O extraterrestre no telefone

 

O EXTRATERRESTRE NO TELEFONE

 

Miguel Carqueija

 

 

Deviam ser três horas da madrugada, no melhor do sono, quando o telefone começou a tocar desesperadamente, arrancando-me de um longo e confuso sonho cheio de omeletes, faraós e macacos-prego. Tudo acontece e tudo se mistura nos sonhos, como vocês sabem. O fato é que, estremunhado, sentei-me a contragosto e estendi a mão para o aparelho.

— Alô! — minha voz devia ter um acento levemente irado, como a dizer: “Isto são horas?”.

— Alô! — uma voz nervosa, rouca e aflita, masculina, se fez ouvir. — Quem fala aí?

— É o morador — de fato, eu achava um desaforo ter de me identificar perante um estranho qualquer que me acordava intempestivamente altas horas da noite.

— Por favor! Eu sei que o senhor não vai me acreditar, mas preciso da sua ajuda! Eu estou preso aqui!

Deveria desligar? Como qualquer pessoa normal, abomino trotes.

— Ligou para o número errado. Eu não sou advogado.

— O senhor não está entendendo! Eu estou preso na linha! Isto é, na linha do telefone!

— Muito interessante, mas agora não tenho tempo! Boa noite!

Desliguei e tentei voltar para o travesseiro.

O telefone tornou a tocar.

Atendi de novo, já imaginando quem era.

— Alô! Por favor, não desligue! Deixe ao menos que eu explique a minha situação!

— Quem é você, afinal?

— Bem, o meu nome é Jykvskyoulhmninsky...

— O que?

— ... e sou habitante de Strkpqôzthzon, e é a primeira vez que passo por aqui...

— Olhe, eu não conheço esse lugar que você falou...

— É claro que não! Vocês não sabem viajar pelas dimensões!

— Hein?

— Agora o senhor começa a compreender. Nossa raça está acostumada a fazer passeios entre as várias dimensões do Universo, e geralmente não somos percebidos pelos habitantes locais em razão da diferença de frequência. Mas dessa vez aconteceu um acidente comigo: fiquei preso na frequência do seu aparelho, e não consigo sair de dentro da sua linha. E eu preciso voltar para casa! Tenho dezenas de oquinozes para lustropicar amanhã, e meu patrão não é muito camarada. Não posso chegar atrasado!

— Ah, meu Deus... isso só acontece comigo — pensei amargurado. Assim mesmo tentei enfrentar a situação:

— Bem, não se desespere, homem. Afinal, isso é o tipo da coisa que pode acontecer a qualquer um. Mas esclareça alguns pontos: quantas horas tem o dia no seu planeta?

— Não muitas... só 74.

— E que horas devem ser lá agora?

— Umas 63 ou 64... já é tarde, percebe? Eu tenho que pegar amanhã às 30 e tenho que dormir pelo menos algumas dezenas de horas...

Lembrei-me que não tinha indagado quantos minutos tinham as suas horas, mas faltou-me coragem.

— Mas, Jyk... mas, meu amigo, você é um ser corpóreo, desculpe perguntar?

— É claro! Está pensando que eu sou algum fantasma?

— Não, não... mas como é que você pode ter ficado preso numa frequência telefônica, como se fosse uma onda ou sei lá o que?

— Ah, isso — pareceu-me que ele sorrira de alguma maneira. É fácil entender, facílimo. Acompanhe o meu raciocínio:

— Antes de mais nada, a saída dimensional provoca uma dissociação da nossa matéria original, e o todo do nosso conjunto — corpo, roupas, equipamentos e personalidade — ficam como que unificados numa faixa de campo vibratório. Por isso podemos, se assim o quisermos, passar despercebidos em outras dimensões ou universos. No retorno ao meu mundo eu serei devidamente decodificado pelo aparelho transdimen, que me reconstituirá plenamente. Como pode ver, é simplíssimo.

— Tem toda a razão. Mais fácil que isso, só o bê-á-bá.

