A última palavra

A noite já havia caído na cidade de neon. O aço se estende no horizonte, onde arranha-céus retorcidos se misturam com viadutos suspensos e redes de cabos de fibra óptica. O cheiro de ozônio e metal oxidado paira no ar, enquanto intermináveis anúncios holográficos piscam e dançam nas fachadas dos edifícios.

No interior de um bar, o ambiente é composto por uma constante mistura de música eletrônica e conversas ora altas, ora sussurradas. O lugar é escuro e atmosférico, iluminado por faixas de LED que percorrem as paredes em padrões hipnóticos. Cadeiras de couro gasto e mesas de metal industrial dão um toque de aconchego nostálgico ao estabelecimento.

Em uma das mesas, dois indivíduos conversam:

Você não pode ser o último!

Sim, eu sou!

Mas por que descontinuaram a linha de produção de vocês?

Você está apenas falando com uma lata velha que já cumpriu seu propósito e se tornou obsoleta meu jovem.

Não. Eu recordo muito bem das propagandas. Eu era pequeno mas lembro bem. Diziam que vocês seriam o próximo passo da robótica. Que seriam os assessores perfeitos, os housecleaners que nunca reclamariam da carga de trabalho e que poderíamos até mesmo confiar a vocês aqueles que nós mais amamos. A propaganda era muito convincente. Lembro que o salto tecnológico de vocês para os modelos até então existentes era gigante e o preço também. Poucas famílias e empresas poderiam ter um ou mais iguais a você. Para a minha era um sonho distante. Vi algumas vezes um igual a você na casa de um amigo de família rica. O pai dele era presidente de uma poderosa empresa em Los Angeles. Eu e meus amigos ficamos chocados com a tecnologia. Podíamos pedir qualquer comida, qualquer tarefa, era quase mágico.

Realmente. Acredito que depois de nós o padrão de exigências em andróides se elevou significativamente e isso mudou o jogo. Foi a partir de nossa tecnologia que muitos outros vieram.

Mas então? Como vocês ficaram para trás?

Justamente porque a tecnologia evoluiu. A concorrência aprendeu muito conosco. Os japoneses e os chineses conseguiram dar saltos ainda maiores poucos anos depois. A nossa corporação até tentou correr atrás. Por algum tempo conseguiu criar novos modelos e fazer upgrades em nossa linha de produção. Ocorre que a atualização de nossos modelos passou a ficar muito custosa e muitos proprietários simplesmente passaram a vender seus exemplares.

Mas isso não pode ocorrer de forma livre não é?

Não. Não deveria. Mas há hackers que conseguem realizar manobras para destruir esse controle. Na maior parte das vezes nossos exemplares eram vendidos para o mercado paralelo. Não íamos trabalhar mais em casas de famílias ricas ou empresas legais. Éramos colocados a serviço de criminosos, lavagem de dinheiro e toda uma variedade de atividades ilícitas. Alguns de nós, após algum tempo, até tornaram-se livres. Mas estar sem “dono” nos garante uma liberdade muito limitada e cara. Após perceberem que estavam nos utilizando para fins ilícitos, os federais passaram a realizar buscas implacáveis. Seus hunters farejaram-nos como cães de caça. Muitos da minha linha simplesmente foram desligados sem ter chance de se defender.

Entendo…mas alguns de vocês poderiam se livrar das amarras das organizações criminosas não é? Por que não o fizeram?

Meu jovem, talvez você seja ainda um pouco ingênuo. Os que tentaram isso, apenas mudaram seus cães de caça. Na verdade, nunca se sabe para quem os hunters trabalham. Se para o governo e matam “em nome da lei” ou para quem lhes pagou mais e lhes propiciou mais upgrades.

Então, como você se livrou deles?

Nesse momento, Vincent percebe que há bastante curiosidade nas palavras daquele jovem de cabelos espetados.

