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Em um futuro onde as cidades são protegidas artificialmente contra as variações bruscas de temperatura, onde a exploração interplanetária já é um negócio lucrativo e onde a riqueza de um ser humano é medida pela quantidade de vida animal e vegetal que possui, vive Nebulosa Marylin, uma jovem moça que saiu de sua megalópole para trabalhar em uma “cidade ecológica”.Nas cidades do futuro as doenças são diagnosticadas e tratadas em questão de segundos por cápsulas médicas, o turismo abrange grandes cidades do passado que ficaram submersas, a água potável é um bem extremamente raro e caro pelo fato dos oceanos estarem contaminados por radioatividade, e as máquinas e robôs androides estão se tornando cada vez mais humanos. E é por causa delas que Nebulosa consegue seu primeiro emprego. Só não imagina que é através delas que descobrirá o amor.Nebulosa descobre também que sofre de uma doença, mas, mais do que isso, está ciente de uma tristeza nostálgica aparentemente sem explicação que domina sua mente. Em meio a isso, uma onda de natimortos do sexo masculino intriga não apenas a sociedade, mas a comunidade científica. É em meio a esses acontecimentos que a jovem moça descobrirá o motivo da aflição que tanto a incomoda naquele mundo evoluído e, ao mesmo tempo, tão desolado e triste. Surpresas a aguardam pelo caminho.
PRÓLOGO
Admirável Velho Mundo
Nebulosa Marylin nasceu no planeta Terra no ano de 2481 d.C., na megalópole São Paulo. Era uma jovem solitária e órfã de pai, justamente no momento em que os homens eram escassos no mundo. Naquele século, pouco mais de oitenta por cento da população mundial era composta por mulheres.
A maior parte dos meninos concebidos era de natimortos. Até mesmo aqueles gerados artificialmente, nas incubadoras chamadas de vitros de gestação, não sobreviviam. A princípio, não havia uma causa biológica nem científica conhecida que explicasse este fato, mas a ciência procurava incansavelmente uma resposta para tal fenômeno, que intrigava toda a humanidade.
Olhar para o passado e perceber como a Terra um dia havia sido bela representava mais que uma tristeza para Nebulosa, era como não querer estar no presente e nem presenciar o que a realidade havia se tornado. No coração dela, as lembranças boas machucavam mais do que as ruins.
A convivência cotidiana entre seres humanos e robôs humanoides com alto nível de consciência confundia os sentimentos. Os androides eram seres tão reais! Como poderiam ser apenas máquinas?
Nem mesmo a avançadíssima tecnologia podia suprir a falta dos recursos naturais que deixava as megalópoles tão cinzas. Todas as ruas e casas sem árvores, sem plantas, sem animais domésticos; a radioatividade advinda dos vazamentos de usinas nucleares e das bombas atômicas dos séculos anteriores destruíram os ecossistemas, a fauna e a flora, de modo que somente os moradores muito ricos das cidades ecológicos tinham acesso, embora restrito, aos bens biológicos, como plantas, animais e alimentos naturais, tudo reproduzido em pouca quantidade em laboratórios caríssimos.
O velho mundo era mesmo admirável. Suas lembranças faziam Nebulosa Marylin desejar ter nascido no passado, onde a natureza não era apenas hologramas, onde seres vivos não eram apenas máquinas. Nos séculos anteriores os animais haviam sido mortos em larga escala para serem consumidos; no século XXV já não havia mais animais, nem mesmo em quantidade mínima, para servirem de alimento aos humanos. Vegetais sintetizados eram tudo o que havia restado.
Planeta Terra
Ano 2500 d.C
Os sensores detectaram a presença de um ser à porta. Nebulosa levantou-se da poltrona.
— Abrir – ela autorizou o sistema.
A porta abriu-se.
— Boa noite. – Ela sorriu.
— Boa noite, senhorita Nebulosa Marylin. Eu sou o robô Google Store número 9678. Estou aqui para fazer a entrega da cota mensal de suprimentos alimentares sintéticos à sua mãe, a você e às suas irmãs Águia Caronte e Pandora.
— Obrigada, robô Google. Você é novo por aqui, não é mesmo?
— Sim. Iniciei hoje meus trabalhos de entregas neste conjunto de edifícios.
— Seja bem-vindo.
— Aviso importante: seu padrasto já deixou adiantado o pagamento referente aos cinco próximos meses de suprimentos. Aqui está a caixa.
— Mais uma vez, obrigada, robô Google. Eu mesma recebo o pacote. Gerar código de recibo no sistema. – Ela agradeceu e sorriu com simpatia.
— Código de recibo gerado e gravado. Até logo, senhorita.
— Até o próximo mês. – Nebulosa já estava segurando a pequena caixa de acrílico dentro da qual havia os envelopes de alimentos sintéticos.
Persis entrou na sala.
— Nebulosa, quem chamou à porta? – ela perguntou.
— Mãe, já está em casa? Era apenas um robô da Google Store fazendo a entrega mensal da nossa cota de alimentos sintéticos.
