Selvagem humano
Quando o Coronavírus ficou para trás, o comércio reabriu imediatamente. Porém, aquele período de isolamento e quarentena trouxe consequências terríveis, deixando em muitas famílias o gosto amargo da miséria. Meu pai ao ver um anúncio no jornal, comentou que perto de nossa casa havia uma vaga para trabalhar como babá de cachorro.
Fui incentivada a marcar uma entrevista e não pensei duas vezes. Dona Ivone foi bastante atenciosa ao telefone, demonstrou grande interesse em conversar comigo e o salário parecia ótimo. Marcamos de nos encontrar numa terça-feira às 8 da manhã. Para causar boa impressão, cheguei antes da hora marcada. Nossa conversa fluiu rapidamente, senti que o emprego estava garantido, mas seu excesso de gentileza me trouxe desconfiança.
— Billy é um animal incrível. — ressaltou ela. — Esperto, observador, come qualquer tipo de ração e adora passear... Vai se preparando porque ele tem muita energia. Meu marido e eu trabalhamos juntos, nossas férias estão no fim e preciso deixá-lo em boas mãos. Ele é o nosso xodó.
Desempregada há meses, minha resposta foi automática:
— Pode confiar em mim.
O ambiente era muito espaçoso e arejado. O sofá bege de três lugares combinava com as almofadas em tom pastel. Ao entrar na sala, o que primeiro vi foi à escada e o belo tapetão cobrindo os degraus.
— Você também tem bichos de estimação, Gisele?
— Sim, minha gata Fifi é um poço de preguiça, mas eu adoro aquela bolinha de pelo. Não vivo sem ela.
— Quem bom. Se você a ama, com certeza vai amar o Billy. Digamos que ele seja um pouco grande, mas fique tranquila que ele é obediente. Pelo menos na maioria das vezes.
Apesar de não ter filhos, dona Ivone deixou claro que Billy preenchia totalmente essa lacuna. O marido apareceu e disse:
— Então é você a nova babá? Muito prazer, meu nome é Álvaro.
Apertamos as mãos.
— Muito prazer, meu nome é Gisele.
Por fim, eles foram até o quintal buscar seu bichinho. A expectativa tomou conta e novamente pressenti algo estranho. Foi quando um homem descalço com cabelos desgrenhados, nariz pontudo e aparentando 23 anos entrou em cena. Ele rolava no chão, latia sem parar e colocava a língua de fora, tornando a situação vergonhosa. Seus gestos eram idênticos aos de um animal. Até a forma como sacudia suas bochechas ao lamber a água da tigela causava espanto. Suas unhas compridas e sujas também chamavam atenção, seus dentes eram tortos, mas ele quebrou rapidamente os ossos que lhe foram atirados, pulando no ar sem desviar os olhos do alimento.
O homem cão se coçou usando a perna. Quando viu que tinha visita começou a rosnar. Observando minha reação, Ivone chamou Billy para perto dela. Vendo meu semblante, Álvaro perguntou se havia algum problema, e eu sinceramente não soube responder. Aquela família era bem peculiar. Do tipo que foge dos padrões, causando verdadeira estranheza em quem se aproxima.
Tentando ser esperta, comentei que se a intenção era testar meu senso de humor, tudo bem. Eu conhecia diversos programas de pegadinha. Já me deparei com inúmeras e adorava. O casal detestou a insinuação.
A fera humana continuou latindo. Esperei alguns instantes para ver o que seria dito em seguida, mas pelo jeito ninguém estava brincando. Ivone afirmou que todas as meninas entrevistadas desistiam do emprego ao se deparar com seu amado “cãozinho”. Jurava não compreender a recusa, pois era um bicho como outro qualquer. Falou sobre seu imenso afeto, seus cuidados e até sobre o veterinário. A casinha onde Billy dormia tinha muito conforto, etc... Então vieram as recomendações:
— Você vai sair com ele de manhã e dar banho duas vezes por semana.
— Banho? — murmurei perplexa. — Querem que eu dê banho num marmanjo?
Ivone, visivelmente nervosa respondeu:
— Não é um marmanjo. É nosso bicho de estimação. Você será muito bem paga para desempenhar seu trabalho. Billy às vezes é um pouco agressivo, mas quando ganhar a confiança dele...
