A SEDE DE VERTEX - (Contra-contos #8)

A SEDE DE VERTEX

A bola rolou, rolou, perdendo o impulso e parando.

Nada mais natural, atendendo às leis físicas da natureza e estas não admitem desobediência, transgressão, violência ou violação. Não dá para violar as leis da natureza – e quanto às leis criadas pelo homem a coisa pode ser outra. E as chamadas ‘leis de Deus’? Outra coisa também.

Arrependimento, remorso, medo e vergonha ou simples incômodo são como marimbondos revoando em volta, sempre prontos a ferroarem, tirando o sono, apetite pouco a pouco.

Marimbondos muito perigosos e maliciosos, com a mania de irem cansando o homem até ele perder o tino e resistência – aí empurram pelo abismo abaixo.

Algo parecido àquela história de que mulher, perdendo-se com um, liga pouco a se perder com mais de cem, feita uma cesta ela se torna cesteira e faz quinhentas por ano, tudo depende de tudo.

Perseguido pelo remorso e arrependimento, Belloso seguia vivendo mas percebia o declínio, não tanto da idade e tempo implacável, mas da consciência pesada.

Quanta coisa fizera ou deixara de fazer e, na opinião de outros, errada!

É que diziam isso ou, pior ainda, faziam senti-lo.

Milagre ainda trabalhar, porque a lei da vida sabe ser severa, quem não trabalha não come, passa fome e é empurrado ao precipício, encurta os dias.

Às vezes Belloso se rebelava e indagava a si mesmo: ‘E daí? Todo mundo tem de morrer um dia, que diferênça faz morrer mil dias antes? Do jeito como acontecem acidentes, estamos sujeitos a morrer desde o dia em que nascemos. Pra morrer basta estar vivo…’ Consolo falso, dito com fumaças de heroísmo para procurar levantar coragem, ânimo.

Fato é que não o deixavam em paz. Conhecidos, semi-conhecidos e até desconhecidos. Bastava olhar para ele e todos percebiam seu jeito culposo, ar de vítima irrecuperável. Uma outra lei humana diz: ‘ Cão danado, todos a ele!’ não o poupavam.

Aquela bola só podia ser outro tormento que o vinha atenazar.

Caíra no pequeno quintal de sua casa de vila, devia ter vindo do quintal do vizinho.

Mas os moleques infernais não estavam lá, estivessem o barulho e gritos seriam claramente ouvidos.

Do outro lado? Também não, todos haviam saído, uns trabalhando, outros estudando, a casa fechada e sem vivalma.

Veio do quartel dos fundos? Talvez algum soldado houvesse jogado a bola. Mas, pensando e examinando melhor, a bola não era de futebol, plástico mole para criança brincar.

Era – diferente.

Olhou melhor, aproximou-se.

A bola parada, dela saía zumbido leve quase imperceptível. Estendeu a mão devagar e sentiu a palmo de distãncia, que dali saía calor enorme. Recolheu a mão, ficou olhando.

Ora essa, furinhos na bola, parecia-se a uma porção de janelinhas pelas quais formigas pudessem espiar…

Esférica a bola, nunca se viu bola que não fosse esférica, de cor cinzenta prateada, quente à beça, aqueles furinhos…

Apanhou o balde próximo, encheu no tanque, mudou de idéia e trocou pelo regador, jogou água por cima borrifando a bola quente.

Devia ter caído de um avião… Mas de que jeito?

Caída de avião, teria batido no chão com força e caído em pé. Só a percebera quando viera devagar, quase tocando seu ombro direito, baixando ao chão em trajetória que, lembrava-se agora, não fora normal.

A bola tinha movimentos esquisitos, diferentes.

Dela saía agora, vapor de água, o líquido espalhado com o bico do regador chiava um pouco ao se aproximar da esfera e se tornava vapor.

Teve medo – aquilo podia explodir?

Ao mesmo tempo atirou o medo na direção de costume – ao diabo com os medos quando estava em sua casa e sozinho, só se morre uma vez na vida. Estava em sua casa, não ia sair correndo, dali seria difícil expulsá-lo.

Ademais não fora declarada guerra alguma que soubesse, exceção dos conflitos armados em três ou quatro pontos diferentes do mundo. Os vietnamitas não teriam a capacidade de atirar uma bola quente, explosiva ou não, em seu quintal. Aquela guerra não era sua.

Bem, era ver o que acontecia. Terminada a água do regador, aproximou a mão e sentiu o calor bastante diminuído, a bola de metal – parecia metal – esfriara. Encheu de novo o regador, desta vez derramou com mais capricho, o vapor não mais saía e viu que de fato esfriara a esfera misteriosa.

Recuou instintivamente ao notar, instantes depois – pelos furinhos surgiam luzes fortes! Havia luz dentro do negócio! Apagada antes, acesa agora! Não em todos os furinhos mas por alguns jorrava luz à penumbra do entardecer. E furinhos acendiam, outros apagavam, voltavam a acender…

Sozinho em casa, sem família, não ia chamar o vizinho para ver. Não se interessava por mostrar a novidade a alguém, não era garoto para ver balão no céu e sair gritando ‘ALÁ UM BALÃO, primeiro mestre!’ Mas o impulso lhe ocorrera.

Bem, não pretendia mexer naquilo, ao menos por enquanto.

Se fosse para explodir, já teria explodido. Não estava tão quente quanto antes, não oferecia perigo de pôr fogo aos cacarecos amontoados na parede do quintal, táboas velhas, garrafas vazias, colchão inservível.

Mas as luzinhas apagando e acendendo eram sinal de algo extraordinário.

Nunca ouvira falar de coisa assim, bola com luzes internas. Pensou bem, jamais tal ocorrera, tinha certeza.

Estava diante de novidade, a novidade viera de algum lugar – devia ser do ar, do céu – e caíra no quintal. Pequeno o quintal, mas ali aquela bola luminosa caíra, era aceitar o fato ou acabar de se compenetrar de ter endoidado.

