Um meio inovador para se livrar de cadáveres

Imagem o Universo como um espaço topológico singular. Essa metáfora ajudará a compreender o que será tratado aqui. Cientistas da Terra ainda não sabiam, mas o mundo deles e um outro mundo estavam conectados através de um “Cut Locus”. Isso implica que Terra e esse outro mundo teriam uma relação. O mais grave vem a seguir: o intervalo entre ambos os mundos estava ficando relativamente mais curto, causando consequências impactantes para as populações de cada um deles. Este relato pretende abordar como uma dessas consequências pode irromper no cotidiano de um e de outro mundo.

A seguir, o relato.

Em determinada cidade, a Máfia era implacável e invencível. Um dos pilares dessa força estava na sua capacidade de matar e ocultar corpos com uma habilidade inaudita. Vejam o que houve com Jimmy Hoffa, por exemplo. Porém, os recursos tecnológicos avançaram até o ponto em que auxiliou fantasticamente a polícia no combate ao crime: a capacidade de rastrear qualquer cadáver e de descobrir o autor do homicídio. Ficou impossível para criminosos matarem alguma pessoa e saírem impunes porque conseguiram se livrar do corpo (”sem corpo, sem crime”). Qualquer assassino seria pego. Não importa onde ele escondesse o corpo, não importa o que ele fizesse com o corpo, seria descoberta. Evidente que isso prejudicou a Máfia, que ficou incapaz de cometer homicídios com impunidade. Mas o acaso (?) reservou algo para os bandidos.

Depois de capturar um caloteiro, a Máfia o levou para um depósito abandonado de bebidas. Poderiam fazer de tudo, menos matar o cara. Estavam tentando pensar em alguma maldade não letal. Não demoraram muito.

“Segurem bem e garantam que ele fique com a cara levantada o tempo todo”, disse Albert, o subchefe do bando, enquanto colocava o soco inglês. Dois capangas seguram o caloteiro. A vítima estava amordaçada. Outro capanga assiste.

“Segurem bem!”, disse Albert aos companheiros. O serviço tem início.

Depois do serviço. Albert e outros dois membros - Mike e Carl - conversam.

"Vamos voltar para a casa do Chefe. Ele quer que a gente esteja lá no horário marcado. Hoje é dia!", disse Albert.

"A gente não vai ter que jantar lá, né? Os cozinheiros do Chefe são péssimos!", afirmou Mike.

"Reclama com o Chefe", diz Albert.

"Tá doido? Ele parece que gosta do cara, que trabalha para ele há anos", retrucou Mike.

"Qual é a comida que você não curte?", perguntou Carl. "Eu nunca comi um único prato lá".

"Todas ou quase todas. Não é que não curta a comida em si. Pra mim, é mal-preparo. Vejam, por exemplo, a Zuppa all-omertà. Parece que o cara exagera no toucinho", afirmou Mike.

"Ele exagera com o toucinho, porque o tocinho é uma delícia. Reclama com o...", disse Albert, quando foi interrompido.

"Não vou reclamar nada. Não sou maluco de chegar na casa de um homem como o Chefe e insultar a comida dele", disse Mike.

"Medroso", provocou Carl, aos risos.

"Olha só quem fala. O sr. Clemência! Não participou ativamente do serviço hoje", acusou Mike, cujo cenho passou a expressar uma ínfima fúria. "Quando você vai sujar as mãos de verdade, hein?"

"Não é a você que devo explicações...", disse Carl.

"Quê!?", perguntou Mike, cuja fúria aumentava.

"Calem a boca, o Chefe ligou de novo", disse Albert.

"Pergunta se vamos ter que jantar lá", afirmou Mike.

Albert, Carl e Mike têm suas próprias histórias. Todavia, um fio enroscou ambos e os puxou. Agora um elemento os conecta e os prende. Albert, ou Al, era um playboy. Filho de pais abastados, fazia sua própria “renda extra” vendendo drogas. Numa dessas aventuras, foi pego pela Máfia local. Conheceu o Chefe, que acabou encantado com sua retórica e suas habilidades de vendedor. Os outros dois são suburbanos. Carl começou fazendo serviços para a Máfia para ajudar a família, a mesma história de outros milhares. Mike era o durão que peitou mafiosos antes dos rastreadores da polícia. Durão mesmo ou louco? O Chefe o recrutou por causa de sua conduta destemida. Os três estão no depósito tentando resolver um dilema. Podem fazer tudo, menos apagar o cara. Mas e a história do caloteiro? O adjetivo já diz tudo.

Depois de falar com o Chefe, Albert desligou o celular.

"O Chefe não quer que a gente vá hoje, disse Albert.

"Ainda bem! Não vou comer aquela sopa ruim!", disse Mike, que chutou uma latinha do depósito em comemoração.

Ao prestar atenção na direção que a garrafa ia, Mike notou algo inacreditável. Tão inacreditável que ele nem se preocupava mais com o jantar. Para saber se não estava louco, ele chuta outra latinha na direção de uma das paredes do depósito. Mas em vez da latinha bater e voltar, ela desaparece como se estivesse entrado em algum portal. A mesma coisa aconteceu com a latinha chutada por Carl. Os mafiosos ficaram embasbacados. Aproximaram-se do suposto portal. Eles ficaram jogando latinhas e vendo elas sumirem no meio da parede. Olharam por trás da parede onde estava o portal e não viram nada estranho. Questionaram-se sobre o que havia do outro lado.

Então, todos tiveram a mesma ideia. Pegaram o caloteiro e o jogaram no portal.

“Para onde será que isso aí leva”, perguntou Carl.

“Não sei e, para ser sincero, não quero saber”, disse Al.