— Agressivo? Não foi assim que o descreveu agora a pouco.
Billy me encarou de um jeito ameaçador. Quando senti a mordida no calcanhar, soltei o grito mais doloroso dos últimos tempos. A marca dos dentes deixou minha pele roxa. Por sorte não houve sangramento. Álvaro correu até a cozinha e procurou uma caixa de primeiros socorros. Ivone prendeu a criatura na coleira pedindo mil desculpas.
O homem cão se debatia com a mesma braveza de um rottweiler. Sem acreditar naquilo, fiquei na sala esfregando a ferida inutilmente. Com razão ninguém quis a vaga. Gente maluca dos infernos! Deviam se internar num hospício. Cansada de perder tempo, levantei disposta a ir embora.
— Espere! Precisamos de uma babá com urgência. Você se encaixa direitinho no perfil. Billy não vai mordê-la de novo, prometo.
Ivone parecia aflita e aos poucos a confusão diminuiu. Aquela mordida inesperada me deixou possessa. Porém, tive que reconsiderar. Como bancar a orgulhosa sem ter um tostão furado? E daí que a família era esquisita? Mesmo que a porcaria do cachorro não fosse um cachorro, dane-se. Eu precisava do dinheiro.
— Vou aceitar o desafio, mas se ele me atacar de novo...
— Juro que não vai se repetir. Billy já teve o castigo merecido.
Qual era a relação entre Billy e o casal? Que castigo ele recebeu?
— Pela mordida eu merecia um adiantamento.
— Sem problemas.
Ivone tirou 400 reais da carteira. Depois implorou para que eu esquecesse o incidente, pois era um trabalho simples. Eu só precisava ser atenciosa e alimentá-lo nas horas certas. Enfim. Se aquilo traria o meu sustento, dane-se o resto. Mas eu tinha uma condição.
— Não vou dar banho nele de jeito nenhum. Pode me pedir qualquer coisa, menos isso.
Ela aceitou a contragosto, e ainda que eu não quisesse bater de novo na mesma tecla, perguntei por que o tratavam assim. A mulher deu um berro:
— Ele é meu cachorro. Quantas vezes tenho que repetir?
— Ok. Agora sou eu que peço perdão.
Ignorando a estranheza, decidi fazer tudo nos conformes. Tudo pelo dinheiro. Meu pai ao ficar sabendo, pensou que fosse piada. Narrei cada detalhe. O desespero do casal em achar alguém que aceitasse o emprego, as expressões faciais de Billy, o rosnado...
— Pai, eu sei que é bizarro, mas seus gestos são muito semelhantes aos de um cachorro. Ele não pronuncia nenhuma palavra, só late, fica o tempo inteiro de quatro e não tem dificuldade em saltar.
— Que família surtada! Se eu pudesse adivinhar, jamais te pediria para entrar em contato. Vai botar uma coleira no sujeito? Andar com ele pelas ruas? Vocês dois vão atrair olhares. Ele principalmente.
— Ué, se o tratam dessa forma e ele não se incomoda...
Quanto mais eu falava, menos meu pai acreditava. Se bem que era inútil duvidar. O mundo tomava rumos inexplicáveis. Depois da pandemia nada fazia sentido. Desejando boa sorte, ele pegou seu jornal e voltou a ler.
❤❤
Na quarta-feira reapareci pronta para iniciar minhas tarefas como babá de cachorro. Chamei Billy cautelosamente permitindo que me cheirasse. Meus novos patrões entregaram a chave da casa e saíram minutos depois para resolver assuntos pendentes. Na cozinha havia uma folha com todas as regras que deveriam ser seguidas:
01) Dê a ele os ossos que guardamos na geladeira. Estão dentro de uma tigela verde. Nunca ofereça nenhum tipo de doce. Cães não podem comer guloseimas.
02) Não aperte a coleira mais do que o necessário. Permita que ele escolha por onde quer caminhar, sem ficar puxando ou forçando a barra. Se latir para os outros cães, ignore.
03) Não deixe qualquer um chegar perto. Billy só é amável com quem conhece. Ontem eu falei que ele é um animal incrível, mas por questão de segurança, mantenha crianças pequenas fora do seu alcance.
04) O saco de ração fica na despensa. Não dê em pequenas quantidades porque logo ele sente fome de novo.