Com receio de ter endoidado ele se levantou e foi à cozinha preparar a refeição.

O enigma apresentado por tão misterioso fato só estava servindo para lhe desmanchar os pensamentos, incomodá-lo com a idéia de loucura, de estar vendo coisas.

E chamar vizinhos para mostrar e verificar se eles também viam e ele, portanto, não estava doido, não apetecia. Se estava ficando doido, sabia endoidar sozinho. Ainda dava para preparar a comida, fazer o prato e se pôr a comer, sentado na calçada de cimento e olhando a bola caída sabe-se-lá-de-onde.

*******

No interior do asteróide artificial o Chefe de Operações foi informado: o pouso ocorrera sem maiores novidades, a travessia da camada atmosférica feita em velocidade suficiente para passar despercebida a observadores atentos ou sistemas automáticos de alarme contra invasão; ainda assim houvera aquecimento. Depois, quando a bordo estavam todos a ponto de torrar, acontecera algo trazendo resfriamento externo rápido. O resfriamento interno era providenciado pelos mecanismos de bordo.

-- Observador informa presença de ser monstruosamente grande a pouca distância. Observador informa, ser monstruosamente grande lança algo sobre asteróide, causa resfriamento parte externa. Observador não pode acreditar…

Tudo voltava ao normal a bordo, todos a postos, o pouso feito com êxito após a convulsão na trajetória desviada.

O piloto-chefe soubera conduzir o asteróide a pouso em superfície elástica.

Pareciam ter caído em cratera, buraco – só se via a atmosfera por uma faixa, em volta se achavam rodeados de fantásticas muralhas vinte a trinta vezes mais altas que o asteróide.

Os circuitos internos eram testados, o choque fora praticamente nenhum, tudo se achava a contento pois o resfriamento eliminara o calor insuportável.

O ser monstruosamente grande devia ser inteligente, talvez acolhedor – não verificara o calor do asteróide e o resfriara de algum modo?

Sua primeira tentativa de contato manual não se efetivara, ele recolhera o braço imenso e fora buscar o elemento resfriador. Tudo fora observado, os observadores viam e imediatamente passavam ao Comando e ao Quadro de Comando.

--Observador informa, ser gigantesco sentado com objeto circular, parece estar comendo.

O Chefe de Operações foi olhar, queria examinar pessoalmente.

E chegado à vigia pôde ver que o monstruoso, formas tão parecidas às suas, realmente estava a se alimentar pelo processo primitivo que sua raça também usara e do qual se libertara muito tempo atrás – levando à boca quantidades moderadas de substâncias nutritivas.

Mas as quantidades moderadas ingeridas por seus ancestrais não eram absolutamente moderadas, no caso a que assistia. E percebeu, com sensação horrível pelo corpo: nas quantidades que o monstruoso levava à bocarra cabiam perfeitamente 50 ou 100 criaturas como ele, de seu porte.

Se o monstro era comedor-triturador bucal, tinha capacidade de devorá-los quase sem perceber, tão pequeninos seriam. Aos montes, batalhões inteiros de uma vez. A tripulação toda em duas ou três bocadas.

O arrepio era natural, ao partirem em viagem pelo Cosmos haviam sido preparados para as possibilidades inacreditáveis a encontrarem. Mesmo assim o arrepio vinha, dos mais fortes.

Bem, nada de alarme.

Não podiam mais erguer o asteróide e dar o fora dali – além disso a criatura monstruosa, o gigante, não exibia interesse selvaticamente malévolo nem parecia estar com fome ou precisando de alimento. O teor no suporte circular parecia ser sua refeição preferida e habitual.

Fitava, visível e perceptivamente, o asteróide, calmo examinava o chegado do Cosmos, não parecia assustado, alarmado, irritado. De vez em quando olhava o disco onde colocara os alimentos, levava à bocarra uma quantidade que se punha a mastigar. No pescoço era evidente quando o alimento, após triturado – de novo a sensação estranha – passava e descia à parte inferior do corpanzil.

-- Reunião do comando! -- ordenou o Chefe de Operações voltando à câmara – Todos presentes em dois minutos.

Organizaram a pauta dos trabalhos.

Ao lado a companheira de viagem, elemento tornado indispensável a despeito dos preconceitos contra a presença de indivíduos do outro sexo, concentrava-se na tarefa de registrar os primeiros pensamentos manifestados em voz.

--Avaliar extensão de reservas de energia. Avaliar probabilidades de contato amistoso ou neutro com criatura lá fora. Travar contato inteligível e na medida do possível com a criatura. Preparar para desfecho inamistoso.

Os demais componentes do Comando iam chegando e assim que o último deles se apresentou, esbaforido por causa da distância percorrida a pé naqueles planos-andares imensos do asteróide, iniciou-se a reunião. A secretária leu a pauta, a palavra foi dada a quem dela quisesse fazer uso.

--Proponho neutralizar a criatura monstruosa com descarga de raios nervosos – e tal proposta, partida de quem partia, seria a de se esperar. A velha atitude militarista, fundamentada na teoria de que ‘a melhor defesa é o ataque’.

O Marechal 5627-A (marechais com sufixo ‘B’ eram da reserva, reformados e afastados da ativa por algum motivo) não faltaria à sua imagem, sempre propondo a iniciativa, isto é, sempre propondo ataques.

--A soma de raios nervosos capaz de atuar sobre a criatura seria grande dispêndio das reservas – observou o Comandante 572-A, encarregado da pilotagem e manobras do asteróide.

--E a referida criatura ainda não se manifestou com qualquer hostilidade conosco – fez ver o Psicólogo 86235-A, sempre apaziguador, seria capaz de querer entender a mais medonha e ameaçadora das criaturas do Universo antes de ser por ela devorado. -- Ao contrário, brindou-nos com arrefecimento que embora primitivo trouxe alívio e conforto. Há manifestação evidente de neutralidade ou mesmo amistosidade.

