos responsáveis pelo gerenciamento dos instrumentos de bordo e demais mecanismos da nave. Cientes de que a vida do condenado dependeria do perfeito funcionamento dos sistemas lógicos de suporte, maliciosos, os sínodos ordenaram a inserção de um retrovírus a fim de gradativamente promover sua inutilização. E isso se dava ante os olhos de Imerghe impotente diante da desagregação dos sistemas. Sabia ele ser incapaz de sobreviver num mundo hostil sem a ingerência desses dispositivos de apoio à vida. Entretanto, Imerghe decidiu não esperar placidamente pelo fim. Com dificuldade escavou um fosso largo no solo calcário do planalto onde a nave pousara. Daquela posição dispunha de uma visão privilegiada das cercanias e do vale logo abaixo nesta época coberto por vegetação luxuriante. Diligente aproveitou bem o tempo de sobrevida dos processadores lógicos. Colheu informações pertinentes ao clima, a composição atmosférica. Estudou o relevo; realizou um completo levantamento topográfico das áreas adjacentes e iniciou a prospecção de água. Fluído essencial d’onde extrairia hidrogênio para os geradores de fusão. Tais geradores, desde sua chegada, haviam perdido a capacidade de imprimir força motriz à nave. No entanto ainda provinham energia para aparelhos indispensáveis, como os replicadores quânticos de matéria e atmosfera. Quando se locomovia fora da naveta piramidal, pousada próxima ao fosso recém-escavado ele suportava o desconforto causado pelos transmutadores de gases. Pequenos engenhos de formato cilíndrico que estavam embutidos no interior de cada um dos onze orifícios de respiração – onde se encontravam as células olfativas; dispostos ao redor do seu corpo esférico. Embora imprescindíveis, os artefatos lhe causavam uma torturante sensação de asfixia... Rolando com lentidão sobre o solo arenoso abrasivo e ácido, formado pôr sedimentos ricos em cálcio e outros minérios Imerghe cansava-se facilmente. A areia fina grudava-se a seu corpo devido aos efluxos da transpiração obstruindo parcialmente os respiros já tolhidos pela presença dos rearranjadores de gás. Dificultando a regulagem da pressão arterial e a manutenção de um sincronismo perfeito do ritmo cardíaco entre seus dois corações trivalves.

A gravidade do planeta; alta para os padrões armanazianos, também concorria para a estafa do alienígena enquanto este trabalhava fora da nave, ou do fosso onde instalara um sistema de pressurização adequado. Sem o suporte dos analisadores mnemônicos, porém, em breve a nave não serviria para nada... Os dias longos do mundo aquoso onde aportara não ajudavam na sua adaptação. Sob a forte irradiação luminosa d’uma candeia anã amarela da seqüência principal Imerghe julgou ser obra de um milagre o surgimento de uma enorme variedade de flora e de fauna. Pois sobre o estranho planeta azul o sol próximo; inclemente nos trópicos, jorra por doze horas diárias quantidade monstruosa de intensa radiação no ambiente abrangendo toda gama do espectro. Imerge pôr vezes cria ter chegado ao inferno. Se era verdade a existência do Orco; lugar de martírio citado na mitologia armanaziana havia sido remetido a tal lugar. Pois cá estava ao sabor cáustico de um vento incessante. Bafejando calor e poeira sobre si, fustigando sem cessar seu corpo inflado, que contava meros cento e vinte centímetros de diâmetro e estava às portas da exaustão. Alquebrado pela desesperança Imerghe seguia a risca, diuturnamente, uma rotina de trabalho. Estabelecera isso com o propósito de refrear a cólera pela qual às vezes se via tomado, quando pensava a respeito de sua condição. Se não tivesse sido tolo. Se não houvesse deixado o idealismo e a compaixão dirigirem seus atos. Se não fosse o altruísmo a nortear-lhe a vida não estaria desgraçado. Ocupado das tarefas mais simples se esforçava para não deixar subir à tona toda ira e frustração reprimidas. Ou ainda se empenhava para não se deixar abater pela perigosa depressão resultante destes acometimentos e desarranjos emocionais. Acreditava que seus detratores por ora imaginassem ter sido ele; como outros tantos anteriormente vítimas do desespero, levado ao suicídio em face do isolamento e da vergonha. Todavia, ele não iria se auto imolar. Resoluto, agitou furiosamente dois pares de tentáculos no ar. Expressando, com sibilos e estalidos a imagem gráfica e sonora de uma sentença: - Malditos! Exclamou, fazendo estalarem no ar as extremidades delgadas dos dois tentáculos em movimento... Como foi dito o ser Imerghe guardava uma rígida disciplina. Ao raiar de cada dia se punha atarefado. Prudente, colhia, processava e estocava reservas de alimento. E este consistia numa espécie de gelatina violácea composta de sais minerais e proteínas sintetizadas a partir dos microorganismos abundantes na água. Todos os esforços dele se resumiam a tentativa de remediar os problemas de ordem técnica, decorrentes da fadiga das máquinas lógicas cuja vida útil estava prestes a se encerrar... O período de exílio no estranho mundo se alongava. Tempo e recursos para manter-se vivo se extinguiam. Contudo, se o tempo se exauria, ele não desperdiçara nenhum segundo em indústrias sem resultado. Estudara minuciosamente a flora e a fauna da região do planeta onde se encontrava. Desde o mais insignificante dos bactríolos; da menos importante das amebas; do mais comum dos fungos, ao mais nobre dos vertebrados ocupante do topo da cadeia alimentar. Escrupulosamente ele os estudou. Movido pela curiosidade, e pelo instinto básico de sobrevivência ele investigou. Procurando entre os seres vivos desse mundo algum apto para seu intento. Buscava uma forma de vida dotada de certa particularidade. A capacidade de adaptar-se e se desenvolver para poder abrigar o extrato de uma psique complexa. Um ser capaz de carregar a chama intrínseca do seu eu mais íntimo: O virtuosismo intelecto-emocional ao qual se dá o nome de alma.