— Só o que?

— Esquece. Mas considerando o acidente ocorrido, você conseguirá retornar assim mesmo, sem problemas?

— Certamente, pois a máquina transdimen está sintonizada com o meu comprimento de onda pessoal e nosso ser conserva sempre um tropismo que o faz retornar caminho passado algum tempo, muito embora no presente caso isto não seja possível, magnetizado como eu me encontro dentro do seu aparelho.

— Mas então... ah, antes que eu me esqueça: afinal como é que você fala a minha língua?

— Eu não falo a sua língua. Acontece o seguinte: no estado sutil em que me encontro eu me adapto, quiçá sem dar conta, ao código que passa habitualmente por esta linha, código que vocês chamam de Português.

— Mas como você aprendeu tanta coisa assim de repente?

— Eu não aprendi nada. A vizinhança de tantas comunicações por via eletromagnética, cuja velocidade é imensa, é que transmite ao meu corpo etéreo o conhecimento, como se fosse por osmose, entende, não é?

— Claro, é claro que entendo — respondi descaradamente. — Mas vamos ao que interessa. Como foi que você caiu numa armadilha dessas?

— Acidentes dessa natureza são muito difíceis de ocorrer. Acredito que esteja havendo uma tempestade magnética no sol do seu sistema, pois quando me aproximei deste universo parecia estar atravessando uma verdadeira ingurunga. Então, de repente, não pude mais me deslocar. Quando percebi o que estava acontecendo, não me restou alternativa senão chamá-lo.

— Ah, sim. — dei um longo bocejo. — Bem, eu também preciso dormir. Como é que vamos fazer para tirá-lo daí?

— Ah, isso é você que tem de arranjar. Eu não estou familiarizado com o sistema de comunicações do seu orbe.

— E enquanto isso, se alguém me telefonar?

— Receio que eu bloqueie a ligação com minha presença. Ou então serei forçado a escutar tudo.

— Compreendo.

Ideia bastante desagradável.

Pensei depressa:

— Me dê um tempo, por favor. Arranjarei logo a solução, ou assim espero. Vou desligar, mas evite voltar a chamar, está bem? Preciso pensar.

— Está bem, eu aguardo. Mas não demore muito, por favor. Não é agradável permanecer aqui dentro.

 

 

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Meia hora depois ocorreu-me finalmente uma ideia brilhante, e essa ideia resolveu o busílis. Eu havia pensado em desmontar o fio, mas as consequências me pareceram por demais duvidosas. Idem para desligar o fio da tomada, pois a exata localização do alienígena era incerta e provavelmente ele continuaria preso na parede. Além disso, não seria razoável pedir à Telemar para desligar a telefonia no bairro inteiro, na suposição de que isto libertasse o visitante. Então me ocorreu a ideia de como desmagnetizá-lo.

E assim peguei o fone outra vez, o que foi o bastante para que a voz novamente se apresentasse.

— Então? Já tem a solução?

Lembrei-me de ter lido certa vez sobre um “duende”, numa cidade alemã, que fizera soar um telefone continuamente, mesmo depois de o terem encerrado numa caixa. Teria sido um caso semelhante? Como quer que seja, disse “ouça” e desejei boa viagem ao nosso amigo.

E pus para tocar um CD de funk...

 

 

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Bem, o caso foi esse. Convenhamos: disco de funk, nem alienígena no telefone aguenta.

Nunca mais tive notícias dele. Suponho que conseguiu liberar-se e retornou ao seu mundo, como me garantiu que podia fazer. Até hoje eu pergunto a mim mesmo se tudo aquilo aconteceu de fato, ou foi só um elaborado trote de algum fã de ficção científica...

 

 

imagem pinterest

 

 

(Nota: este conto foi escrito na década de 1980, quando ainda não existiam celulares, e foi ligeiramente revisto, mas as mudanças foram mínimas )

Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 10/10/2023
Reeditado em 11/10/2023
Código do texto: T7905831
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