--Mas pode querer nos avançar e devorar! -- bradou o Marechal 5627-A, profissionalmente receoso de que alguém o pudesse incriminar por qualquer desastre por não ter agido, isto é, atacado-que-é-a-melhor-defesa em qualquer situação imaginável ou não.

--Convém observar que a criatura não parece faminta, embora esteja comendo. Isso quer dizer que pelo menos no momento não procura comida – obtemperou o Psicólogo 82635-A e diante da indecisão que sentia no Comando, aduziu: -- E se fosse nos usar para comer teria de abrir o asteróide ao meio, recolher-nos um por um com pinça e o total de nossas carcaças mal daria como sobremesa.

Observação do mais puro realismo, estribada em fatos e verdades axiomáticos, das que dispensam demonstrações, provas e teoremas artificiosos para se mostrar que um quadrado é um quadrado e a esfera esférica.

--Nunca se sabe! -- insistiu o Marechal 5627-A, teimoso como o mais obstinado dos crotídeos, criaturas extintas em seu planeta de origem mas cuja teimosía perdurava ao correr de séculos e milênios, legendária que fora.

A observação apresentada pelo Psicólogo 82635-A era dotada de fundamento, trazia certo reconforto e ao mesmo tempo humilhava singularmente os componentes do Comando.

Pensar que todos eles cabiam na bocarra imensa da criatura!

Que se ela pusesse a patorra em cima do asteróide seria capaz de arruinar todo o trabalho da mais refinada técnica de sua civilização!

--O momento exige mais clareza que debate sem proveito – decretou o Conselheiro 65-C, único a bordo recrutado (contra a vontade) junto às categorias inferiores à categoria ‘A’, aquela em que todas as profissões e setores eram designados.

‘B’ e ‘C’ eram respectivamente os aposentados e reformados afastados da atividade, e dos considerados extremamente longevos, que podiam muito bem ter dado com os pés no incinerador e não ficar enchendo a paciência de todos os elementos ativos da comunidade vertexiana com sua sobrevivência inacreditavelmente longa e sem atrativo algum.

Não se manifestara em qualquer momento da viagem, embora houvessem ultrapassado certas peripécias angustiantes, mas de certo modo a possibilidade de se ver devorado por aquelas fauces gigantescas ora ocupadas em inocente refeição devia tê-lo trazido de volta do túmulo.

O Conselheiro 65-C não parecia disposto a encerrar os dias no estômago de bicharoco algum, mesmo se tal bicharoco tivesse forma semi-humana. Afinal falara.

Olharam-no, todos eles, por prolongados momentos, espantados por sua primeira manifestação perceptível. Até aquele semi-defunto sentia medo diante do que via.

Se o monstro lá fora tivesse outra forma não tão absurdamente humana, o medo seria menor. Mesmo quem estava com pé, perna e banda de corpo na sepultura, como aquele fóssil vivo, era capaz de sentir medo!

De um certo modo isso se mostrava reconfortante.

‘Quem é vivo sente medo’ dito antigo na civilização vertexiana, fora o maior obstáculo à exploração do Cosmos – até chegarem os tempos quando permanecer sem explorar o exterior se mostrava o mesmo que enfiar a cabeça num triturador de metais em sucata para reciclagem.

O planeta, por dentro, estava mais do que minado e explorado, os recursos alcançavam seu ponto crítico de uso. Por mais reciclagem que fizessem o desgaste de energia punha fim à civilização.

Por isso haviam partido rumo aos demais sistemas planetários, mais obrigados do que por espírito de aventura e pionerismo, coisas sempre consideradas desvios de personalidade e tratadas na base de drogas sedativas e intervenções cerebrais, quando não puro e simples internamento final.

--Afinal o Conselheiro falou! -- disseram três deles ao mesmo tempo, o que era muito natural, tendo em vista a faculdade de transmissão de pensamentos que os assinalavam ao mesmo tempo como privilegiados e perseguidos. Em momentos surgia e servia, em momentos era a maior praga que podia atormentá-los, quer funcionasse ou houvesse por períodos desaparecido.

O conselheiro 65-C girou devagar a cabeça, fitando-os um por um, afinal explodiu:

-- E vocês pensam que eu estava morto? Estou mais vivo que nunca e aquela bocanhonha lá fora me agrada tanto quanto a vocês todos, seus merdas!

Somente a idade avançada do Conselheiro e o papel insustituível que deveria representar na expedição do asteróide podia facultar tal abuso de palavras como as suas, dirigindo-se aos demais. Ordens estúpidas as dos superiores que determinavam sua presença ali! Era fazer de conta que nada dissera e tomar conhecimento da veracidade do dito supremo: ‘Quem tem vida tem medo’.

--O Conselho tem que agir! -- exclamou o Coordenador – Não nos reunimos para bater papo! Secretária! -- era praticamente um berro e a fêmea deu um salto, jogou para cima os objetos que tinha à mão, havia sido pega desprevenida e também se apavorava com o medo coletivo sentido ali.

Levantou-se o mais depressa, elegante e femininamente que pôde, atendeu ao chamado:

--Se me der outro susto assim – advertiu – peço demissão e volto agora mesmo ao nosso planeta Vertex.

A expressão de estupor geral foi seguida por gargalhadas de todos.

--Volta de que jeito, minha santa? -- indagaram dois ao mesmo tempo, a transmissão de pensamentos continuava intercalada, era natural neles.

--Sei que se ela voltar eu vou junto! -- declarou peremptório o Conselheiro 65-C.

O ambiente melhorara sensivelmente, já se podia rir – sempre alguém propiciado, sacrificado, trazia resultados.