Temendo a ocorrência de um desastre, descamou as extremidades sensíveis dos tentáculos cavoucando, escavando a rocha sólida do planalto atrás de gemas raras de enorme utilidade e aplicação. Assim, garimpou cristais de carbono e berilo. Com petrechos toscos improvisou. Confeccionou arremedos de finíssimos catalisadores cristalinos. Dedicado, projetou compiladores de matriz inteligente para compor um sistema mnemônico rudimentar independente. Mesmo sem dispor das ferramentas apropriadas construiu tanques de cultura celular e reservatórios bioplásmicos, mais ou menos estáveis, onde armazenou uma substância verdolenga de aspecto e consistência semelhante ao visgo; fonte nutris para cultivo e/ou regeneração dos meta neurônios. Células responsáveis pela formação de um proto cérebro capaz de ordenar atividades lógicas e armazenar grande soma de dados colhidos e gravados por ele a feixe de partículas em derredor das paredes dos túneis de minério ramificados horizontalmente a partir do fosso.

Despendera tempo precioso e esforço desenhando com esmero cada um dos caracteres cuneiformes compondo a grafia das palavras do armanaziano culto. Os textos estavam dispostos de maneira ordenada por interesse e assunto, desde o rodapé das paredes até o teto abobadado. Vez ou outra, munido de uma fonte de luz ultravioleta, percorria a extensão dos túneis para compilar trechos daquilo considerado pôr ele seu tesouro particular. Registros a serem transcritos para o cérebro rudimentar recém-construído. Na posse desse analisador adaptado ganhara mais algum tempo de vida. Embora gerenciados por um engenho primitivo agora os sistemas da nave não entrariam em colapso. Ele trabalhara com afinco e ousadia e disso se orgulhava. Graças à sua inventiva o período de ostracismo se prolongaria pôr mais cem ridículos anos do planeta de longos e estafantes dias em contrapartida às circunvoluções bastante rápidas ao redor de seu diminuto sol amarelo.

