A Viagem
Sinopse
Na história "A Viagem", acompanhamos a jornada de um protagonista em busca de sua própria compreensão e significado no universo. Com um desejo ardente de explorar o espaço, ele acaba encontrando algo ainda mais profundo: o vazio absoluto que permeia o cosmos. Nessa jornada, ele encontra diferentes aspectos do tempo e do espaço personificados, como O Senhor, A Criança e a Maçã, que o guiam em uma busca pelo autoconhecimento.
Ao longo da história, o protagonista enfrenta seus próprios traumas e demônios internos, aprendendo lições valiosas sobre a vida, a morte e o equilíbrio entre eles. Ele atravessa os submundos de várias mitologias e finalmente encontra o vazio absoluto, onde compreende a natureza da existência e a eterna continuidade do universo.
"A Viagem" é uma narrativa profunda e filosófica que explora temas de autoconhecimento, espiritualidade e a interconexão de todas as coisas. É uma jornada de descoberta que leva o protagonista a um entendimento mais profundo de si mesmo e do mundo ao seu redor, e o lembra da importância de abraçar a incerteza e a transformação constante que permeiam a existência. É uma história que nos convida a refletir sobre nossa própria jornada e busca pelo significado na vida.
A Viagem
Queria ardentemente ir ao espaço. No entanto, meus pés permanecem imóveis. Meu olhar, porém, viajou numa velocidade mais rápida que a própria luz. Minhas retinas conduziram-me até o princípio e fim do universo. Testemunhei coisas inimagináveis, indescritíveis, jamais vistas pelos olhos humanos. Não tenho certeza de quanto tempo se passou… Um segundo? Um milênio? Só sei que quando finalmente me dei conta de onde estava e foquei o olhar à minha volta. Estava em frente ao vazio, ao nulo, ao nada absoluto.
Contemplei-o por um momento e, em seguida, cumprimentei-o. Contei a ele sobre a jornada que fiz, descrevi o que vi, ouvi e senti. Descrevi a ele o indescritível, o fiz imaginar o inimaginável. E ele me ouviu, processou, e começou a falar.
O Senhor, A Criança e a Maçã
Diante do vazio, encontrei- me em um estado reflexivo. Ele revelou também ser um viajante, tendo presenciado além do fim e antes do começo. O vazio também contou-me que ficou quase hipnotizado com o que contemplou, e apenas com auxílio do tempo que sem ter forma física acabou puxando-o para fora, assim conseguiu libertar-se dessa “prisão visual”.
Disse-me que o tempo se manifesta de diversas formas, que se modifica, transfigura a cada momento; afinal, ele também é o momento, o ontem, o hoje, o amanhã, o nascer, o morrer, tudo é responsabilidade dele. Para o vazio, o tempo assumiu três formas distintas. A primeira, representada por um senhor, ensinou-lhe o valor da existência e a importância de cada segundo. A segunda, personificada por uma criança, revelou-lhe a complexidade dos sentimentos e a capacidade interessante do intelecto que um ser é capaz de absorver. Por fim, a terceira forma se manifestou como maçã, levando-o a entender os ciclos pelos quais tudo passa, desde o crescimento e colheita até a eventual decomposição.
Após este diálogo que permanece vivo e fresco em minha memória, despedi-me do vazio e continuei minha jornada. Ao observar meus arredores, me encontro rodeado por um emaranhado de incertezas e questionamentos flutuando por minha mente. Acima de onde fluem meus pensamentos, avistei uma enorme nódoa negra pairando sobre mim. A grande mancha, então, absorve-me antes mesmo que eu possa tentar reagir, mergulhando tudo que era claro em uma escuridão total.
A Nódoa
Em meio a escuridão, ouço meus erros e angústias me atormentando, revivendo meus piores momentos e maiores fracassos de minha existência ao meu redor. Busco uma saída, uma forma de escapar dessa tortura mental, mas tuo que encontro é apenas uma alma errante, assim como eu, vagando pela vastidão da grande nódoa. O tempo parece congelado aqui, séculos se passaram e minha mente continua atormentada, presa nessa imensidão sombria.