05) As bolas de borracha também ficam na despensa. Se quiser brincar e ele não estiver afim, guarde no mesmo lugar.
06) Não deixe que ele arranhe os móveis ou suba na poltrona. Seu lugar sempre foi e sempre será no quintal. Caminhe ao seu lado por pelo menos uma hora. Ele está acima do peso.
07) Cuide dele com carinho. Lembre-se que nós o amamos.
Quanta baboseira desnecessária. Eu faria meu papel naquele teatro só até encontrar um emprego decente. Billy parecia inquieto e ansioso. Botei a coleira em seu pescoço, perdendo temporariamente a coragem de abrir a porta. Tomada pela indecisão, falei comigo mesma:
— Só agora me dei conta do mico que vou pagar.
Bom... Muito pior era ficar andando de quatro e erguendo a perna pra fazer xixi com todos olhando. Seria ridículo, mas Billy é quem pagaria o mico maior. Pelo menos eu ganharia uns trocados. Trabalho é trabalho, seja qual for. Por incrível que pareça, quando pisei na rua ninguém se surpreendeu. Certamente as pessoas daquela vizinhança já tinham visto Billy em outras ocasiões. Na verdade, o olhar dos transeuntes refletia muito mais pena do que deboche.
O selvagem humano caminhava tão depressa que mal consegui seguir o ritmo. — Calma amigão! — pedi sem sucesso. Então surgiu o primeiro grande problema. Billy se soltou e correu em direção a outro cão. No entanto, era um cão verdadeiro. Preto com manchas brancas ao redor do focinho. Tamanho médio. Um vira-lata atrevido que se achava o dono da rua e detestou ver intrusos em seu território.
Ambos decidiram se encarar. O vira-lata rosnava. Billy rosnava mais ainda. Imaginei que o marmanjo sairia machucado se entrasse na briga. Pedi ajuda e ninguém deu à mínima importância. Senti calafrios imediatos diante do inevitável. “O que faço agora? Droga! E agora?”
— É melhor nem tentar separar, você pode se ferir ou acabar morta. Deixa a briga rolar. Que vença o melhor.
O conselho veio de um expectador que observou tudo a distância.
— Que vença o melhor? É meu emprego que está em jogo!
— Seu emprego? Meus pêsames.
Nesse momento a luta sangrenta teve início. Billy se antecipou avançando no vira-lata e destruindo parte do seu pescoço. Recebeu outra mordida em troca, porém, o vira-lata mostrou-se fraco e indefeso. Houve aglomeração e teve até quem fizesse apostas. Foi à cena mais grotesca que já presenciei. Nunca devia ter assumido tamanha responsabilidade. Talvez o marmanjo fosse esquizofrênico. Era a única explicação para tal comportamento. Custava enxergar o óbvio?
Eu poderia ter caído fora e evitado aquela maldita encrenca. Se não pagasse aluguel, faria exatamente o que as outras moças fizeram. Recusaria a oferta sem pestanejar. É nisso que dá aceitar a primeira proposta de trabalho depois de uma crise econômica mundial. Todos se aproveitam da situação. Mas infelizmente entrei no jogo e acreditei que era teatro. Uma estranha brincadeira que logo seria desfeita. Já tinha visto na TV pessoas agindo como bichos para fugir da realidade. Essas pessoas viviam normalmente quando saiam do personagem. Muitas queriam apenas fazer os outros rirem ou realizar as fantasias do parceiro.
Entretanto, aquele caso mostrava-se muito mais complicado. E do que adiantava me debruçar num quebra-cabeças? Melhor pedir demissão e aconselhar Ivone a chamar um psiquiatra. Dane-se o aluguel. Eu encontraria outras formas de sobrevivência.
Billy arrancou vários pedaços do vira-lata. O sangue escorria de sua boca grande enquanto mastigava com prazer a carne fresca. O pobre vira-lata morreu estraçalhado e a plateia vibrou. Pouca gente se compadeceu. Senti meu estômago virar do avesso. Cambaleando até a lixeira mais próxima, vomitei o café da manhã. Dividida entre o nojo e a piedade, eu nem sabia o que era real ou fantasioso.