Animado com seus pequenos progressos Imerghe aos poucos foi se acostumando ao caudal mutante do ballet das estações. Decorrido algum tempo de auto aplicações dum corticoide epitelial conseguiu obter certo grau de rigidez das escamas flexíveis protetoras da epiderme. Desse modo o sol calcinante daquela parte do mundo não lhe causava tantos danos e suas irradiações podiam ser toleradas. A natureza, sábia, também tratou de agir em seu favor. Como reação natural a repetida fricção contra o solo abrasivo seu corpo desenvolveu calosidades naturais e o atrito não mais o incomodava. No entanto, para compensar as maneias impostas pela alta gravidade, em intervalos regulares Imerghe fazia uso de uma série de compostos anabolizantes. Com tal artifício – impulsionado pôr dez longos tentáculos preênseis revigorados pela química – pôde locomover-se com desembaraço à razão de até quatro metros por segundo em terreno plano pouco acidentado. Condicionado física e mentalmente ele excursionou longas distâncias a busca de um espécime para ser tornado em depositário da sua consciência. Numa de tantas surtidas, percorrendo uma trilha aberta na mata espessa pelo ir e vir dos grandes mamíferos, na copa das árvores ele avistou um bando de símios. Assustados com a presença do alienígena os macacos se agitavam promovendo estrondosa algaravia. Alheio ao estardalhaço Imerghe montou suas armadilhas. Duas gaiolas feitas de finas hastes de metal leve e resistente com um metro cúbico de área cada uma. No interior das gaiolas, preso a um gatilho sensível prendeu raízes e frutas suculentas como chamariz. Depois afastou-se, escondeu-se entre a folhagem e pacientemente esperou. Não passou muito tempo, atraídos pelo aroma irresistível exalado dos vegetais, uma fêmea seguida de um jovem macho; ignorando os roncos de alerta emitidos pelo alfa do bando entraram numa das gaiolas. Quando a fêmea, mais afoita, tocou de leve a penca de frutas suspensa por um cordel invisível disparou o gatilho do alçapão. A tampa da gaiola se fechou com um estrondo enquanto a fêmea e o jovem macho guinchavam em pânico e se debatiam contra as grades. Para evitar maiores traumas aos espécimes Imerghe acionou remotamente dispersores de gás soporífero e em segundos os monos repousavam entregues à mercê da sua vontade. Munido dum scanner óptico ele captou imagens detalhadas dos seres capturados. Com cuidado coletou preciosas amostras de sangue contendo os códigos usados pela natureza para construir os vivos. Imerghe passou algumas horas observando os animais cativos. Quando pôr fim despertaram ele abriu a jaula e os deixou fugir, assustados, mas intactos. Imerghe repetiu com êxito a operação de captura e coleta de material genético primata em outros sítios distante daquele primeiro local. Assim a cada captura e coleta bem sucedidas mudava de lugar na intenção de extrair amostras de espécimes com pouco ou nenhum grau de parentesco entre si.

Tendo colhido material suficiente trancafiou-se na espaçonave e lá permaneceu pôr dias dedicando-se ao estudo genético da espécie primata. Fisicamente diversos dos armanazianos os primatas também separam-se em dois sexos diferentes, porém, apresentam genitais externos. Pôr viverem a maior parte do tempo encarapitados nas árvores possuem caudas preênseis além de grande pilosidade. Apresentam esqueleto interno e espinha dorsal recurvada, por isso quando no solo movem-se sobre quatro patas e só ocasionalmente se erguem e andam de maneira desengonçada apoiados sobre os membros inferiores. Imerghe acionou hologravuras anatômicas dos símios e destacou de uma delas a caixa craniana do primata contendo um encéfalo pouco desenvolvido. Um cérebro primitivo pouco trabalhado pela natureza que o fazia suficientemente especializado apenas para a manutenção das funções instintivas parassimpáticas e a manutenção do metabolismo autônomo. Aqueles cérebros eram incipientes quanto às capacidades subjetivas analíticas, de retenção e utilização de memória. Fosse ela de natureza reflexo instintiva ou lógica. Satisfeito com os resultados dos exames iniciais passou direto aos experimentos. Após dois anos inteiros os primeiros rebentos estavam conformados. Crescidos em fase adulta – tal e qual imagos prestes a romper os casulos – flutuando em grandes tanques transparentes dispostos lado a lado, como se numa linha de montagem. Ocupando toda a extensão das galerias de minério. Todavia, os primeiros exemplares daqueles a se constituírem num veículo potencial não alcançaram o grau de desenvolvimento desejado. A mudança abrupta do fenótipo primata ocasionada pela manipulação genética fez surgir seres aberrantes. Por terem sido submetidos a uma evolução acelerada os símios modificados deram origem a cepas de indivíduos vitimados pela aplasia física e mental. Alguns surgiram como proto-hominídeos com baixa estatura, andar recurvado, membros desproporcionais, malares protuberantes, occipitais e frontes achatadas. Outros ainda eram gigantes de testas abauladas, occipitais protuberantes, queixo prógnato e encéfalos atrofiados. Decepcionado, porém, sem lhes querer mal, Imerghe os abandonou à própria sorte. Em debandada machos e fêmeas adultos dispersaram-se pelas planícies ou se embrenharam nas matas densas formando bandos nômades, ajuntando-se conforme suas fenotípicas. Até aonde Imerghe os monitorou, pouco prosperaram. Os defeitos genéticos impediram uma crescente populacional entre esses grupos e sua consequente proliferação.