Meus olhos não piscam, meus cabelos crescem e caem a todo momento, minhas unhas continuam crescendo dentro de meus sapatos, sinto algo se movendo dentro de mim, crescendo à medida que o tempo se arrasta. Ah, o tempo! Seria um alívio se o tempo pudesse entrar aqui e libertar-me; no entanto, é diferente! O tempo não pode entrar aqui, o vazio ficou preso depois do fim, e lá existe tempo. Eu estou preso dentro de minha própria mente, e aqui não existe tempo, ele ainda não nasceu; ironia cruel, o tempo é o nascer e o morrer, mas aqui ele sequer veio à luz. Eu passei a contar cada dia, cada hora, cada segundo que se arrasta lentamente, totalizando cento e nove mil e quinhentos e oitenta e dois dias desde que entrei aqui. Lá fora, porém, não se passaram nem uma fração disso. Provavelmente ainda estou sendo engolido pela nódoa. Estou preso, imerso na escuridão de minha própria mente.
A cada momento que passa, sinto-me à beira da loucura, preso por milênios nesse lugar sem tempo. Antes, pensei que estivesse em um sonho profundo, mas já sonhei o suficiente para reconhecer que isto não é um sonho, é um pesadelo interminável, onde o tempo é apenas ilusão minha e minha mente é o meu único companheiro nessa jornada angustiante.
O Felino
Eu a vi, sim, sem sombra de dúvida, ela estava lá. Não podia ser mais um delírio, a alma brilhante que vislumbrei há milênios, antes de minha mente ser tomada pela loucura, antes de meus dedos se decomporem e meus cabelos alcançarem os pés,se entrelaçando com os trapos de minhas vestes. A alma passageira, certamente o único ser além de mim e das vozes que agora ecoam em minha mente. Decidi então segui-la, mesmo com meus ossos imóveis a alguns anos e rangendo a cada movimento. A caminhada foi demorada, mas com estalos e rangidos alcancei a vagante e a chamei.
A alma se virou e revelou-se um felino preto, elegantemente vestido com trajes brancos e uma bengala em sua pata esquerda. Seus sapatos brilhantes cintilam em meu rosto, e o monóculo que usava revelou-me grandes olhos amarelados, como girassóis ao campo. O belo felino se dirigiu a mim e disse, com uma voz clara e imponente, que estava curioso quando me aproximei e disse com um tom brincalhão que com dois ou mais anos aqui eu estaria sufocado em meus cabelos. Gargalhei e logo tive que tossir, pois não me lembrava da última vez que senti uma gota de água descer pela minha garganta.
O felino ajeitou seu belo monóculo e perguntou o por que eu estava ali. “Diga-me você”, respondi. “Quando cheguei, você já estava vagando por esta grandiosa e extensa mancha no espaço-tempo.” Ele riu tão forte quanto o maior dos terremotos. Cambaleei, mas me mantive de pé. Ele então respondeu enquanto desaparecia diante de mim: “De fato estás certo! Estou aqui muito antes de ti; no entanto, o motivo por estares neste local permanece dentro de você.”
Fiquei indignado e retruquei: “Pode pelo menos responder-me quem és tu?” Novamente escutei a voz do misterioso felino, mas não o vi, e ele disse: “Eu sou você! Sou o que se esvai com o tempo e se perde no vazio ou vem parar aqui. Sou o senhor, a criança e a maçã juntos! Sou o que há de belo nas paisagens, plantas, animais e insetos. Sou até mesmo o que ainda não existe e o que já deixou de existir. Eu sou a vida!”
A Infância
Sinto tudo à minha volta se transformar, mas não literalmente. Fechei meus olhos, enchi meus pulmões de ar e analisei minha própria mente. Vi-me novamente no mesmo ambiente onde estou agora, mas de uma forma mais selvagem, com emoções e energias negativas personificadas em demônios e criaturas grotescas. Concentrei-me e as encarei, enfrentando meus medos, inseguranças, falsas certezas, frias derrotas, injustiças e todos os momentos errôneos que vivi e gostaria de apagar. Um por um, enfrentei todos esses aspectos sombrios de mim mesmo, e à medida que os derrubava, sentia-me mais leve, mais jovem e menos amargurado.