O susto levado pela secretária e a asneira seguinte tinham sido o sacrifício, ela imolada ao altar da dignidade inata ao ser civilizado, daí propiciados os deuses-instintos-impulsos dos demais, o medo fora rechaçado em certa medida, podia-se agora trabalhar com mais clareza e maior grau de liberdade. Ou de abertura de campo.

--Não viemos aqui para dar e levar sustos! -- proclamou o Psicólogo 82635-A, evidenciando em palavras o que estavam fartos de saber. Era mestre nisso, enunciar o evidente. -- O que se vai fazer em seguida? -- e a pergunta vinha como murro certeiro desferido no nariz do coordenador, encarregado da direção geral, sujeita a voto e veto do Comando.

--Nossa missão é estabelecer contato com as criaturas habitantes dos mundos considerados prováveis e favoráveis. -- o Coordenador parecia estar lendo em caderninho escondido, como aluno mal preparado porém bem equipado, os princípios fundamentais regendo a empreitada . -- Alguém tem proposta a fazer? Como travar contato com aquele… aquele... ser la fora?

--No momento ele segue ocupado em comer e não parece interessado em estabelecer contato conosco – atalhou o Comandante, sempre a par do que se passava, os observadores permaneciam ativos nas vigias. -- Acabou de engolir um pedaço de proteína que deve pesar dez vezes os nossos pesos somados. E mastiga-tritura com disposição.

--Isso nos dá tempo. Trata-se de criatura que podemos considerar praticamente amistosa – deduziu/asseverou o Psicólogo 82635-A, mais confiante. --Basta ver, como fiz ver, que nos arrefeceu a seu modo primitivo.

--Proponho irradiarmos mensagem auditiva a ele – adiantou o Etnólogo 8002-A, que reunia em si as funções de semanticista. -- Diremos que viemos em paz, procurando intercâmbio de materiais e dizendo logo que estamos a míngua de água.

E ele próprio arregalou/esbugalhou os olhos, como sempre ocorria quando em sua civilização de Vertex alguém pronunciava o nome desse material/substância/artigo/elemento absoluto e irrefragavelmente vital/essencial/sine qua nada.

Está claro que os demais, ao ouvirem a palavra, igualmente se puseram por 15 segundos esbugalhados/arregalados, alguns boquiabertos. Isso não causava mais espécie, tornara-se hábito automático, como respirar, incorporara-se ao comportamento fisiológico/psicológico de todos – já nasciam assim.

De fato aturdia agora pensar que a criatura despejara sobre o asteróide, pois se tornava então e telepaticamente evidente, e no evidente intuito de arrefecer-lhe o calor, uma prodigiosa quantidade desse líquido. Que desperdício!

O choque causado pela percepção tardia mas a tempo, da qual um observador não se atrevera sequer a participar descrevendo o que vira, levou-os a 75 segundos do mais estuporado silêncio. Era como se algo os paralisasse, corpos e espíritos, onde se achavam.

--E como falar-lhe? -- indagou finalmente o Comandante. -- Trata-se de criatura para quem nossas vozes, mesmo aos berros, não serão audíveis. Um ampliador de sons?

--Natural – confirmou o Engenheiro Chefe 7293-A. -- Ampliador que amplie nossa voz ao nível auditivo dele. Não tem graça alguma ficar berrando como um desesperado para se fazer ouvir… inteira falta de dignidade.

--E um redutor sonoro – propôs seu auxiliar, Engenheiro 62538-A. -- Já pensaram se ele falar ou gritar? Vai estourar nossos ouvidos, deve ter uma caixa sonora parecida à dos gritos do inferno.

Instintivamente meia dúzia dos presentes levou as mãos aos ouvidos, como a defendé-los. Dois se persignaram diante da referência feita ao inferno. Sempre havia os religiosos dando-se a conhecer! Não conseguiam evitá-lo.

--E que língua se usa, posso saber? -- voltava o Etnólogo 8002-A, carregando na ironia. -- Nós já sabemos que língua se fala neste planeta?

--Vai se experimentando falar a mesma coisa em todos os idiomas conhecidos, que até hoje são oito mil, setecentos e trinta e seis – o Conselheiro 65-C voltava á vida, embarcava na mesma canoa de ironia carregada, jogava o problema em cima da mesa como um protubo estripado. -- Começando hoje e dizendo uma frase de dez palavras de cada vez, podemos estar no meio da tarefa lá pelo ano…

--Calai-vos! -- determinou o Coordenador. -- Dispensamos tal tipo de conselhos – e se mostrava senhorialmente altaneiro, confiante em si. -- Precisamos de sugestões práticas. Se estamos sem energia para sair daqui, temos de procurar o meio de nos adaptar à situação do melhor modo possível.

--Proponho a projeção de imagens – sugeriu a Auxiliar 16745987-A, ainda jovem mas dotada de sentido prático, não era a primeira vez que os tirava de enrascadas. Em vista de seus desempenhos anteriores fora nomeada membro temporário do Comando, assistira a tudo calada. -- A escuridão se formou lá fora, podemos projetar imagens sobre alguma superfície, por uma das vigias.

O silêncio geral, os semblantes a se mostrarem surpresos ou fingindo indiferença e altaneria demonstravam o impacto da proposta.

--A Auxiliar 16745985-A está autorizada…

A jovem se ergueu; contrafeita ou indignada? Ninguém poderia saber, mas dela veio a interrupção abrupta e terminante:

--Não admito que me estropiem a designação!

Era pecado dos mais sérios naquela civilização: não se podia mutilar, deformar, trocar, errar o designativo de qualquer um deles. Uma dessas ordens estúpidas de quem comanda.

Por isso mesmo entendiam-se melhor na telepatia do vai-vem, ora funcionando ora não, do que trocando palavras com pessoas de quem não se podia errar os designativos numéricos.

O Coordenador engasgou, engoliu em seco, teve de descalçar a bota. Seria contemplado com dez meses em casa de correção, caso voltassem a Vertex.