— Chegou mais cedo nesse mês. Ainda temos comida da cota anterior. Sobraram envelopes de vegetais secos e pílulas vitamínicas.
— Estamos comendo pouco. Ah! Seu marido deixou adiantado o pagamento dos próximos cinco meses de suprimentos.
— Verdade? Pelo menos isso! E eu que já estava achando ele um tanto avarento... Ultimamente ele só tem dado atenção para as esposas das cidades espaciais.
— Não deveria reclamar, mãe. Você tem sorte de ter conseguido se casar de novo depois da morte do papai.
— Sim, talvez eu tenha mesmo. Mas, mudando o assunto, vi agora a notícia. A SpaceX Revolution acabou de enviar mais uma nave espacial tripulada com robôs androides para o planeta Marte.
— Jura? Incrível! É uma viagem arriscada e cansativa para humanos, que acabam ficando por lá mesmo. Semana passada eu estava revendo em uma cabine (cápsula) do tempo, de uma amiga minha rica, o momento em que o clone do doutor Musk pisou em Marte pela primeira vez, no ano de 2200 d.C. Senti como se fosse eu mesma chegando lá.
— Também não canso de ver esse momento na cápsula holográfica do tempo que, inclusive, está cada dia mais atualizada, com cenas inéditas de acontecimentos fantásticos do passado. Pena que é tão cara a hora de uso. Mas às vezes vale a pena pagar por quinze minutos de curiosidades sobre o passado. Se o doutor Musk pudesse ver o momento em que o clone dele chegou a Marte, 129 anos depois de sua morte, com certeza ele se emocionaria. – Persis sentou-se na poltrona e ativou a tela holográfica de imagens e notícias.
— É uma pena que ele tenha falecido antes de ver seu sonho de chegar ao planeta vermelho realizado. Foram tantas tentativas frustradas e vidas perdidas no caminho.
— Sim, é uma pena mesmo! Mas o que importa é que aquele foi o inesquecível ano de 2200 d.C, a data em que pela primeira vez uma nave tripulada conseguiu chegar ao planeta vermelho, e o clone do doutor Musk foi o primeiro homem a pisar lá. De certa forma, o sonho dele se realizou com a presença dele.
— Sempre choro de emoção quando vejo as imagens. – Nebulosa já estava com os olhos lacrimejando.
— Ah, e antes que eu me esqueça, suas irmãs ainda não voltaram do trabalho. Por favor, separe as porções mensais de suprimento alimentar de cada uma e as disponha em ordem no cômodo de armazenamento alimentar para que não haja confusão no momento de consumi-las.
— Farei isso, mãe. Conheço as irmãs que eu tenho e sei bem que Águia Caronte e Pandora sempre brigam acusando uma a outra de terem recebido mais suprimento. Eu só continuo triste porque eu ainda não consegui um emprego.
— Não se preocupe com isso, Nebulosa. Com seu curso novo, logo conseguirá um trabalho em uma cidade ecológica e poderá viver melhor do que aqui na megalópole.
No ano de 2500 d.C. Nebulosa Marylin era uma moça de classe média sem muitos sonhos. Ao menos ainda pôde ter um lar, um apartamento com refrigeração padrão. Ela não frequentou a escola, pois esse era um privilégio apenas das crianças ricas e de alto QI das cidades ecológicas. Nasceu em 2481 d. C, e depois de quase duas décadas quase nada havia mudado no mundo.
Ela aprendeu a ler e escrever como qualquer outro indivíduo da classe média ou pobre: através dos microdispositivos holográficos de alfabetização que transmitiam as informações e conhecimentos armazenados por séculos. Esse dispositivo era distribuído gratuitamente pelos governos. Não existiam analfabetos no fim do século 26. Até o mais miserável sabia fazer cálculos, ler e escrever, inclusive em outros idiomas.
A desilusão de Nebulosa com o mundo e com a vida era imensa, porque não via nenhuma expectativa nova para sua monótona existência. Aquela cidade era o retrato da devastação, da pobreza e da miséria, que, na verdade, havia começado desde o século XIX.
Cem por cento das máquinas, robôs, naves, carros, aparelhos, luminárias e tudo o mais era movido à base da energia que mais castigava o mundo: a energia solar. A atividade solar e emissão de raios solares tornaram-se cada vez mais intensas, abundantes, de forma que era possível consumi-la de maneira esbanjadora e inesgotável. Todo aquele calor que havia destruído as lavouras e o solo do planeta era o mesmo que mantinha funcionando os refrigeradores, as fábricas, as estufas e, assim, garantia a sobrevivência da população.
A ciência ainda não havia encontrado uma explicação exata, mas antes daquele século iniciou-se um processo anormal de nascimentos de mulheres na Terra e pouquíssimos homens. Quase 90% dos meninos gerados, tanto in vitros de gestação quanto naturalmente, nasciam mortos.
Havia em média 80 a 100 mulheres para cada homem, sendo que os mais saudáveis dos homens e a maioria que nascia viva eram gerados em vitros gestacionais nos grandes e caros centros de clonagem e reprodução humana. Esses centros estavam localizados longe da confusão das megalópoles; ficavam nas cidades ecológicas, locais perfeitos para os ricos viverem cercados de natureza, tecnologia e saúde.