Ficaram ali esperando por horas. Para ver se o dedo-duro voltava. Não voltou. É claro que isso deu à Máfia uma ideia que, se posta em prática, poderia enfim driblar a tecnologia da polícia. Mas era preciso mais “testes”.

Capturaram um outro caloteiro, levaram-no para o mesmo local. Executaram ele. E jogaram o corpo no portal. Os mafiosos estavam apreensivos, pois se estivessem incorretos, a polícia com certeza os pegaria.

No entanto, passaram-se dias e nada. Durante meses, começaram a capturar e matar inimigos, delatores, infiltrados e traidores com uma intensidade até maior do que o período anterior aos rastreamentos de corpos. A Máfia fez questão de comprar o depósito abandonado. O portal se tornou o lugar de desova perfeito. A polícia local notou que estava havendo muitos desaparecimentos, mas os rastreadores não detectavam nada. Como a Máfia estava conseguindo dribá-la, questionou a polícia. Suspeitavam que a Máfia estaria mantendo suas vítimas presas em algum lugar ou que então tinham conseguido vencer a tecnologia. Só que não podiam provar nada. Mesmo assim, isso não significava que a Máfia estava livre de ser pega para sempre.

Depois de terem detectado um delator, Carl e Mike o levaram até o depósito abandonado. Mike queria torturar o cara antes, porém Carl impediu isso atirando na cabeça do delator e jogando o corpo dele no portal. É claro que Mike odiou e a tensão entre eles só aumentou. Seria a rotina criminosa normal se não fosse por um detalhe. Cinco minutos depois, saiu uma pessoa de dentro do portal. Carl e Mike ficaram assustados e apontaram suas armas.

O ser que saiu do portal era idêntico a um humano. Ele usava um uniforme que se assemelhava ao da polícia. Seu rosto era macilento e ele tinha um corpo musculoso e imponente. Os Mafiosos atiraram nele. Porém, as balas paravam no ar e caíam como se o ser estivesse protegido por um campo de força. Uma arma se materializou na mão do suposto homem e ele atirou na cabeça de Mike, que morreu na hora. Carl largou a arma e pediu para não morrer.

"Mas... mas como?! O que é você? Como saiu...?", perguntou o trêmulo Carl.

O suposto humano o pegou pelo colarinho. "Avise a seus superiores", ele disse, com ar firme e imponente, "Se vocês continuarem, vamos intervir neste mundo, entendeu!?" Ele não respondeu a pergunta sobre o que seria o portal, teria que explicar geometria riemanniana para o mafioso, mas não queria perder tempo. Há especialistas em física em matemática que não entendem nada, que dirá um bandido leigo.

Carl retornou assustado e contou a Albert, que se manteve um pouco cético. Albert deu uma surra nele e os dois voltaram ao depósito. O corpo de Mike ainda estava lá. Os dois carregaram o corpo de Mike e jogaram no portal. Mas antes de irem embora, toparam com outro homem que saiu do portal. Dessa vez ele se vestia todo de preto e usava uma máscara que parecia de ninja. Albert começou a disparar e as balas paravam no ar.

“Eu disse! Eu disse, caramba! Tá vendo aí!?”, gritou Carl. O Homem atirou na cabeça dele. Albert precisou descarregar o pente da arma para notar que atirar era inútil. Ele tentou fugir, mas o Homem atirou na perna dele. Em seguida o arrastou até o carro, o colocou no banco do motorista e exigiu que ele o levasse até o Chefe. Sem muita escolha, Albert o levou.

O Homem obrigou Albert a fingir que estava tudo bem para o porteiro da mansão do Chefe, que abriu o portão. Assim que entraram, o Homem deu uma coronhada em Albert, que desmaiou, e um tiro na cabeça do porteiro, matando-o instantaneamente. Percebendo o perigo, seguranças da mansão tentaram reagir, mas as balas nunca atingiam o Homem. Houve um massacre. Enquanto tentava fugir com a família, o Chefe foi capturado pelo Homem, que o obrigou a ir ao seu próprio escritório. Sua família fugiu sem ele.

O Chefe estava embascado com as habilidades do seu captor. Ele nem conseguia encarar o cara. "Quer me pegar? Passou na frente de um monte de gente na fila, rapaz", disse o Chefe. "Quanto você quer? Eu te dou o que você quiser, posso te dar...".

O Homem tirou a máscara. Era o Caloteiro, o cara que foi jogado vivo no portal. Ele explicou ao Chefe que a Polícia Especializada do outro mundo passou a treiná-lo desde que começou a cair uma quantidade desabalada e contínua de defuntos da Terra para lá. Como ele veio desta Terra, sabia quem estava jogando os corpos e como encontrá-los.

“Você!? Mas... mas como...? Eu pensei que... você já era! Não pode ser! VOCÊ JÁ ERA! VOCÊ NÃO EXISTE!", começou a gritar, enquanto tentava, em vão, se soltar das algemas.

O Homem simplesmente virou as costas e foi embora.

Levou alguns minutos para o Chefe entender. Havia uma montanha de corpos na mansão. Mas os corpos mais importantes eram de algumas vítimas da Máfia que foram trazidas de volta à Terra por alguém da Polícia do outro mundo. A Polícia da Terra só precisaria usar do rastreador para encontrar os corpos e pegar os culpados. Os mafiosos sobreviventes foram presos. O Homem voltou e atravessou o portal. Seu novo lar era o outro mundo. E o portal, é claro, foi fechado para sempre. Mas o intervalo entre a Terra e seu Ponto de Corte continuava a diminuir. Outros portais poderiam aparecer a qualquer momento.

FIM

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 28/01/2024
Reeditado em 29/01/2024
Código do texto: T7986702
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