De repente tudo se clareou para mim. A grande mancha, antes negra e sombria, tornou-se branca, mas ainda não consegui me libertar completamente dela. Havia algo que precisava enfrentar, algo que não vejo há tempos, alguém que talvez se sentisse decepcionado ao ver meu estado atual. Virei-me e lá estava ele: Meu eu de seis anos, com seu olhar inocente, atento e curioso. Irradiando pureza e sonhos, sem medo do que virá em seu caminho. Ele me observou de cima a baixo, tateou meus cabelos, bagunçou minha barba e me deu um sorriso, o sorriso mais genuíno que vi em muito tempo. Meus olhos se desmancham em lágrimas, tentei escondê-las em meus cabelos. Sentia frio, medo, desespero.
Então ouvi uma doce voz chamando-me pelo apelido de infância que eu não escutava há muitos anos, mas que reconheci imediatamente. Ele estendeu a mão e disse que me levaria a um lugar fantástico. Segurei sua pequenina mão e ele começou a caminhar, conduzindo-me por entre memórias perdidas e sonhos esquecidos. A cada passo, eu me sentia mais próximo da inocência e alegria que deixei para trás. Naquele momento, percebi que precisava reencontrar meu eu de seis anos, pois ele carregava a chave para minha verdadeira liberdade e felicidade.
Adultos também sonham
Questiono a mim mesmo onde chegaremos percorrendo o nada, mas minhas dúvidas desaparecem num piscar de olhos. Diante de mim, vejo uma casa de campo próxima a uma cachoeira, onde a água fresca flui e peixes nadam livremente.Sob sombreiros, uma rede convida para o descanso. Decido entrar na casa, ao adentrar um dos quartos, uma onda de lembranças me envolve. Brinquedos de madeira e desenhos feitos com giz e carvão espalhados pelo chão revelam uma infância repleta de alegria e criatividade. Ou nem tão alegre assim.
Nas fotografias coladas na parede, reconheço meu pai, um homem de terno, com olhar ameaçador, e um charuto nos lábios. Ao lado dele, minha mãe, uma mulher com olhos de céu azul, cabelos ruivos cacheados, trajando um grande chapéu em sua cabeça cobrindo um pouco do rosto contendo um hematoma. Por último, uma foto minha, uma criança com olhar sonhador, pequenas marcas de queimaduras pelo pescoço e antebraço que me trazem árduas lembranças, percebo também olheiras profundas de quem dormia pouquíssimo para a idade. Tudo isso, é minha família, meu quarto, minha casa e eu naquela foto.
Percebo a criança que me acompanhou por essa jornada virando-se e voltando a caminhar, eu a sigo e questiono-a: “Por que procurou-me anteriormente? Por que escondeu-se por todo esse tempo?” E ela respondeu brevemente: “Eu sempre estive aqui, esperando por ti, mas você nunca veio me visitar.”
Corro às pressas em direção à minha antiga casa, chego ao quarto e olho-me no espelho. Vejo minha aparência envelhecida, amargurada e pútrida. Sinto-me um visitante em meu próprio corpo, como se pertencesse a outra pessoa. Pela janela, vejo meu falecido pai voltando da mata com marcas de arranhões, fraco e à beira da morte. No quarto ao lado, ouço os soluços de minha mãe chorando, com dores e machucados por todo corpo.
Olho-me novamente no espelho e vejo um olhar inocente curioso e cheio de pureza. Lembro-me de minha infância, dos sonhos que tinha, sem medo do que virá em meu caminho. E assim, desperto daquele estranho lugar, fora da nódoa.
Com o coração e mente renovados, sinto uma profunda compreensão das palavras do felino. Graças a ele, resgatei minha infância, revivi inúmeros traumas já esquecidos. Fui conduzido até as profundezas do meu ser e libertei-me das amarras do meu passado que me prendiam em uma casca rancorosa e sem alma.
A Serpente de Duas Cabeças
Assim que acordo e respiro o ar que preenche meus pulmões, tenho a certeza que estou de volta à realidade. Caço em minha própria mente, buscando ocaminho pelo qual seguia antes de ser consumido pela nódoa. À minha esquerda, vejo o caminho que me levou ao vazio, à minha direita, a nódoa da qual acabei de escapar. Volto-me para trás e percebo uma grande serpente de duas cabeças observando-me atentamente. À minha frente, vejo uma porta com pegadas e marcas que denotam o passar de muitas pessoas,
Analisando a porta com cuidado, sinto que, se decidir adentra-la, não conseguirei mais voltar. Após alguns minutos de reflexão, tomo a decisão de visitar a serpente de duas cabeças. Ao me aproximar, percebo que ambas são maiores do que eu imaginava. Uma das cabeças apresenta um olhar triste e sorriso falso em sua face, enquanto a outra possui um olhar penetrante e expressão ambiciosa.