--Peço perdão – e estava rubro, logo pálido – A Auxiliar 16745987-A está autorizada…

Fitando-o com firmeza a jovem pareceu abrandar a atitude, dava-se por recebedora das devidas satisfações. O cachorrão pagaria o resto quando regresassem a Vertex.

-- …a organizar imediatamente a projeção do que parecer mais adequado a este Comando. Questão seguinte – e o Coordenador não esqueceria o incidente mas retomava a plena autoridade de que os regulamentos ainda assim o investiam – e saber qual das projeções deveremos fazer em primeiro lugar.

Como problema, bem fácil de solucionar.

Começariam pelo princípio, pela projeção A, primeira na coleção destinada a esse fim.

Foi um corre-corre diante da urgência da situação. Em pouco tudo se aprontava, escolhia-se a superfície externa, o projetor lançava sua luz intensa e controle das imagens e sua nitidez era alcançado.

Estabelecia-se o primeiro contato inteligente entre a monstruosa criatura e o Comando do Asteróide Artificial 648374849673423-B.

*******

Enquanto comia o que ele mesmo preparara na véspera e guardara na geladeira, Belloso observava a misteriosa bola vinda ninguém (isto é, ele) sabia de onde.

Foi mastigando e comendo, observando e pensando. As luzes internas mostravam que lá dentro havia algum mecanismo, dispositivo, engenho que as fazia acender e apagar.

Assim ia pensando calmamente no que fazer, não havia pressa. Era noite, ia ouvir um pouco de rádio e depois deitar-se. A bola podia ficar ali, não estorvava e ninguém entraria para mexer; sua curiosidade nunca fora das mais acendradas.

Mastigava os últimos bocados do prato, olhando menos para a bola, quando algo chamou a atenção. De minúsculo furo um feixe de luz mais forte se projetava – a noite quase fechada – pela escuridão e alcançava a caixa de papelão encima da lata de lixo. E ali tomava o formato de retângulo, de início apenas luminoso, logo surgiam imagens.

A surpresa não podia ser maior. Um cineminha-televisãozinha?

No retângulo que teria quando muito um palmo de comprimento, imagens apareciam e se sucediam. Com ronco de espanto deixou de lado o prato e colher, adiantou-se para se pôr a jeito, ver melhor o que se projetava. E com isso atravessou o feixe de projeção, a imagem desapareceu.

Um tanto atordoado, olhou em volta – nada feito, a imagem sumira. Mas ao movimentar-se de novo, agachado, percebeu a imagem no lugar de antes e ali ficou agachado, olhando bem para o que decorria na pequenina tela de projeção, o feixe de luz vindo da bola tornava claro que se tratava de projeção.

--Ser monstruoso parece meio estúpido, o que é natural – observou o Etnólogo 8002-A, compreensivo e sentindo-se bem melhor ao verificar que tamanho não conferia inteligência à criatura imensa. -- Teve a atenção chamada pela projeção, foi olhar melhor e se pôs na frente, está recebendo as imagens na parte traseira do corpo, mas alí ele não enxerga… Ah, melhorou! Saiu da frente e está abaixando e assiste com grande atenção. Prossiga a projeção!

Toda a tripulação do Asteróide Artificial 648374849673423-B, vindo de Vertex, centenas de criaturas, observava o observador, isto é, fitava o bicharoco-monstro-gigante que, por sua vez, fitava as imagens projetadas na superfície mais adequada encontrada no ambiente.

E apenas o Conselheiro 65-C observava os observadores do observador, isto é, vigiava aqueles companheiros que vigiavam o monstro-bicharoco-gigante.

Como se pareciam a crianças tolas, aqueles coplanetários!

--Como parece criança esse monstro-fenômeno-bicharoco lá fora! -- comentou o Coordenador, vendo a atitude atenta do gigante, este de olhar cravado na superfície de projeção. -- Tão grande e tão bobo! Eu não agüento mais ver esse filme!

A projeção demonstrara por imagens e não com idiomas, desenhos, palavras ou qualquer outro recurso problemático, a qualquer ser dotado de um mínimo de descortínio, o que se passava e o motivo da visita feita pelo asteróide vindo de Vertex.

O grandalhão podia ser bobo, mas positivamente não era um animal acéfalo e sem alguma cultura e inteligência, a observação do local-cratera onde haviam pousado demonstrava a existência de artefatos e apertrechos positivamente feitos pelo monstro local ou seus associados.

Fora de dúvida que havia sinais de civilização. Parecia mais possível falar a um animalão daqueles do que a micro-organismos estúpidos que só sabiam fazer duas coisas: comer e serem comidos.

A projeção seguiu, desenrolou-se, terminou.

Belloso deixou-se cair de costas, esparramou-se no chão, de cara para a esfera, a pouca distância dela. Não era possível!

Daquela porcariazinha, surgida o diabo dissesse de onde, tinha vindo um projeto, quer dizer, uma luz projetada a passar cineminha para ele!

Não que tivesse entendido patavina daquilo tudo, mas era evidente que devia ter sentido, aquelas imagens mais que coloridas, tridimensionais de troços que pareciam cidades, apartamentos vistos por dentro, equipamentos mecânicos, bolas soltas no espaço por toda a parte e girando umas em volta das outras, e figuras humanas, com roupas engraçadas e esquisitas…

Que diabo era aquilo?!

Pensou, adiantou-se e tomou a bola nas mãos, levantou-se e olhou mais de perto.

*******

No interior do Asteróide Artificial 648374849673423-B, formou-se tumulto, todos se agarraram ao primeiro apoio encontrado.

Felizmente envergavam trajes apropriados, amortecendo quedas, esbarros, solavancos, não permitiam acidentes quando o asteróide se via sujeito a trancos e barrancos.

A gritaria coincidia com os avisos-alarmes-descrições dados pelo sistema de comunicação interna: ‘O animal está levantando o asteróide! Segurem-se todos!’ e logo ‘Todos a postos para emergência!’