Combalido, sentindo-se amargurado pelo fracasso, Imerghe padeceu pôr seis dias e seis noites. Ao cabo disso, inconformado, voltou à carga. Metodicamente calibrou as máquinas, refez cálculos, reexaminou a função de uma por uma das moléculas de ácido desoxirribonucleico, ensaiando o resultado das milhões de combinações possíveis no analisador improvisado. Obcecado reformulou a espiral dos genes do novo ser e se esmerou na escultura da cadeia de suporte dos cromossomos cuja base é o carbono; breve obteve indício de ótimos resultados.

Dos monos, produtos da indústria natural, a progênie guardava vaga semelhança. Bípede, membros articulados, musculatura poderosa; um esqueleto interno, idealizado para dar sustentação e salvaguarda aos órgãos além de modelar os tecidos do antropóide. Graças à cerviz e coluna vertebral prodigiosamente redesenhada pela excelência da bioengenharia alienígena o novo ser poderia se manter de pé sem o menor esforço. Enlevado, tal Pigmalião, ele se enamorou de sua obra. Entretanto, seu maior triunfo não fora a reconstituição da coluna espinhal, mas o desenvolvimento de um centro nervoso superior constituído de um cérebro complexo, dividido em dois hemisférios gêmeos, um cerebelo e um tronco cerebral coadjutor do sistema límbico. Quanto ao redesenho da coluna cervical da criatura Imerghe dotou-a com um maior número de vértebras, o que possibilitaria movimentar-se velozmente em postura ereta. As extremidades dos membros superiores e inferiores também foram alvo da sua dedicação. As mãos ganharam dedos longilíneos. A oposição entre os polegares e os indicadores presente na fisiologia símia foi mantida, pois, seria útil ao manuseio de ferramentas. Os pés da criatura foram igualmente redimensionados. Com especial atenção os calcanhares e arcos plantares absorventes dos choques mecânicos provocados pelo ato simples de andar. Os ossos: Tarso, metatarso e os dos dedões dos pés, hálux; foram reconfigurados em prol da mobilidade e do equilíbrio. Sim, Imerghe atentara para todas essas coisas zelosamente observando os mínimos detalhes. Realizando testes simulados para cada processo em formação. E ao fim de duas décadas pôde vislumbrar através do acrílico fosco de um contêiner a silhueta de um ser; a emergência de uma possibilidade. Cauteloso não se deixou levar pela euforia. O progênie, espécime pronto em fase adulta, dormia tranquilo envolto pela gelatina amniótica conectado a um depósito de nutrientes pelo cordão umbilical tecnorgânico de maneira a imitar o modo natural de ligação dos seres vivíparos com a mãe. Imerghe não se cansava de admirar seu primogênito. Não o fruto de encontro dos seus espórulos com os gametas da sua amada esquecida no bafio das eras. Não a carne esponjosa composta de moléculas cristalinas análogas às suas. No tanque útero em posição fetal gestava dessa vez um ser único; objeto da sua esperança e fruto de sua dedicação. Um ser produto da sua técnica, ou quem sabe? Uma dádiva; confirmo dos seus sonhos e esperança. Se o ente vivo Imerghe pudesse rir textualmente riria de contentamento ao apreciar o auspício de sucesso. Mesmo assim ele se ergueu sobre cinco tentáculos a alguns centímetros do solo e saltitou alegre chicoteando o ar como se aplaudisse. Manifestando o que em termos humanos equivaleria a uma sonora e prazenteira gargalhada. Ele estava feliz, considerava-se um artista, um esteta. Buscara para o novo ser a síntese do belo. Um corpo vertical e longilíneo. Não a monotonia esférica cuja forma e aparência comum não distinguiam um indivíduo entre outros de sua espécie. Para tanto os armanazianos prestavam atenção aos modos e a maneira de cada um comunicar-se e expressar suas ideias. Pôr isso quando anônimos em meio à multidão ostentavam as insígnias familiares. Brasões, antigos distintivos das dinastias guerreiras que ironicamente apresentavam; em todos os casos, motivos florais. Entre os armanazianos destaca-se no cânone das leis a tolerância e o incentivo às práticas da poliandria e/ou poligamia, bem como todas e quaisquer relações de cunho sexo afetivas. Porém Imerghe nunca esteve em concordância com essa lei considerando tais práticas não recomendáveis, pelos danos causados aos cônjuges, filhos e demais familiares. Portanto, para seus filhos – e ele os consideraria assim – imaginara coisa bem diversa. Não seriam vítimas de comportamentos institucionalizados pelo espectro da lei. A mistura genética promoveria toda ordem de diferenças físicas e o desenvolvimento de padrões de comportamento exclusivo. Não seriam cópias iguais, tampouco se quedariam vítimas do serialismo. Inspirado ele programaria seus genes de forma a induzi-los a uma adaptação progressiva ao ambiente no qual estivessem integrados. Assim sendo, suas dimensões corporais, formas e cor da pele seriam adequações ao meio estabelecendo suaves diferenças entre grupos distantes. Sim, Imerghe julgava belo tudo quanto fosse prolixo. Amantes da simetria os armanazianos entreviam nela reflexos das ações do geômetra supremo; o princípio criador. Pôr isso não se furtavam em reproduzir nos seus mundos; na arquitetura, nas peças de mobiliário e decoração, nos utilitários e em si mesmos, as formas perfeitas descritas nos sólidos geométricos. Todavia, para seus rebentos angulosos, Imerghe encontrara e aplicara a “ áurea mediocritas ”, a medida de ouro. Proporção ideal e harmônica entre as medidas de um corpo e de uma face. Isto possibilitaria a tais indivíduos construir uma personalidade rica, complexa e independente. Tal personalidade não se apresentaria pronta, seguindo moldes comportamentais. Imersa no âmbito coletivo como acontecia nos mundos colonizados pôr seus semelhantes.