A cabeça ambiciosa apresenta-se como Guerra, e afirma ser apreciada por todos os seres desde os tempos antigos. A outra, chamada Praga, é o oposto de sua irmã, sendo odiada por tudo e todos. Guerra anseia por mais: mais mortes, mais sangue, mais caos. Enquanto Praga só fazia sua obrigação, o que para ela era simples. Espalhar sua doença pelo universo.
Guerra já estava farta de sua irmã, que impede os seres de guerrear por causa das doenças que Praga disseminava. Em um movimento rápido como um raio, Guerra perfura Praga com suas presas. Fico perplexo ao testemunhar essa cena diante dos meus olhos. Praga cansada de tanto ódio voltado para ela, morde de volta,espalhando veneno e doença pelo corpo de sua irmã.
Guerra começa a se decompor e se transforma em cinzas levadas pelo vento. Assim percebo que, por mais forte que a Guerra seja, ela não pode vencer a Praga. Contudo, em poucos instantes, um broto surge no lugar onde antes estava a cabeça de Guerra. Em um ato de regeneração impressionante, ela ressurge viva e saudável.
Mesmo tendo acabado com a Guerra, ela sempre voltará, mais forte e mais destrutiva do que antes. Pergunto às serpentes quantas vezes isso aconteceu, e ambas respondem em sintonia: ”Incontáveis.”
Conversamos por mais alguns instantes, e ao me despedir, decidi voltar pelo mesmo caminho pelo qual cheguei anteriormente. Aprendi que, por mais que a Guerra possa ser derrotada, ela sempre ressurgirá, mas a resistência e a força da Praga a torna invencível. Com esta lição em mente, sigo adiante em minha jornada, consciente de que sempre enfrentarei desafios e adversidades, mas também sabendo que sempre encontrarei forças para me regenerar e continuar a lutar pelo que acredito.
A Porta
Encaminho-me novamente em direção à porta e me deparo com sua maçaneta desgastada e cheia de marcas. A hesitação toma conta de mim, questiono-me diversas vezes “O que estará do outro lado? Será possível retornar a este lugar se eu adentrá-la? Respiro profundamente, seguro a maçaneta e a giro, produzindo um som suave como o "tic tac" de um relógio antigo. empurro a porta com esforço por conta da ferrugem, suas dobradiças rangeram alto, confirmando meus pensamentos.
Um passo adiante, e a porta se fecha atrás de mim, mergulhando-me em completa escuridão. Minha primeira sensação é de familiaridade, parecendo que retornei à nódoa da qual saí recentemente. No entanto, algo parece diferente desta vez. O ar é gélido e meus passos ecoam por uma sala ampla enquanto percorro a escuridão em busca de uma fonte de luz.
Conforme me aproximo de uma luz que cresce ao longe, o frio se intensifica, e meus olhos começam a se fechar involuntariamente. Cada um de meus passos lentos é uma luta contra a exaustão que toma conta de mim. Minha garganta seca anseia por água, e meus pensamentos se tornam vagos, como se estivesse perdendo a consciência.
Um vento forte e uivante varre o ambiente, empurrando-me com força contra a parede.Meus sentidos já debilitados cedem, e acabo desmaiando, entregando-me temporariamente à escuridão que me rodeia.
O Abutre
Acordo em meio a uma atmosfera dos invernos mais gélidos sobre meu corpo. Sentindo-me mais fraco do que nunca, quase à beira da morte. Um odor pútrido paira pelo sombrio salão onde me encontro. O ar é opressivo, quase tangível, contaminando meus pulmões e dificultando minha respiração. Cada inspiração é como se lâminas afiadas atravessassem minha garganta. Ouço uma respiração pesada à minha direita, semelhante ao uivo da ventania. Minha visão lentamente se adapta à escuridão, e o que vejo são vultos de criaturas que preferiria não descrever.