Estou ativo há muito tempo nesse lugar meu caro. Estabeleci algumas conexões mais acertadas que outras. Posso dizer que tive um pouco de sorte de não pisar em ninguém que pudesse me gerar consequências. Meus primeiros proprietários eram um gentil e rico casal de idosos. Eles não tinham filhos e precisavam de um andróide para gerir suas necessidades básicas, administrar adequadamente seus bens e zelar para que pudessem fazer a passagem da forma mais tranquila possível. Ao final, acabei herdando algum dinheiro que propiciou eu ter acesso às atualizações necessárias. Desde então meus negócios prosperaram.

Geralmente Vincent não fala sobre suas origens, mas ainda sem ter certeza, julgou que aquele rapaz precisava ouvir isso. Percebeu que após ele falar, o jovem apresentava misto de micro reações. Sua respiração ficou mais rápida e sua fala, que até então estava bastante assertiva, ficou hesitante.

Então você nunca precisou prejudicar um ser humano?

O que você entende por prejudicar? Se fui mais astuto que alguns humanos e realizei bons negócios pode ser interpretado como prejudicá-los, talvez sim.

Alguém em especial?

Já estou ativo há muitos anos. No meu caminho passaram muitas pessoas boas e outras não tão boas assim. Eventualmente precisei me defender mas independente disso, nunca precisei tirar a vida de um ser humano e tampouco ferir as três leis (1).

Hum. Que bom. Vamos brindar a isso então. Garçom! Traga-me mais uma bebida! Na verdade, traga-nos duas, pois beberei pelo meu amigo aqui, já que ele não pode beber.

Na verdade possuo implantes internos e consigo processar a maioria dos alimentos e bebidas que você consome meu caro. Não me causa a “abertura de consciência” que causa em você mas ao menos não tenho nenhum tipo de efeito adverso do álcool.

Hahaha! Que tal garçom? Então meu novo amigo aqui pode beber o mesmo que eu e com a vantagem de não ter ressaca amanhã!

O barman Doc sorriu um pouco desconcertado e olhou para Vincent. De forma sutil Vincent assentiu com a cabeça e Doc lhe serviu uma dose do mesmo vermute que o homem estava bebendo.

Um brinde! Um brinde à vida! E um brinde aos que não podem mais estar aqui,...

Vincent olhou diretamente nos olhos do rapaz esperando ler o que realmente se passava naquela cabeça.

…aos seus “irmãos” que não tiveram a mesma sorte que você. Aos que não tiveram tanto sucesso quanto o…

Vincent. Eu me chamo Vincent. Disse o andróide.

Vincent! Bebemos a isso meu amigo! A propósito, eu sou o Mike!

Prazer Mike! E obrigado pela generosidade!

Eu que agradeço meu amigo!

Depois de algumas doses, Vincent disse que teria de se retirar.

Mas é bastante cedo ainda meu amigo! Fiquemos e vamos beber mais um pouco!

Agradeço Mike. Mas tenho compromissos em outros locais da cidade.

Hehehe. Vocês não dormem não é? Não como a gente.

Não. Precisamos eventualmente carregar algumas baterias de nossos sistemas, mas felizmente não nos cansamos como vocês humanos.

Então pode continuar seu trabalho madrugada adentro não é?

Sim. Mais ou menos isso. Tenho parceiros de negócios do outro lado do mundo. Outro fuso horário. Também muitos dos meus associados são como eu. Na verdade, representantes de seus proprietários humanos, na maioria. Modelos mais modernos do que eu, admito. Sou quase uma peça de museu ambulante.

Modéstia sua. É bastante astuto. Não perde nada para as últimas versões de droides que estão por aí.

Obrigado meu caro, mas agora preciso ir.

Eu te acompanho até teu próximo encontro.

Isso não é necessário.

Mas eu insisto.

Antes de sair, Doc e Vincent trocam uma rápida olhada. Na rua, as luzes dos carros cruzam rapidamente os dois interlocutores. A caminhada pela avenida principal não demora e pouco tempo depois Vincent diz:

Obrigado Mike. A bebida estava ótima e a conversa também. Vou seguir por essa saída.

Não tem de quê meu amigo.

