FRUTO PROIBIDO

Aos poucos a criatura sentia-se mais segura ao andar naquele lugar, seus passos gradativamente mostravam uma firmeza maior. A paisagem que se estendia a sua frente era composta por uma relva muito verde e macia ao toque, árvores de tamanhos variados, um rio de águas cristalinas e montanhas que emprestavam um belo contorno a tudo o que seus olhos viam.

Em um determinado momento ele agachou-se e pegou algo no chão. Olhou para a pequena coisa que se movia em sua mão, era menor que o menor de seus dedos e parecia ser muito frágil. Ficou olhando para ela por mais algum tempo, depois desinteressou-se e a largou onde a encontrou.

O vento que corria por aquelas paragens fazia as árvores mexerem-se de um lado a outro. A criatura gostou da sensação que este fazia em sua epiderme e abriu os seus braços para melhor receber aquela coisa que ele não via, mas que lhe causava algo estranhamente bom. Suas narinas sentiam uma miríade de cheiros, alguns agradáveis e outros não. Sons os mais variados chegavam até os seus ouvidos. Ergueu sua cabeça, olhou para o alto e achou bonito o que viu: coisas flutuavam muito acima de onde ele estava. Elas eram rápidas e faziam movimentos diversos. Aquilo para ele era um grande mistério. Como é que elas conseguiam ficar tão acima dele?

Após muito caminhar e explorar o ambiente ao seu redor ele percebeu algo estranho em seu corpo. Sua boca estava ressecada e ele sentia-se indisposto. Sentou-se à beira do rio, gostou do movimento que as águas faziam, experimentou tocar-lhe e qual não foi a sua surpresa quando em um impulso inexplicável levou seu rosto até aquela coisa e sorveu-a. Imediatamente sentiu-se mais forte e disposto.

Os dias transcorriam e a criatura havia aprendido muito sobre as coisas que aconteciam ao seu redor. Quando sentia debilidade em seu corpo estendia a mão e pegava os frutos que pendiam das árvores ou deitava e relaxava até dormir. Sempre havia alguma coisa nova que despertava os seus sentidos e que ganhava um novo significado.

Certo dia encontrava-se no alto de uma colina quando divisou lá embaixo algo que o deixou muito surpreso e curioso: andando em meio às árvores estava uma criatura igual a ele.

Desceu e de maneira cautelosa foi aproximando-se devagar. Quando estava bem próximo percebeu que a criatura em questão era semelhante a ele em muitas coisas, mas em outras não, parecendo a este que esta era um pouco menor e com pequenas protuberâncias em seu tórax. Seus sentidos, de imediato, disseram-lhe que as formas da criatura a sua frente eram agradáveis.

Ambos ficaram se olhando por algum tempo. Não havia medo ou apreensão em ambos, apenas uma grande curiosidade. Em um dado momento a criatura menor tocou em seu braço e rosto explorando aquilo que para ela também era algo surpreendente e novo. Ele não reagiu de imediato, mas posteriormente também fez os mesmos gestos.

Muitos dias passaram-se e as duas criaturas sempre estavam juntas. Nunca se afastavam uma da outra. Em um momento impreciso uma delas começou a articular grunhidos que, aos poucos, foram dando lugar a sons mais limpos. Em pouco tempo ambos começaram a desenvolver uma riqueza maior de sons seguidos de um gestual cada vez mais amplo.

Aconteceu de um dia as criaturas sentirem fome e os frutos estarem localizados de maneira tal que estas não conseguiam alcançá-los. Pularam e grunhiram, mas nada de alcançarem aquilo que saciaria sua fome. Explorando o ambiente ao redor encontraram gravetos de variados tamanhos e passaram a manuseá-los. Eis que, em um momento que ficaria perdido para sempre na história de sua espécie, uma deles consegue alcançar os frutos usando um graveto como extensão de seus membros e derruba alguns .

Após saciarem sua fome ficaram sentados apreciando o revoar dos seres alados e grunhindo os novos sons que haviam aprendido. Enquanto escutava sua companheira, a maior das criaturas sentiu que algo estranho estava acontecendo consigo. Suas narinas sentiram um leve cheiro que emanava do corpo de sua interlocutora. Não conseguia entender o que estava acontecendo, mas percebeu que não era algo ruim ou desagradável. Em resposta aquela nova situação passou a olhá-la com mais atenção, atentando para as suas formas e buscando identificar de onde vinha aquela coisa que o impulsionava em direção a esta.

Tomado por impulsos até então desconhecidos ele passou a tocar de várias maneiras o corpo de sua companheira que, em contrapartida, mostrava-se receptiva ao seu comportamento.

*****

Ason64 fez um discreto gesto e congelou a projeção holográfica. Ele tinha fama de ser um professor duro e exigente.

- Digam-me, em poucas palavras, qual é o momento em que as criaturas do projeto experimental ascendem à condição de seres inteligentes?

Jlin76 e Mris19 entreolharam-se um tanto quanto apreensivas. Por fim uma delas respondeu.

- O momento que marca o surgimento da inteligência ocorre quando as criaturas começam a criar instrumentos que permitam a estas enfrentarem melhor as adversidades do ambiente.

O rosto de Ason64 permanece inalterável e este volta a perguntar.

- De acordo com o que foi proposto no projeto de vocês o que aconteceu quando as criaturas desenvolveram o pensamento simbólico?

Dessa vez foi Jlin76 quem respondeu.

- A partir do momento em que as criaturas desenvolveram o pensamento simbólico estas passaram a viver tanto no mundo natural quanto em um mundo construído pelas mentes delas.

- A que conclusão vocês chegaram ao fim desse projeto? – Prosseguiu Ason64.

- Professor, concluímos que quando as criaturas ascenderam a uma condição de seres inteligentes eles perderam a capacidade de se relacionarem com a natureza da mesma maneira que os demais animais. Podemos fazer uma analogia com uma das passagens constante em um dos antigos livros sagrados: eles comeram do fruto do conhecimento e, dessa maneira, suas ações passaram a ser norteadas por coisas como o bem e o mal, perdendo assim um paraíso que agora só os animais teriam acesso. – Mris19 estava visivelmente mais relaxada ao responder.

Sem nada mais a perguntar Anson64 encerrou a aula daquele dia e preparou-se para sair. Era o último período da disciplina Laboratório de História Natural I e ele mal via a hora de suas férias chegarem.

*O conto em questão surgiu tomando por base ideias desenvolvidas em um texto anterior intitulado Sombras Diáfanas, vencedor do CLTS 19.

**Este conto foi escrito ao som de Karma Police (Radiohead, 1997), The boy with arab strap (Belle & Sebastian, 1996) e Fear (Travis, 1999)

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 12/11/2023
Reeditado em 14/11/2023
Código do texto: T7930067
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