Eram dezenas os que, agarrados como podiam ao suporte mais próximo, indagavam como era possível situar-se nos postos de emergência diante da emergência que sacudia o chão e lhes tornava impossível movimentar-se, mal e porcamente só podiam se manter agarrados à parede ou apoio mais próximo.

Sempre as ordens estúpidas!

Mas as sacudidelas não foram muitas, o animalão parecia apenas estar-se erguendo e o fazia com certa cautela e – pensando bem – erguendo com cautela o asteróide, levando-o mais próximo ao rostão-carantonha para examinar melhor.

E a estabilidade, chegados diante dos olhos do criaturão, se firmou, todos puderam correr aos postos de emergência.

A pavorosa sensação de se ver examinado curiosamente por dois imensos olhos, aparecidos diante das vigias! Olhos que piscavam, pêlos imensos a servirem de cílios e pestanas, globos oculares não muito menores do que o próprio asteróide! Ou assim pareciam aos mais imaginosos.

Belloso sempre tivera boa vista e embora os furinhos na bola fossem pequenos dava para ver algo lá dentro, tudo estava bem iluminado em alguns lugares, às escuras em outros.

E não acreditou no que via: figurinhas se moviam, figurinhas que pareciam humanas, porém minúsculas!

Não agüentou – recolocou a bola no chão, com suavidade, foi buscar a lente de aumento que pertencera à mãe, filatelista, e que raramente usava agora, guardada para caso de necessidade.

Dentro do asteróide as ordens se sucediam mas tudo confirmava certa afabilidade do bicharoco-monstro-animalão.

Só cabia aguardar os acontecimentos, verificar porque ele os depositara no solo e se afastara um tanto apresado.

Logo novas sacudidas, que apanharam a todos prevenidos e bem agarrados ou com cintos de segurança, e eram de novo erguidos do solo.

Dessa vez um dos olhos do animalão estava fechado e diante do outro havia imensa calota vítrea, fazendo o olho do ser gigantesco tornar-se aparentemente dez vezes maior. Alguns não conseguiram evitar os gritos de medo, os mais religiosos já não se limitavam a persignar-se, em altos brados pediam ajuda às divindades favoritas.

-- Está-nos observando com ampliador vítreo! -- berrou o Etnólogo 8002-A, primeiro a descobrir e entender o que se passava. -- Por isso o olho dele ficou maior ainda, também para nós o ampliador vítreo dele funciona, também vemos ampliado!

A explicação vinha confirmar as premissas de certa civilização do bicharoco.

Afinal tinha ampliadores vítreos, afinal se aperceberia da existência de criaturas dentro do asteróide, para ele tão pequeno. Criaturas para ele pequeninas, mas era de contar que lhes soubesse respeitar o tamanho.

Belloso olhou bem, parou no que olhava, pareceu paralisado por longo tempo.

Na vigia que observara dando para o andar-piso mais amplo onde se concentrava um número maior dos pequeninos seres, aconteciam coisas que nunca acreditaria possíveis. Eram muitos, os piolhinhos! Piolhinhos de formato humano, roupas parecidas às do cineminha a que assistira, agora ligava um fato a outro.

E estavam dançando!

No salão principal do asteróide, o Coordenador notara achar-se sob observação mais interessada do gigante talvez porque ali houvesse número maior de tripulantes e farta iluminação, as ordens tinham sido dadas, os sons postos no ar e logo todos os tripulantes dançavam, pois sob evidente observação do animalão a dança demonstraria o grau de boa vontade, sentimentos elevados, pacifismo, arte, poesia, elegância, graça, beleza e tudo o mais que a dança sabe e pode demonstrar ao mesmo tempo.

Não que o Navegador 937564-A tivesse a mínima intenção ou prazer de dançar com o Mecânico-Chefe 39233-A, para ele a dança sempre fora uma das coisas mais mais ridículas e estúpidas de todo o Cosmos, mas ordens eram ordens e a emergência emergência.

Tratava-se de fazer ver ao animalão-bicharoco que havia gente lá dentro, gente fina, suave e delicada, civilizada e de bons sentimentos e melhor procedência, capaz de dançar; apenas lhe ocorria o medo de que o gigante percebesse a falcatrua desenrolada diante de seus olhos imensos, aquela idiotice de homens dançar com homens – o que iria pensar deles?

Formaria mau juízo logo de início, aos primeiros contatos?

E piorando a coisa notou que a Secretária 63845-A estava mais do que atracada com a Taifeira 73645-A, como se da dança das duas dependesse o sucesso da missão e a vida de todos – o que podia igualmente parecer singular e pouco recomendável ao animalão.

Seriam eles, cidadãos honrados de Vertex, interpretados como homosexuais?

Cada ordem estúpida que vinha do Comando!

Mas dançar era preciso, tinha que reconhecer: Afinal convenceu o parceiro de dança, que parecia mais constrangido ainda do que ele, a se aproximarem das duas lésbicas (ou assim se estavam portando) e com rápido movimento empurrou de si o Mecânico-Chefe 39233-A, praticamente atirando-o em cima da Taifeira 73645-A e por fim, e com maior gosto, atracando-se à Secretária 63845-A, aquela vigarista que durante a viagem resolvera dar a todos os homens de bordo, menos a ele – ou assim lhe parecia.

Chegara seu momento e nessa dança emergencial ele soube aproveitar as ensanchas, explorou-lhe descaradamente a anatomia e não encontrou resistência da apavorada criatura.

--Continuem dançando! -- vinha a ordem interna. -- Ele está gostando!

Era observação do Comandante, que com a companhia do Conselheiro 65-C, velho demais para dançar (consultado/intimado declarou que preferia morrer) constituía a exceção, o único a não se atirar desesperadamente à dança propiciadora e bastante inesperada e improvisada, fora de todos os regulamentos e previsões, mas que fazia a bocarra do gigante mover-se em iniludível sorriso, expressão de prazer.

