EM VOLTA DA TERRA

Hoje completou um mês que estamos aqui. Flutuamos há mais de quatrocentos quilômetros de altitude e todo dia damos quinze voltas em torno da Terra. Tudo isso a uma velocidade média de mais de 27 mil quilômetros por hora. Por longos dois meses a Estação Internacional será a nossa casa.

Os primeiros dias foram de uma empolgação muito grande com a missão, mas hoje sinto que já estou cansada de estar aqui e ainda resta um mês inteiro pela frente.

Somos só eu e Manolo vivendo nessa lata de sardinha de bilhões de dólares e submetidos a uma rotina entediante. Começamos o dia com duas horas de exercícios físicos para evitar atrofia muscular e problemas de calcificação. O resto do tempo é dedicado a checar uma infinidade de instrumentos, coletar e organizar dados e mais dados.

Tudo aqui tem um rígido controle. E agora é chegada a hora de dormir. Essa é uma das partes mais chatas da nossa rotina, pois temos que dormir em sacos apertados. Que saudade da minha cama espaçosa e cheirosa... Só tem uma coisa que acho pior que dormir nos sacos, é quando temos que usar o vaso sanitário, se não nos amarrarmos vamos sair flutuando pela estação.

- Tina, qual é a playlist que você vai escutar hoje pra dormir? – Era já a segunda vez que Manolo fazia essa pergunta.

- Uma delas é essa daqui – Respondo mostrando uma música em meu equipamento.

- Essa é meio jurássica. Não tem nada mais atual aí?

- Minha mãe me disse que fui feita ao som dessa música...

- Bem, ela parece bonita. Prometo que um dia vou escutar ela com toda a calma – Respondeu Manolo dando um sorrisinho de lado.

Enquanto espero o sono chegar eu liberto meu pensamento e o deixo flutuar, não em direção a algum fato ou coisa distante, mas sim para algo que está há poucos metros de mim: Manolo. Aqueles parcos minutos enquanto o sono não chega é o único momento em que deixo meu desejo aflorar. Levei dias para admitir que me sentia atraída por aquele sujeito que parecia ter problemas com a barba e que vivia chamando palavrões. Já desisti de tentar explicar como fui me interessar por um cara como ele.

Fico olhando em direção a Manolo. O que será que ele pensa antes de dormir? Aos poucos o sono vai se insinuando. Sinto o corpo amolecer e termino adormecendo.

*****

- Manolo, acorda, acorda! Aconteceu alguma coisa! Chega aqui e dá uma olhada nisso.

- Que merda está ocorrendo? As luzes das cidades sumiram! – Com o rosto grudado na escotilha, a voz do astronauta, responsável pelas pesquisas de fisiologia em microgravidade parecia mais grave ainda.

Enquanto nossa órbita progredia observamos que não havia um único ponto de luz sobre a face da terra.

Assustados com o que vimos nós corremos, ou melhor, flutuamos para a mesa de comunicações. Alguma coisa muito estranha estava acontecendo e era urgente estabelecer contato com o comando da missão.

Não conseguimos contato algum.

Tentamos falar com diversas estações rastreadoras e não obtivemos nenhum sinal como resposta. Acessamos as estações de televisão e de rádio, abrimos a rede mundial de computadores e nada. Apenas um maldito silêncio. O mundo parecia ter sumido lá embaixo.

- Tina, o que diabos foi que aconteceu? Me dá uma resposta clara, por favor.

- Alguma coisa de muito errado aconteceu lá embaixo... – Falo tão pra dentro que mal escuto minha própria voz.

- Porra, isso eu sei! Joga uma luz aí. – Manolo não tirava os olhos da escotilha enquanto falava.

*****

Já estamos na décima quarta volta sobre a Terra e em todos os continentes percebemos que as luzes dos grandes aglomerados urbanos sumiram. A Europa é sempre muito iluminada, a costa leste americana se destaca em contraste com outras regiões do globo, mas tudo o que nós visualizamos é um planeta sem luzes.

Olho para o rosto de Manolo e o que percebo é uma expressão que não sei se é de surpresa ou medo. Ficamos nos perguntando o que havia ocorrido? Será que tinha acontecido um misterioso blecaute mundial ou foi uma espécie de pulso eletromagnético que desligou tudo lá embaixo?

Um dia passou-se após aquilo que, agora, chamamos de Evento. Estamos em mais uma volta sobre o planeta e até agora tudo permanece na mesma. Existe um silêncio sepulcral entre nós dois. Não sabemos o que aconteceu.