Sem se cansar de admirar o primeiro espécime de uma raça Imerghe não se abateu quando os leitores biométricos estimaram em pouco mais de uma centena de anos terrestres o tempo de vida os seres resultantes do seu cultivar. Satisfeito com o desenvolvimento da progênie Imerghe concluiu preparativos para transfundir nele sua própria essência. Tomado pelo medo e ao mesmo tempo ansioso, conectou-se mentalmente ao bio analisador rudimentar ao qual o espécime também estava ligado. Em pânico ele acionou remotamente o comando do conector mental dando início ao processo de transmigração. Em duas horas a consciência do ser Imerghe não habitava mais o corpo esférico que jazia na bancada contígua ao cilindro incubador.

“In anima vili” – num ser vil; num animal. o alienígena derramou sua essência. O extrato do eu; a mônada sutil e divina, mãe fecunda do amor do gênio e da criatividade. Obedecendo ao programa a bolha de acrílico abriu-se e sob o peso do gel amniótico a placenta rompeu-se deixando vazar seu conteúdo. Imerghe, o nascituro antropóide, tombou ao solo e a ação da queda partiu o cordão umbilical. Agoniado escancarou a boca tentando aspirar o oxigênio que lhe faltava. Consciente ou nem tanto tateou com a ponta do indicador direito o comando exaustor da nave promovendo o escape dos gases sulfurosos para fora do veículo imediatamente tomado pelo ar atmosférico. Num espasmo golfou o líquido que lhe inundava os pulmões e sentindo-os arder em brasa, pela primeira vez respirou o ar da Terra. Cansado devido ao choque do nascimento e a estranheza da nova carne ele adormeceu. Pouco mais tarde desperto ainda sentia-se cansado e em vão tentou se pôr de pé. Mas não familiarizado com a verticalidade, tampouco habituado a equilibrar-se sobre as pernas, tombou ao solo tantas vezes quantas sua persistência o levou a tentar se erguer do chão. Consumiu uma tarde inteira tentando adquirir coordenação e equilíbrio até que pôr fim conseguiu se manter sentado. Depois, exausto abandonou-se novamente ao sono estirado no assoalho liso da nave. Quando acordou no interior do veículo de paredes oblíquas iluminado por fontes ultravioleta, luz invisível para seus novos olhos feitos para a faixa estreita das ondas de comprimento intermediário; sentiu-se atordoado, deixou-se novamente adormecer. E adormecido sonhou. Estranhamente as visões dele no estado onírico não tinham forma. Assustado sentiu-se só, e de dentro dessa solidão abissal clamou e se contorceu, experimentando de modo diferente a exiguidade; a sensação de insignificância e o medo. Viver naquela forma corpórea representaria um desafio, um jeito novo de olhar o universo a partir da visão e da percepção emocional duma criatura muito diferente de todas as outras conhecidas dele.

Transformado num ser caracterizado pela solidão de um ego incapaz de se mostrar a outro Imerghe sentiu-se desconcertado, vulnerável. Compreendeu entretanto que ao infundir-se numa forma estranha fora aquinhoado com uma nova chance para viver.

...Assim, contando com a ajuda de um anjo esquisito sem pernas nem braços; sem ao menos um pensamento estético sobre a aparência do criador do cosmo, Deus fez construir a alma do homem à sua imagem e semelhança!

Fim, ou o começo?