Não satisfeito com sua atitude canibalesca, Billy quis atacar inclusive os torcedores. Foi um pandemônio cinematográfico. Pessoas de várias idades correndo alvoroçadas, atropelando-se na corrida e gritando até estourar as cordas vocais. Billy parecia alucinado e fora de controle. Mostrava os dentes afiados em todo momento, louco para rasgar sem piedade a carne de qualquer um que atravessasse o caminho.
Temendo ser a próxima, resolvi me esconder. Aguardei pacientemente o selvagem humano frear os ataques. A perseguição só acabou quando o grupo de curiosos deu o fora. Aí ele resfolegou e terminou de devorar seu oponente. No fim do dia, pedi demissão e a suposta mãe da criatura se decepcionou.
— Você recebeu adiantado, concordou com nossas regras e quer voltar atrás?
— Não posso presenciar cenas desse tipo.
Ivone desabou na poltrona e seus olhos marejaram. Confessou que ela e seu marido eram cientistas e haviam feito um experimento com saliva de cachorro e alguns componentes químicos. Não adiantava expor certos detalhes para uma pessoa leiga. O fato é que desse experimento surgiu a Sindrocan 21. Sindrocan é uma abreviação de síndrome canina. Doença comportamental recém-descoberta.
Dona Ivone me levou até seu local de trabalho. Um extenso laboratório cheio de equipamentos modernos.
— A Sindrocan 21 ainda é nova para que possamos compreender, só posso afirmar que os sintomas duram de seis a oito meses. A infecção ocorre quando a saliva de um cão entra em contato com nossa pele, provocando delírios e nos fazendo crer que somos da mesma espécie.
— E isso é contagioso?
— Calma Gisele. Tomando os devidos cuidados...
— Que cuidados? Que palhaçada é essa? Por que não alertaram as autoridades? Tem ideia da confusão que criaram?
— Não foi culpa nossa Gisele! Alguém veio aqui cheio de más intenções e surrupiou dois frascos do nosso experimento. Por isso a Sindrocan escapuliu.
Pensei em perguntar o que havia nesses frascos, mas estava tão confusa que só consegui andar em círculos. Ivone continuou sua explicação...
Diferentemente da Covid 19 que causava problemas respiratórios, a Sindrocan 21 afetava o cérebro. Dessa vez as providências seriam outras. Isolar todos os cachorros do mundo por tempo indeterminado, antes que suas salivas provocassem delírios. Os governantes de cada país teriam de construir não só milhares de novos canis, como também milhares de novas clinicas psiquiátricas. Dentro delas, nenhum ser humano infectado causaria danos à sociedade. Difícil seria convencê-los a abrir mão de seus pets, afinal havia a questão do apego, e ninguém se desapega tão depressa. Porém, se muitas pessoas agissem como Billy...
— Chega. Não quero mais ouvir. — interrompi. — Só me diz uma coisa, como posso saber se estou infectada?
— Se nenhum cão te lambeu nem babou em você, fique tranquila.
— Mas e o Billy?
— Billy não pode contaminar ninguém. Só os cães de verdade transmitem o vírus. Amanhã faz cinco meses que ele pegou a doença. Pode ser que volte ao normal daqui a pouco e nem se lembre de nada, mas é perigoso agir assim num período de seis a oito meses. Então devemos correr contra o tempo enquanto buscamos a cura.
Tudo levava a crer que o mundo estava realmente perto do fim. Eram muitos absurdos em sequência. Acusei Ivone e seu marido de irresponsáveis e ela procurou se defender:
— Ora, não venha nos atacar. Nenhum cientista é perfeito, mas foi graças à ciência que o mundo evoluiu. Respeite a ciência mocinha!
Não demorou pra que a mídia televisiva noticiasse. Desde então, quem odiava os cachorros, independentemente da raça, passou a odiá-los mais ainda. Quem fosse visto na companhia deles era imediatamente preso ou obrigado a pagar multa. Cães de todas as linhagens foram retirados de suas casas e enviados para centenas de abrigos, construídos em tempo recorde.
Os veterinários ficaram na linha de frente, sendo orientados a se proteger usando luvas, máscaras e agasalhos. Nos manicômios, pessoas de todas as idades latiam em conjunto. Embora fosse uma demência temporária, foi quase impossível para os psiquiatras lidarem com tantos loucos, além dos que já existiam. E a sociedade teve que se habituar.