O mentiroso

O mentiroso (José Carlos de Bom Sucesso)

A cidade estava em festa, pois comemoraria mais um ano de emancipação política. As diretoras das escolas, juntamente com os professores, anunciavam a programação das festividades. Teria o tradicional desfile das escolas, muito bem organizados, com fanfarras, escolas de samba, pelotões de alunos das artes marciais e da banda de música local, com os orgulhosos componentes em número de quarenta e regida pelo mestre da música, o Senhor Julião. A prefeitura local disponibilizaria todos os recursos para as festividades, entre veículos, pessoal e outros meios para que aquela festa fosse a melhor festa da cidade nos últimos anos.

A Academia de Letras da cidade preparou o concurso de contos, poesias e trovas, que fora anunciado há meses e os vencedores foram anunciados e receberiam os prêmios naquela data tão solene, em praça pública, em meio a vários convidados e o povo presente.

O destacamento policial, através da delegacia de polícia, efetuaria várias mudanças no trânsito, porque a cidade estava esperando grande número de visitantes, entre familiares, parentes, amigos e outros.

Com muito carinho, a emissora de televisão da cidade vizinha já mostraria a presença, pois faria transmissão ao vivo de partes das festividades, porque um dos moradores da cidade era o gerente geral da emissora e muito faria para divulgar sua terra natal.

Entre parte da programação, o emérito professor da cadeira de História da faculdade da capital viria para contar a verdadeira história da cidade, pois era o grande pesquisador daquela cidade e também tinha motivo especial para ali estar, porque era casado com a Marisa, moradora da cidade, e moravam os dois na capital.

Os dias foram passando e as expectativas para a grande festa iam aumentando. Os alunos ensaiavam as apresentações. Os professores buscavam a verdadeira perfeição e até o Sr. Prefeito, por nome de Dr. Marcelo, presenciava os ensaios e seu gabinete estava à disposição para tudo o que fosse preciso. As secretarias municipais davam todo apoio ao evento.

Maranês, isto mesmo, nome estranho, pois era descendente de índio, muito culto. Lia de três a quatro livros por dia. O verdadeiro intelectual da cidade. Sabia de tudo. A população local em números, as riquezas naturais e minerais do local, a história das famílias que fundaram a cidade, a economia que prevalecia naqueles tempos, a previsão do tempo, a literatura brasileira e internacional, as notícias locais, regionais e internacionais. Sobre Astronomia, Geografia, Matemática, Física, Biologia, Direito, Economia, Estatística, Contabilidade e até de Química, ele dava o show. Não tinha para ninguém. Segundo algumas senhoras mais idosas, ele nasceu na tribo há vários quilômetros daquela cidade. A mãe faleceu no parto. O menino foi raptado pelo casal de médicos que atendia à tribo, mas ao chegar nas proximidades da cidade, o veículo capotou e somente sobrou o menino Maranês. Dona Júlia, moradora das proximidades da estrada, o resgatou e o criou até aos doze anos de idade. Com a morte dela, o menino passou a viver sozinho naquela casa, sendo amparado por alguns vizinhos. Cresceu o garoto e foi somente dois ou três dias à escola. Não mais quis e se dedicou a estudar sozinho na biblioteca da escola e na biblioteca municipal. Ele mesmo plantava, colhia e vendia seus produtos na cidade, para o sustento. Assim foi crescendo e se tornou filho da cidade. Nunca lhe faltou nada. Fez vários concursos e sempre foi aprovado em todos. Escolheu, dentro todos, a função de auditor federal. Trabalhou e se aposentou por problemas de saúde.

Voltando à cidade, no local onde cresceu, reformou a casa e lá passou a viver, sempre lendo, escrevendo, estudando e somente ia à cidade para comprar alguma coisa, porque sempre produziu seu próprio sustento.

Os dias foram passando e a data festiva chegou. Naquela manhã, por volta das cinco horas da manhã, a população acordou rapidamente ao som dos sinos da igreja, de canções tocadas em veículos, de foguetes, da banda de música. É o dia festivo.

Por volta das seis horas da manhã, os funcionários da prefeitura já estavam lá terminando os preparativos e os enfeites do palanque oficial. Estudantes, bem vestidos, com suas vestimentas nas cores das bandeiras das escolas, tanto municipais quanto estaduais. Até mesmo alguns estudantes representantes da faculdade da cidade, lá desciam para o ponto inicial do desfile.

Pedro, o motorista com mais idade do município e mais experiente, já estava a caminho do aeroporto municipal. Ele e o procurador municipal esperavam o governador, algum deputado e autoridades que foram exclusivamente convidadas para as festividades. Eles chegariam de avião e de lá seguiriam para o palanque oficial.

As pessoas se aprontavam para as festividades. Os sinos da igreja tocavam e convidavam para a missa matinal e após o término dela, o desfile iniciaria. A previsão do término era por volta do meio dia. Era manhã fria do mês de julho. As pessoas nem estavam aí para o frio. Vestidas de casacos e roupas quentes, lá iam elas para a grande festa. O veículo da emissora de televisão já se encontrava estacionado na praça. Ali por perto, o filho, o ilustre repórter e diretor de programação, Sr. Paulo, vestido de terno e gravata, testava os últimos preparativos para as transmissões ao vivo.

