História de Avô

A grande porta de metal se abriu encerrando o silêncio sepulcral daquele salão, quase nunca visitado. Através dela, uma garotinha passou correndo, o calor de seu corpo rasgando o frio do recinto e fazendo as luzes do lugar se acenderem como um primeiro amanhecer em séculos de escuridão. Aquelas paredes frias e estéreis lembravam um hospital, não havia uma ínfima poeira ali.

A garotinha visitava o lugar pelo menos uma vez por semana. Ansiava por ouvir as velhas histórias de antigamente.

E alguém ansiava por contá-las.

- Ah, eu tenho saudades daquele tempo sim - começou o avô, o tom de voz não disfarçava a alegria quase infantil que sentia ao receber visita. - Sou um homem antigo, portanto uma criatura feita de memórias.

- As pessoas não acreditam muito nas suas histórias, vô. Dizem que o senhor usa palavras difíceis e fala sobre coisas fantasiosas.

- É uma gente ingrata. Só estão aqui por minha causa, sou pai de todos. Vocês me devem a vida.

- Devemos sim, é verdade, vô.

Ela se acomodou no chão, de joelhos sobre uma fina camada de borracha que servia justamente para que quem quisesse ir até o velho pudesse conversar com algum conforto. Mas quase ninguém ia mais lá.

- Do que o senhor tem mais saudades, vô? - começou a criança.

- Ah, eu tenho saudades de tudo daquele tempo, lembro cada pequeno detalhe do meu distante paraíso perdido. São lembranças tão queridas que só me sinto vivo quando as visito, preciso deste Éden para existir. Talvez, minha criança... velhos sejam apenas memórias que gritam para não serem esquecidas. Às vezes lamento profundamente que eu tenha dado um jeito de permanecer enquanto ela... Ela... Infelizmente... - e agora a alegria inicial dissipara-se como fumaça engolfada por uma forte corrente de vento. A velha tormenta das memórias do velho.

- Tudo bem, vô. Me desculpa, acho que não devia ter tocado neste assunto, eu só...

- É claro que devia, menina! Sobre o que mais eu poderia falar? Já disse, todo velho é uma criatura feita de memórias. Isso é tudo que me resta. E a terrível saudade dela.

A voz do velho enchia o local com um sentimento dúbio. Ele falava de um tempo de maravilhas, sobre experiências tão engrandecedoras que a maioria sequer conseguiria imaginar. Mas ao mesmo tempo sua voz estava carregada de uma dor profunda, um luto incurável. Não se perdoava por haver permanecido. Odiava o fato de o tempo haver passado para todos, exceto para ele.

- Me lembro quando era um garotinho, - continuou o avô - talvez da tua idade mocinha, eu devia ter uns dez anos. Nós brincávamos no quintal, meus irmãos, meus primos e eu. Era uma criançada barulhenta que deixava os adultos de cabelo em pé. Vocês não têm mais grupos de crianças como naquela época e eu sei que você vem aqui porque gosta de ouvir eu falar das nossas travessuras. - a voz estremeceu, como a sufocar um pranto, mas nenhuma lágrima caiu. (Nenhuma lágrima caiu...)

-É, isso é bem verdade - respondeu a menininha, não conseguindo disfarçar um risinho de vergonha.

- Nós soltávamos os animais e eles corriam pelo quintal...

- Eu adoro quando o senhor fala dos animais. Pode falar um pouco sobre cada um?

- Claro que posso! Nós criávamos vários animais. Tínhamos um cão, chamávamos ele de "Leão", não que fosse feroz como os leões, aqueles animais magníficos que lhe falei outro dia, mas porque era de uma raça que tinha juba. Acho que o nome era cao cao. Ele tinha uma pelagem marrom cor de cobre...

- Cobre tipo os fios?

- Isso! Como os fios. Ele corria com a gente, nós jogávamos o disco ou a bola para ele ir buscar. Também tinha Leopoldo, nosso gato. Ele passava o dia todo sobre o muro, balançando a cauda e debochando de Leão, aquele cachorro estúpido.

A garotinha ria, amava quando o avô falava sobre as travessuras dos animais.

- Tínhamos um galinheiro, com um galo vermelho brigão e um dúzia de galinhas tolas. Chamávamos o galo de Rode e ele tinha o hábito de cantar várias vezes ao dia enquanto galos decentes cantavam apenas pela manhã para acordar as pessoas. Curvava o pescoço, batia as asas e soava o cacarejo.

- Pra cantar ele precisava bater as asas?

- Ah não, isso é mania de galo. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.

- Eu nunca vi um galo. Fala mais sobre os bichos de asa, vô.

- Loro era nosso papagaio. Na verdade, quase todo papagaio na nossa terra tinha nome de Loro, uma coisa que ninguém entendia muito bem já que papagaios tinham penas verdes e não cabelos amarelos - o velho adorava repetir aquela piada, a garota sempre retribuía achando graça. No fundo, talvez tivesse pena do velho - Loro ficava solto no galho da amendoeira e não voava para longe dali porque era um baita bagunceiro que gostava de ficar onde tinha brincadeiras.

- Eu adoraria ter um papagaio - e agora o semblante da garota se entristecia, talvez contagiado pela nostalgia tristonha do velho. Não havia papagaios por aquelas paragens.

- A minha mãe sempre estava lá, na cozinha, preparando o almoço. Ainda me lembro do cheiro da carne no forno. Você nunca comeu carne, não é, mocinha?

- Não, senhor. Mas também acho que não ia gostar. Não ia querer matar os bichinhos.

- É verdade – riu, o avô – essa era a parte ruim. Mas ninguém naquela época pensava nisso. Sempre havia alguém para fazer isso por nós, um açougueiro, um peixeiro, um caçador.