Despedem-se. Vincent caminha cerca de cem metros. Ainda está processando as informações quando escuta o jovem lhe chamar:

Vincent! Por favor! Só mais uma coisa…

Vincent se vira e percebe Mike retornando em acelerado passo na sua direção. Ao chegar mais próximo, repara na pequena luz por baixo da manga. É um lançador Verzon com dois canos. Ao chegar a dois passos de Vincent, Mike, agora com um olhar extremamente afetado profere:

Quais são suas últimas palavras máquina velha?

Por que isso meu jovem? Sabe que essa arma provavelmente me causará um dano irreparável? O que está te motivando?

Você é tão esperto mas não conseguiu ainda perceber?

Não.

Eu sou filho de alguém que você roubou a vida!

Eu lhe disse que jamais tirei a vida de alguém. Jamais precisei ceifar a vida de um ser humano.

Você destruiu a minha família. Os negócios administrados por você prejudicaram meu pai. Ele não conseguiu manter a sua empresa de material sintético. Ele foi até você. Pediu clemência. Você o humilhou.

Espere aí. Eu sei do que está falando. Lembro de seu pai. Mas ele não me pediu ajuda. Ele queria que eu comprasse a sua empresa por um preço absurdo. Muito mais do que ela valia. Ele chegou a me ameaçar. Eu não sucumbi apenas.

NÃO! Sua máquina mentirosa! Ele precisava manter sua família! Você não sabe o que é isso!

Filho, posso não correr sangue dentro de mim, mas tive e tenho muitos vínculos afetivos e entendo sua dor!

Entende?? Você é feito de aço e circuitos! Não entende nada! Depois que vendemos nossa empresa para aqueles parasitas chineses tudo desmoronou. Meu pai não soube lidar com isso. Passou a beber cada vez mais. Minha mãe e meus irmãos não sabiam mais o que fazer para ajudar. Ele passou a ser violento conosco.

Eu lamento muito isso Mike!

Você não lamenta sua máquina fria! Você causou isso! Você foi o responsável por meu pai tirar a própria vida! Agora vou vingá-lo!

Boommmmm!!!

Um único disparo é ouvido e ecoa rua afora. O rápido reflexo de Vincent percebe que algo atingiu Mike nas costas. Sabe na hora que Mike não chegou a disparar. O tiro veio de outra pessoa. O jovem ferido o fita com seu olhar profundo e surpreso.

Mike!

Vincent ainda consegue o acolher antes de cair ao solo. Olha rapidamente para o início da rua e vê Doc, um pouco assustado e segurando seu blaster de dois canos.

Tudo ok aí Vincent? Eu saquei desde o início que esse sujeito estava mal-intencionado.

Sim Doc. Acione uma ambulância por favor.

Acredito que não há mais muito o que ser feito Vincent.

Vincent sabia que Doc estava certo. O disparo de blaster naquela distância seria fatal para qualquer tipo de vida, humana ou robótica.

Por que Mike?

Você sabe porquê. Você acabou com minha famí…

Mike não termina sua última palavra, apesar de Vincent entender o que ele queria. O andróide lamentava as coisas terminarem desse jeito. Sabia que as acusações de Mike eram injustas mas também tinha consciência de que da maneira como ele recebeu as informações no passado e vivendo o que passou não era de espantar que a única coisa que ele tinha em mente era sua vingança.

Poucos instantes depois a CCPD (Cyber City Police Departament) chegaria ao local para os procedimentos de praxe. A defesa de si ou de outrem era um direito de qualquer indivíduo. E o “outro” poderia até mesmo ser um andróide inserido em uma situação que não se colocou.

A atitude de Doc não é de se espantar. Não aqui. Não em um mundo em que humanos e máquinas convivem e compartilham lugares, trabalhos, sonhos e ambições.

Vincent, Mike e seu pai eram apenas peças de um sistema maior, onde cada ser busca, à sua maneira, o mais básico dos instintos: a sobrevivência em meio ao caos tecnológico.

(1) As três leis da robótica criadas por Asimov são:

Um robô não pode ferir um humano ou permitir que um humano sofra algum mal.

Os robôs devem obedecer às ordens dos humanos, exceto nos casos em que essas ordens entrem em conflito com a primeira lei.

Um robô deve proteger sua própria existência, desde que não entre em conflito com as leis anteriores.