Em alguns minutos, a cidade já festejava. Dois fortes barulhos cruzavam o céu da cidade. Eram as duas aeronaves que conduziam o governador e os convidados. Estavam elas fazendo a perna do vento e a poucos minutos já estariam em solo municipal.

Ao som de fogos, o desfile se iniciava. O locutor chamava as autoridades ao grande palanque montado na praça principal da cidade. Homens, mulheres, jovens e crianças bem trajados contracenavam nos desfiles. Ao som da banda municipal, conduzida pelo emérito maestro, o desfile prosseguia. O locutor interrompe para anunciar a chegada do governador e outros convidados. Rapidamente, foram conduzidos à palanca. Discursos, palmas, tudo isto era ouvido.

Tudo estava a mil maravilha. Via-se no olhar do prefeito a felicidade em poder realizar a linda e tão esperada festa em comemoração ao aniversário da cidade.

De repente, André, um dos organizadores, aproxima-se do prefeito e lhe diz algo no pé do ouvido. Ao mesmo tempo, o prefeito pede licença ao locutor e se volta à secretária de educação, que por sua vez acompanham André até a extremidade da tribuna. Então, André, assim fala:

- Aconteceu uma desgraça. O Doutor Moisés e a Doutora Marisa, o Doutor que está na programação de falar sobre a história da cidade, sofreram acidente automobilístico e não poderão comparecer, pois estão internados no hospital. As pessoas querem saber sobre a história de nosso município. Como faremos?

- Não sei o que fazer. Seria muito ruim para mim, o prefeito, se faltar alguma atração. Para minha campanha política, ferirá minha imagem. Quem poderá substituir o Doutor Moisés?

A coordenadora da festa, rapidamente, foi logo dizendo:

- Existe o Maranês, que muito sabe da história de nossa cidade. A obra que o Dr. Moisés iria dizer é de autoria dele. Tem só um detalhe:

- O que?

Pergunta rapidamente o prefeito.

- A coordenadora, de nome Maria, vai dizendo que Maranês é bastante mentiroso. Discorda de todos os fatos. Se ele fosse historiador oficial, a história seria toda mentirosa. Ele é capaz de modificar a história.

Concorda o prefeito e diz:

- Mande buscá-lo imediatamente. Vou pedir para a banda de música tocar mais, os membros da academia de letras lerem mais poemas, enfim, vou postergar até que nosso historiador mentiroso chegue.

Então, Maria, juntamente com o ancião motorista, rumam para a casa do sábio.

Maranês encontrava-se sentado na varanda da casa. Ao lado, o gato, o cachorro, o papagaio, o pato, o gavião faziam-lhe companhia. Já havia lido dois livros até aquele momento.

Ele, por sua vez, recebeu os dois funcionários públicos e Maria foi logo dizendo o que aconteceu. Portanto, somente ele poderia salvar a imagem do prefeito e da cidade.

Prontamente, ele aceitou. Ligeiramente, vestiu-se o terno preto, camisa branca, gravata vermelha. Pediu que o motorista carregasse dez caixas e as pusesse no veículo. Era presente que ele daria aos moradores da cidade.

Assim que chegou no palanque, mal deu tempo para respirar, o locutor anunciou a chegada do historiador municipal.

Agradecendo pela oportunidade e saudando convidados e autoridades, incluindo o povo, ele foi dizendo:

- A História é uma farsa...

Foi aquele espanto na praça. O prefeito coçava a cabeça. O governador e convidados balançavam a cabeça como se estivessem concordando. Autoridades abaixavam a cabeça e alguns riam. Enfim, foi o transtorno para todos.

Prosseguia:

- Quem descobriu o Brasil não foi Cabral. Foram os índios...

- A República foi tramada e não foi realizada.

- Tiradentes não foi enforcado... Foi outra pessoa que lá estava. Puseram-no cabelo e barbudo para...

- Os extraterrestres que nos criaram através de experiências genéticas...

- A segunda guerra não aconteceu. Ela, hoje, é o efeito da terceira guerra...

- Nossa cidade não fundada pelo Barão, conforme vocês aprenderam na escola. Diante de meus estudos, a cidade foi fundada por escravos que fugiram das fazendas de açúcar...

O alvoroço foi total. Era gente rindo, era gente chorando, era gente discutindo entre si.

Assim foi o término da festa. O historiador deturpava toda a história. Falava mais mentira e colocou D. João VI como o menino mimado e mais coisas.

No final, ele diz:

- Tudo que falei aqui está neste meu novo livro que publiquei. Pediram-me para falar e dou de presente um livro para cada pessoa que aqui está.

Então, Maranês, o sábio, distribuiu os livros. Ficou famoso mais uma vez e a coordenadora da festa foi demitida pelo prefeito. O governador falou que o sábio era o mais mentiroso da face da terra. Aprovou algumas de suas mentiras e encomendou livros para as escolas.

• Obs. Este conto é de ficção. Caso haja outro é puramente semelhança. O autor.

JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO
Enviado por JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO em 29/10/2023
Código do texto: T7919724
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