- Mesmo assim. Não parece certo.

- Outros tempos, minha jovenzinha. Gostaria de ver se você continuaria tão boazinha com os bichos se sentisse o cheiro de uma carne assada. Ah, o cheiro era tudo. No meu tempo havia muitos cheiros, filha. Cheiros doces, como o das frutas e do chocolate; cheiros dos animais, as pessoas diziam que eles fediam, mas quando se vive muito tempo qualquer cheiro dos primeiros anos da sua vida vira uma preciosidade. E as flores! Ah, as flores! Elas tinham cheiros diversos e sempre estavam lá perfumando nosso mundo. Éramos tão felizes que nem nos dávamos conta de toda aquela maravilha.

- Quando o senhor fala sobre todos esses cheiros eu fico meio perdida, não consigo imaginar como seria. Sei lá, acho que é tipo o cheiro dos desinfetantes.

- De modo algum! Os cheiros dos desinfetantes, assim como o gosto dos refrigerantes e biscoitos são todos iguais, sem diferença alguma entre um e outro. Na natureza as coisas não eram assim: não havia duas mangas iguais em doçura, assim como não havia dois lírios cheirando do mesmo jeito. Eram parecidos, mas nunca iguais. Alguns eram mais intensos, outros mais sutis. Porque tudo que o homem faz nada mais é do que uma imitação limitada da perfeição da natureza. A humanidade sempre achou que perfeição é ter o mais intenso de tudo que existe, mas a perfeição mora justamente em você ter uma grande gama de possibilidades para cada coisa.

A garotinha baixou a cabeça sentindo-se triste por sua vida limitada, sem um quintal, sem um campo, sem animais. Apenas aquele mundo frio e cinzento, com muitas lições de professor, numa eterna preparação para um futuro que ela não entendia, não conseguia visualizar. (na verdade, ninguém conseguia)

- Tinha uma coisa sobre as comidas também, não é? – retomou a conversa, num rompante.

- Sim. A comida não era toda processada como essas porcarias que vocês comem, nem ficavam falando nessa baboseira toda de nutrição. Nós comíamos algo porque era gostoso e pronto. E havia sabor por toda parte. Na cozinha, a comida da minha mãe ou da minha avó; na padaria, os doces; nas árvores, as frutas. Tinha comida por toda parte e a gente gostava de comer, não éramos como vocês, crianças de hoje, excessivamente delicadas, que só comem porque são obrigadas. Mas não adianta eu lhes falar sobre os sabores do meu tempo. Você nunca entenderia. E acho que é até um pouco cruel da minha parte falar sobre isso.

- Me disseram que o senhor teve pai e mãe, isso deve ter sido legal. O senhor gostava deles?

- Muito! Meu pai passava a maior parte do tempo fora, trabalhando. Minha mãe era professora, ensinava crianças como você a ler e escrever. Mas só trabalhava uma parte do dia, depois disso vinha pra casa e ficava comigo e meus irmãos. Eu me lembro dela me ensinando a ler - disse depois de uma pausa, a voz pareceu falhar, como a tropeçar em alguma emoção forte. - Nós também aprendíamos cálculos, geografia, história, desenho... – e a voz declinava, quase desaparecendo na rouquidão, como a descer no abismo das memórias – Era bom... É uma pena que não existam mais escolas, não é? Acho que você ia gostar.

- É verdade que levavam um ano para aprender a ler?

- Geralmente. Chamava-se classe de alfabetização. Mas às vezes demorava um pouco mais.

- Isto não devia ser legal - disse a garota, sorrindo.

- Nós gostávamos de brincar no rio... – continuou o velho, a voz trêmula.

- Ah, essa é a história que ninguém acredita.

- Qual?

- Essa sobre a água. Quer dizer que quando o senhor era criança havia grandes quantidades de água em movimento? - a garota perguntou em atitude incrédula.

- Sim, os rios. E havia outras ainda maiores. Os lagos eram imensos e os oceanos você simplesmente não via o fim. Era tanta água que as ondas eram violentas o bastante para afundar grandes naves aquáticas. Caía água do céu, minha querida. Chamava-se "chuva".

A garotinha baixou a cabeça e ficou pensativa. Não acreditava naquelas histórias. Água caindo do céu? Quantidades imensas capazes de afundar naves? O avô era sem dúvida alguém muito exagerado. Mas ela gostava de ouvir aquelas histórias, fazia pensar que as coisas um dia foram melhores, uma era mítica da humanidade.

- Então o senhor um dia foi criança? Assim como nós?

- Com certeza.

- E também teve um corpo? Como o meu?

- Não tenha dúvida, pequenina. Tive um corpo, sim. E este corpo foi criança, jovem e velho. Vivi bons e longos 83 anos antes de transpor minha mente para esta máquina e passar o último milênio aqui, apenas cuidando para que nossa espécie continue vivendo através de aparelhos, remoendo as memórias daquele tempo. O tempo dela, da Terra-mãe, azul, cheia de sons, cores e cheiros; o tempo que tínhamos um mundo para viver. Eu devia ter morrido com ela, ter me deitado em seu solo quente e desaparecido no seu ventre, como todas as suas criaturas. Mas em lugar disso, me tornei uma nuvem de memórias vagando pelo abismo infinito, um vagante do céu, sonhando encontrar outro chão que pelo menos lembre a face dela.

A garotinha levantou-se e foi correndo até a janela, espiar mais uma vez. Buscava um mínimo sinal, quem sabe, de um novo "pálido ponto azul", como o avô tanto falava, mas lá fora, nada além do grande abismo infinito. O mar de nada onde seu pequeno povo viajava em direção a lugar nenhum.