A luz passa a retornar lentamente, revelando parte do lugar em que estou. Tudo tem tons de cinza, há corpos de animais e outras criaturas espalhados pelas paredes e pelo chão. No alto de uma pilha de corpos esqueléticos, um imenso abutre observa-me com estranho interesse. Pressinto que esta ave é a origem dos grandiosos ventos que me atingiram anteriormente. A criatura desce em uma rasante e pousa diante de mim. Ao observá-la de perto posso notar a ausência de pele em seu crânio, contrastando do restante de seu corpo. A ave desprovida de visão me responde com uma voz arranhada e rouca, antes mesmo de tê-la questionado: “Morte!, sou a velha morte que muitos temem, outros desejam e alguns almejam. Sou eu que acabo com a Vida quando o Tempo passa e a Praga domina.
Compreendo o erro que cometi ao entrar pela porta, o erro que tantos outros também cometem. Como pude ser tão descuidado? Apesar de todas as provações que enfrentei, acabei cometendo esse simples descuido, ao passar por uma porta. Agora, aqui estou, em uma conversa inesperada com a própria Morte.
O Sono
A Morte, o destino inevitável de tudo e todos que existem no vasto universo. Ela não executa com julgamentos, pois é cega diante da diversidade dos seres. Sua missão é encerrar os ciclos do tempo, sem fazer distinções. A própria Morte me observa com seu olhar vazio, que parece ler todos os meus pensamentos e devaneios. Ela me informou que, ao entrar ali, minha existência passou a ser de sua posse e minha jornada havia chegado ao fim. Sinto que meu coração não pulsa mais, meus olhos não piscam há horas, meu corpo está exausto e minhas articulações estão como gravetos no outono. A Morte me observa atentamente, como se contemplasse o último suspiro de vida que se esvai de mim.
Entrego-me a um profundo sono, minhas pálpebras fecham-se lentamente enquanto relembro toda minha jornada, minha odisséia pelo universo. Recordo os debates com o vazio. As lições que obtive da vida e o quão importante ela é. Lembro-me da reconciliação com minha criança interior, da superação de meus velhos e empoeirados traumas. Aprendi os papéis das serpentes siamesas, símbolos do equilíbrio e interdependência. E, por fim, a lembrança dolorosa da porta que adentrei inadvertidamente, e que agora parece selar meu destino.
A Morte permanece ali, silenciosa, aguardando o momento de encerrar minha história. E nesse instante, uma serenidade inesperada toma conta de mim. Apesar do meu inevitável fim, encontro paz na certeza de que cumpri minha jornada com aprendizados valiosos. Sei que meu legado, minha história e minhas experiências viverão além deste momento. Então, encaro a Morte com coragem e gratidão, pois ela é apenas uma parte desse ciclo eterno de renascimento e transformação. E, ao fim, entrego-me ao desconhecido com um sorriso, pronto para o próximo capítulo de minha existência, que agora transcende os limites da vida terrena.
O Outro Lado
Ao acordar de um sono quase interminável, percebo que a Morte não está mais ali, pelo menos não em forma física. Conscientizo-me de que adentrei ao submundo, mas não um submundo específico e sim a unificação de todas as mitologias. O abutre me guiou por entre os véus das mitologias, trouxe-me a um lugar além do tempo e do espaço, uma unificação de crenças e mitos. De Hel, a deusa nórdica que governa Helheim, até Hades, o soberano do submundo grego e seu fiel cão Cérbero.
Vagando por Hades visitei o esplendoroso Campo Elísios onde as virtuosas almas encontram seu repouso merecido. O Campo de Asfódelos, onde almas equilibradas vagam em paz, permanecendo no que em vida prestaram, o equilíbrio. Por último enfrentei o temido Tártaro, um reino sombrio onde as almas atormentadas pagam por suas maldades eternamente.
Encontrei Osíris, o deus egípcio dos mortos e testemunhei o julgamento das almas, cujos corações são pesados contra uma pena, determinando assim seus destinos.
Caminhando pelas terras celtas, pude ver Arawn, deus da vingança e do terror, montado em seu cavalo pálido e guiado por seus três cães de caça. No reino de Annwn encontrei um lugar de descanso, onde as almas encontram a paz e saciam seus desejos.
Ao passar por Whiro, o deus da morte maori, pude vê-lo devorando as almas recém-chegadas em seu submundo, deste modo ficando mais forte próximo de sua almejada libertação.
Percorri cada recanto dos submundos, até os menos conhecidos, conhecendo inúmeros deuses e compreendendo suas diversas culturas.