Passado o impacto inicial da ausência das luzes tão familiares descobrimos algo mais surpreendente ainda.

- Tina, olhe lá embaixo e me diz se o que vemos é a Terra mesmo. Por que está tudo mudado e não estou reconhecendo nada.

Após algum tempo olhando atentamente eu respondo.

- Por incrível que pareça é a Terra lá embaixo sim... Só que está diferente.

- Como assim? Pra mim é a porra de um outro planeta. – A voz de Manolo mostrava toda a sua impaciência quase crônica desde o início da missão.

Com um tom quase professoral eu prossigo.

- Observe que a América do Sul está mais próxima da costa da África e o continente norte-americano agora está ligado a Europa e Ásia. A gente vê também que não existe mais América Central. Tudo está mudado lá embaixo.

Manolo mexeu na barba desgrenhada parecendo não acreditar muito no que eu estava falando. Mesmo assim eu prossigo.

- Quando eu era criança adorava montar quebra-cabeças. Havia uma professora que uma vez deu como atividade de geografia a montagem de um quebra-cabeças dos continentes. Só que ela fez diferente. Ela juntou todos os continentes e pediu que a gente fosse aos poucos afastando uns dos outros. Ela fez isso pra demonstrar como eles se separaram. Eu nunca esqueci disso...

Mal terminei de falar e ocorreu-me algo.

- É só a gente olhar para a Lua, ela continua lá toda linda e faceira. Então se ela continua lá é porque embaixo de nós é a Terra.

- Sim, mas mesmo com a Lua ainda lá isso não explica o que diabos foi que aconteceu aqui. – Manolo falava isso e eu estranhamente ficava me imaginando ajeitando aquela barba...

Pedimos ao computador que fizesse uma projeção de tempo tomando por base a posição da Terra e do Sistema Solar atualmente e a que tínhamos antes do Evento acontecer. A resposta foi assustadora: a posição da Terra agora estava 135 milhões de anos no passado em relação a que tinha antes do Evento.

- Puta que nos pariu! Voltamos pra porra da pré-história! – Essa foi a única coisa que Manolo conseguiu falar.

*****

Enquanto o sono não vem eu penso em um monte de coisas. Minha casa, eu ia mudar a pintura dela, meus girassóis, ninguém vai cuidar mais deles. Será que tudo o que me resta é viver até que acabem as provisões? Olho em direção a Manolo. Irei morrer ao lado dele aqui. Já que meus dias vão se encerrar eu bem que poderia deixar as coisas mais claras para ele...

Sinto o entorpecimento do sono chegando.

Quando acordo vejo que Manolo está olhando pela escotilha. Flutuo até ele.

- Eu também não me canso de achar ela linda. Um espetáculo para os sentidos, não é? - Falo tentando dar um tom o mais casual possível a minha voz.

Ele dá um pequeno sorriso e logo responde.

- Ela é linda sim, mas eu na verdade estava era aqui lembrando do sonho que tive. Um sonho meio maluco, mas bem interessante.

- Que sonho foi esse já?

- Sonhei que acontecia alguma coisa misteriosa e a gente voltava milhões de anos no tempo. Aí de repente...

Mal conseguindo disfarçar minha surpresa com o sonho de meu colega e já antevendo o que eu iria ver me aproximo da escotilha.

A Terra estava lá! Igual como eu sempre a vi. Tudo direitinho. Lembrei até dos globos terrestres que vivia pedindo para meu pai comprar.

*****

Tivemos o mesmo sonho! Em algum lugar do universo é possível que duas pessoas sonhem juntas o mesmo sonho? Desconfio que nunca terei uma resposta precisa para essa pergunta...

Preferi não contar nada para Manolo. Seria muito difícil explicar tudo. Pode ter sido só uma grande coincidência o fato de termos tido o mesmo sonho, mas quem sabe um dia eu não contarei para ele?

Mais duas semanas e estaremos voltando para casa. Uma outra equipe irá nos substituir. Tudo o que restará dessa missão serão toneladas de dados a serem analisados e algumas histórias não contadas.

- Tina, eu praticamente finalizei meus dados aqui. Será que eu posso pedir um pequenino favor pra você?

- Claro que pode, desde que não seja para eu ficar mais dois meses aqui...

- Tem um tempo já que eu quero ajeitar a minha barba. Será que você conseguiria dar um jeito nela?

Mal consegui esconder o rubor do rosto quando respondi.

- Vou dar um jeito nessa sua barba selvagem de homem das cavernas...

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 04/12/2023
Código do texto: T7947139
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