--Estamos agradando! -- berrou o Etnólogo 8002-A, observando também, embora atracado corpo-a-corpo lúdico-musical com o rígido e empertigado Auxiliar 700032-A; criatura de corpo infexível, que mal e desastradamente se deixara arrastar e lhe pisara os pés diversas vezes com as sapatorras.

--Quem sabe ele nos contrata como circo de pulgas valsantes? -- berrou algum desesperado e nem com transmissão de pensamento (ninguém estava muito atento a isso) deu para deslindar se falava sério ou estava de safadeza.

--Vou te mostrar um passo novo que só eu conheço, minha santa – propunha o Navegador 937564-A à Secretária 63845-A, agora que a tinha à sua mercê e, graças à exploração feita até então de sua anatomia, arrebatado por avassaladora e incontrolável sanha libidinosa,.

Arrastava-se despudoradamente para o compartimento destinado à guarda do material de limpeza, logo fechava a porta. Ela, sem saber se devia resistir, sem saber o que devia fazer, acabou colaborando – e gostando.

No pânico e nas emergências as mulheres de Vertex podem ser verdadeiras revelações.

Assim se estabeleceu relação um tanto impássica.

Belloso, por si, divertia-se e se maravilhava com o que via lá dentro, embora detalhes lhe escapassem às vezes porque a lente de aumenrto não se mantinha firme, numa das mãos a bola com a gentinha miúda, na outra a lente focalizando as portinholas – agora as percebia.

No asteróide o Comando dava tratos à cabeça para saber o que fazer em seguida.

E como os dançarinos, diante da emergência, haviam-se dedicado à dança obrigatória com mais entusiasmo e empenho de que seria prudente, em algum tempo começaram a esmorecer e cansar.

Dançavam agora com menos empenho e entusiasmo e decididamente a maioria não viera lá de Vertex para bailar diante dos olhões de um gigante abestalhado, rindo ou de cara fechada.

A atmosfera interna dava sinais iniluidíveis de cansaço e constrangimento geral. Todos a se sentirem cada vez mais bobos. Cada ordem estúpida o Comando emitia!

Enquanto observava o gigante o Comandante era acossado por absurdo pensamento de que no compartimento de limpeza alguém se entregava a prazeres da carne, mas arredou tais sensações importunas que não vinham ao caso, tinha mais o que fazer.

E ao seu lado o Conselheiro 65-C, homem calejado e profundo conhecedor da natureza humana pelo ponto de vista de experiência histórica arredava de si o pensamento importuno de que em tal emergência dois cretinos estivessem a se desfrutar num compartimento fechado e próximo, em meio a baldes e vassouras, porque tinha algo mais importante a cogitar.

Pelo pensamento transmitido, dom de sua civilização, veio a conclusão inevitável.

O Coordenador cessou o baile em que se empenhara comedida e cerimoniosamente com a Taifeira 76587-A e tomou a direção da Mesa de Comando, sentou-se e sua voz se ouviu por todo o asteróide , pondo fim à dança emergencial.

--Vamos lembrar que nossa civilização se fundamenta na dignidade do ser humano – principiou. -- E que podemos mais facilmente morrer do que declinar de nossos padrões de dignidade. Algum imbecil mandou dançar, foi? Pois que dance sozinho, nós temos tarefas mais importantes a cumprir. Providenciem o ampliador de som, providenciem a projeção do roteiro mostrando o que desejamos! O ser aí fora que entenda, ou procuraremos outro meio de fazé-lo entender.

As ordens estúpidas vindas do Comando!

O Comandante mandara dançar, todos sabiam disso pois lhe haviam reconhecido a voz e pensamento e agora fazia de conta que não se lembrava, não tomava a si a repreensão direta vinda do Coordenador, enchia os pensamentos com imagens e sensações absurdas de que em algum lugar trancado e em meio ao maior desconforto duas criaturar haviam-se dedicado à tarefa de fazer o amor, em condições psicológicas especiais, e que isso resultara em deixá-las inteiramente esfalfadas – uma super-descarga total, raridade tamanha que merecia mais atenção, não fora a emergência que tinham diante – ou fora? -- de si.

A dança terminava, Belloso notou que as figurinhas se movimentavam de um lado para outro como no cumprimento de tarefas, um corre-corre aflito de gente minúscula e preocupada com alguma coisa.

De que tinham medo?

Qual o motivo de sua aflição?

Pensou abrir aquilo… mas por onde e para fazer o que?. Enfiar o dedo? Ia matá-los de susto, com certeza. Como fazé-los ver que tinha boas intenções, não ia dar para os moleques da vila, que haveriam de estripar aquela bola engraçada em poucos minutos?

Belloso não era tão estúpido e o Conselheiro 65-C, retirado da azáfama da dança e o mais, estivera ocupado – inteiramente parado, imóvel, olhos fechados.

Na mente de Belloso começavam a surgir pensamentos curiosos e ele parou de rir , parou de olhar para o interior da bola, pôs no bolso a lente, segurou a bola com ambas as mãos e começou a pensar. Aquela ‘bola’ não era – uma bola.

Era uma espécie de naviozinho, foguetinho, aster… asteróide! Continha seres vivos, inteligentes, capazes de façanha tal como saírem de seu planeta e chegarem a outro, muito distante.

A projeção a que assistira, o ‘cineminha’ de imagens, começava a correlacionar-se mais e melhor – estava entendendo! Uma pessoa lhe contava mais ou menos compreensivelmente o que se passava, o que acontecia.

Voltou a tomar a lente, a olhar por uma das vigias.

A figurinha sentada, envolta em veste ampla, barba imensa para seu corpinho, chamou-lhe a atenção.