Neste momento único, encontro-me diante de uma porta inexplorada, um limiar além do alcance de qualquer ser vivo ou divino. Sinto a pulsante curiosidade em meu ser, e a porta, com sua maçaneta sem uso algum, parece me sussurrar segredos ancestrais. Não tenho a certeza do que me aguardará além dela, mas sei que sou movido por uma força maior, uma ânsia de conhecimento que me impele a abrir essa passagem.
Estou pronto para seguir em frente, cruzar essa fronteira desconhecida e enfrentar o inimaginável. O que quer que exista do outro lado, estou disposto a desbravar. Afinal, a jornada pela qual passei me trouxe até aqui, e a sede por desvendar os mistérios do universo nunca se saciará, O desconhecido me aguarda, e com coragem e determinação, darei mais um passo rumo ao inexplorado.
Com firmeza, segurei em sua maçaneta, girei-a sem encontrar qualquer resistência ou incômodo. E, finalmente, após uma longa caminhada, eu chego ao outro lado da porta.
O Fim?
Novamente, estou diante da porta, mas agora encaro sua outra face. Neste lado,ela está perfeitamente íntegra, não há marcas ou ranhuras. As únicas pegadas presentes são as minhas. Sua maçaneta ainda reluz cordialmente,o verniz de sua madeira ainda permanece intacto. Sento-me no chão e reflito sobre o caminho que fiz, todos os desafios superados, as dores suportadas, as lágrimas derramadas alcançar este ponto. Ergo-me e toco a porta, seu frescor é revigorante, sinto que sou o primeiro a tocá-la. Empurro-a, e ela se fecha logo atrás de mim.
O brilho intenso da sala ofusca minha visão e embaralha meus pensamentos. Com o tempo, meus olhos acostumam-se com a claridade, e percebo que este lugar traz lembranças eletrizantes de algo que ainda não me ocorreu. Aos poucos, compreendo onde estou e foco meu olhar no que me cerca. Então, percebo: Estou diante de algo que não existe, diante do nulo, diante do nada absoluto. Contemplei-o por um momento e, em seguida, cumprimentei-o. Contei a ele sobre a jornada que fiz, descrevi o que vi, ouvi e senti. Descrevi a ele o indescritível, o fiz imaginar o inimaginável. E ele me ouviu, processou, e começou a falar.
O Vazio
Então, em meio ao nada absoluto, o vazio começou a falar. Suas palavras eram como ecos distantes, sussurros ancestrais, segredos do universo. Ele me revelou que estava presente em todos os lugares, permeando cada espaço, cada vão entre as estrelas. Era a essência de tudo o que existe e também o que não existe. Era a fonte de todas as possibilidades, o caleidoscópio, o ponto de partida e o destino final.
O vazio contou-me que sua natureza é ser a ausência e o potencial, o silêncio e a canção. Ele é o que permite que algo exista, pois é a tela em branco onde a vida pinta suas cores e, ao mesmo tempo, é o fim de todas as coisas, o retorno ao ponto de partida, onde tudo se dissolve.
Fiquei fascinado com suas palavras, absorvendo cada conceito e ideia que ele transmitia. Percebi que, ao enfrentar o vazio, eu estava na verdade me encontrando com o cerne da existência. Era o encontro com a origem de tudo e com o destino final de todos os seres.
Compreendi que a jornada que havia percorrido até aqui não tinha sido apenas uma viagem pelo espaço-tempo, mas uma jornada rumo ao autoconhecimento, à compreensão do universo e de mim mesmo.
Enquanto o vazio continuava a falar, senti uma sensação de paz e serenidade me envolvendo. Todas as incertezas e angústias que me acompanharam durante toda a jornada desapareceram. Era como se eu tivesse finalmente encontrado a resposta para todas as minhas perguntas.
E então, em um momento de clareza, percebi que essa era a verdadeira conclusão de minha jornada. O encontro com o vazio, o reconhecimento de que todas as coisas são efêmeras, que tudo nasce e morre, mas que há uma eterna continuidade no ciclo do universo.
Ao sair da sala e retornar à realidade, levei comigo essa compreensão profunda e um sentimento de gratidão por tudo o que vivi. Agora, estava pronto para seguir adiante, sabendo que o vazio estava sempre comigo, tanto no silêncio interior quanto no movimento do mundo. Era a essência de tudo, e eu era parte desse tudo, conectado à grande teia da existência.