Mais que isso, o pensamento levou-o àquela figurinha. ‘Vou erguer o braço para tu veres quem sou, quem te fala pelo pensamento’, e quando fitava a figurinha de veste eis que esta ergueu o braço e acenou – era aquele!

A coisinha lhe falava pelo pensamento!

A surpresa crescia mas se tornava diferente.

Tratava-se de diálogo mental, porque Belloso por sua vez começava a dedicar mais atenção, no sentido de fazer perceber que a reconhecera, alertado antes pelo aviso de que ia erguer o braço.

E assim Belloso e o Conselheiro 65-C entraram em comunicação direta.

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Dali em diante tudo se resolveu com facilidade para astronautas e Belloso pois o velho Conselheiro 65-C, agora a mais venerada pessoa a bordo, a única que mantinha contato com o gigante, transmitia-lhe seus desejos e era atendido.

Só quando Belloso notou que amanhecia – passara a noite acordado e sem sentir, atendendo àqueles minúsculos e tão curiosos seres – a situação se modificou em parte.

Percebendo a inoperância e incapacidade do asteróide se mover dali, as reservas de energia esgotadas, fez ver ao velhinho que tinha algo mais a fazer, depois de lhes encher os tanques de bordo com água da torneira – a maravilha que fora aquela torrente, manancial em catadupas, enchendo os tanques vazios do asteróide, tanques imensos para seus tripulantes, com algo tão precioso quanto água!

Haviam enchido todos os recipientes vazios, improvisado outros, um dos pisos-níveis fora evacuado e usado como recipiente, cada porção daquele líquido valia tamanha fortuna em Vertex que eles não iam deixar de receber toda a água que pudessem, diante da boa vontade do gigante em lhes dar quanto desejassem.

E quando o Conselheiro 65-C indagou ao gigante o que este desejava em troca, o espanto de Belloso foi tão genuíno e claro que o Conselheiro se pôs a chorar como cotrico desmamado, comovidíssimo diante da sinceridade, pureza, boa vontade ingênita e índole espantosamente fraterna do gigante.

Sempre se usara o sistema de toma-lá-dá-cá, isto por aquilo, por toda a parte.

E agora chegavam a um orbe onde a maior de todas as riquezas era mais do que generosamente fornecida ao asteróide, em tamanha quantidade, em troca de… espanto, nada, não foi nada, pode levar e voltar depois para buscar mais, muito mais, se quiser! Eu paguei minha conta na CEDAE!

Belloso não conseguia compreender que uma quantidade de água como a da caixa e torneira do tanque correspondente a uma laranja de água, era fortuna bastante para derrubar toda a ordem social do planeta Vertex e que a desproporcionalidade de sua generosidade em ceder tanta água aos visitantes minúsculos não encontrava paralelo na história conhecida daquela civilização, que sempre tivera que lutar muito para conseguir um pouco do líquido.

A bordo do asteróide não ocorreu o pensamento de que tal preciosidade, a água, fosse artigo abundante no planeta.

Na aproximação, um tanto perturbada e tendo o planeta imenso meio encoberto por manchas que pareciam vapor da preciosa água, as superfícies lisas e esverdeado-azuladas não tinham sido interpretadas como – água – porque a visão de tamanha quantidade de tal riqueza simplesmente não penetrara nos pensamentos dos vertexianos.

Nem subconscientemente haviam percebido que aquilo, tudo aquilo, tamanha monstruosidade de quantidade de água fosse – água…

O choque em encontrar tanta, caso a pudessem perceber, haveria de enlouquecê-los por completo e se alguma sombra de notícia do fato chegasse a Vertex aquela sociedade-civilização avançada por certo receberia tamanho impacto que se destruiria mais depressa e completamente do que explosões sucessivas e onipresentes de energia atômica.

Chegado o dia, feito o intercâmbio possível, lotada aquela pequena bola-astronave com toda a água que podia fisicamente conter sem transformá-la num aquário, faltava apenas converter parte dela em energia para a viagem de regresso – ou de procura, pois o caminho fora meio perdido com incidentes da vinda.

Uma pequena porção de água bastaria para movimentar tudo, sua energia fabulosa – superior à dos átomos comuns – haveria de levá-la tranquilamente de regresso a Vertex.

-- Voltaremos, criatura imensa, de generosidade infinita – disse o Conselheiro 65-C, soluçando, outros choravam na mesa do comando. -- Se puderes ir ao nosso mundo… não, não creio que te seja possível… Mas haveremos de voltar e até lá haveremos de imaginar como te recompensar por tua grandeza, muito maior em tua dimensão de coração do que em tua dimensão corporal. Sabe que fizeste amigos. A gente de Vertex te sauda e se despede.

-- Boa viagem e breve regresso – foi o que Belloso conseguiu desejar, o sono finalmente o acossava com violência.

Pareceu-lhe que a esfera zumbiu, subia lentamente até a altura do muro, o galo do vizinho assustou-se bateu asas e cantou. A esfera cintilava, mas foi por instantes, como que desapareceu em pleno ar.

Belloso foi dormir, sentia-se muito cansado – mas estranha e inteiramente satisfeito. Sua vida se transformara, sabia agora que tinha amigos, a conversa fora longa.

Quando acordou o sol ia-se pondo sobre o horizonte e ele apenas vagamente se lembrava de um sonho absurdo que tivera, não sabia porque acordara tão tarde. Uma frase ficava, porém, na despedida desse sonho:

‘Sem lágrimas, que tal líquido não se perde inutilmente’

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Valpii 860501 - 791113

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A SEDE DE VERTEX

Forma parte da Coletânea

CONTRA-CONTOS,de Affonso Blacheyre, (1928-1997),

cuja biografia está publicada no RECANTO..

Trata-se do oitavo dos contos da coletânea.

(editado por Gabriel Solis.)

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Affonso Blacheyre

Affonso Blacheyre
Enviado por Gabriel Solís em 12/01/2024
Código do texto: T7974979
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