Eram cidades cápsulas que os protegiam de tempestades torrenciais e dos dias de calor extremo causados pelas tempestades solares. Em certos dias a temperatura alcançava 65 graus Celsius em plena América do Sul. Nessas ocasiões, os tetos das cidades ecológicas permaneciam fechados, formando uma imensa cápsula protetora.
O dia foi trocado pela noite. Nas doze horas em que o sol aparecia todos dormiam, e durante as doze horas da noite as pessoas trabalhavam, mendigavam, ficavam acordadas exercendo suas atividades diárias.
A radioatividade despejada dentro dos oceanos nos séculos 21 e 22, através de vazamentos de usinas nucleares e detonação das bombas atômicas, contaminou as águas e o solo em todo o planeta Terra, causando o maior desequilíbrio ecológico da história da humanidade, jamais imaginado até mesmo no período da grande guerra nuclear.
Todo o continente americano tornou-se um único país chamado Nação Unificada da América do Brasil. Sua capital era a Cidade Ecológica Nova Florianópolis, localizada no interior do antigo estado de Santa Catarina, região sul do antigo Brasil, um dos últimos lugares da Terra onde havia restado solo fértil para plantio sem contaminação radioativa.
O desequilíbrio ecológico resultante dos desastres nucleares causou o grande degelo da Antártida, fazendo quase todo o litoral do continente americano ser submerso pelo oceano. Cidades flutuantes foram erguidas sobre as águas. As casas eram caríssimas, mas muito resistentes a furacões e tempestades torrenciais litorâneas constantes.
Cada cidade possuía seu próprio administrador governante e leis independentes, não sendo permitido somente que suas legislações contradissessem a Constituição Universal que regia todo o planeta. O idioma era a combinação gramatical do português, inglês e espanhol, com a presença de vários dialetos originados a partir de outros idiomas.
Nos prédios das megalópoles não havia janelas, para que o ambiente interno não sofresse nenhuma interferência da temperatura externa. A luz e a radiação solar eram insuportáveis, a atmosfera terrestre já não mais protegia o planeta como antes. O calor vindo de fora era extremo, bem como o frio algumas vezes.
O cenário nas megalópoles seria um tanto inacreditável para a civilização das dezenas de séculos anteriores. Havia mulheres por todos os lados, aos montes, sentadas nas esquinas dos túneis, pedindo esmolas, algumas muito jovens e abandonadas, meninas sem lar, outras andando em grupo até contentes por terem uma família. Parecia um planeta apenas de seres femininos, e em meio a todas elas via-se com espanto um homem ou outro.
Como medida de contenção e na tentativa de aliviar essa calamidade social, os quatro governos administradores da Terra, um de cada continente, aprovaram e determinaram uma nova lei mundial que obrigou a poligamia masculina. Nebulosa Marylin possuía catorze irmãs e um irmão. Seu pai faleceu deixando dez esposas, catorze filhas e apenas um filho. Destas, quatro já eram casadas, duas moravam com ela e sua mãe Persis, e as outras sete trabalhavam no laboratório de cultivo vegetal na cidade espacial número 8. Seu irmão era geneticista em um centro de reprodução humana na cidade espacial número 12.
Mesmo sendo ainda tão jovem, Nebulosa sofria com um câncer recidivo de estômago. Sem condições de pagar um médico androide nas clínicas das cidades ecológicas, ela dependia exclusivamente das cápsulas populares de injeções nanorrobóticas. As cápsulas eram espécies de cabines onde as pessoas doentes entravam para receber injeções de nanorrobôs, que eram introduzidos em suas veias ou no local específico da doença. Havia centenas dessas cápsulas espalhadas por todas as megalópoles pelo governo, para tratar a população contra todas as doenças físicas. Havia também cápsulas psiquiátricas para tratar males mentais.
Os pacientes entravam na cápsula, que possuía um sistema de diagnósticos por imagem quântica-atômica, e em poucos segundos o sistema revelava qual era a doença e ali mesmo receitava e aplicava o tipo de injeção nanorrobótica necessária para o indivíduo. Os nanorrobôs, que são microrrobôs do tamanho das células, por sua vez entravam no exato local da doença e, em poucas horas ou até minutos, a destruía.
No caso das cápsulas psiquiátricas, o indivíduo adentrava-a, contava seu problema e em poucos instantes uma sequência de imagens, sons, palavras e ondas de partículas eletromagnéticas eram enviadas à mente do paciente, proporcionando uma neuroplastia cerebral. Assim, suas conexões neurais eram reestruturadas, organizando seu pensamento e funções cerebrais, de maneira que sua ordem mental era restabelecida e seus transtornos psíquicos eliminados.
Muitas pessoas, tanto nas metrópoles quanto nas cidades ecológicas, tinham a capacidade de curarem-se apenas usando sua alta capacidade de meditação para manipular as moléculas que constituem todas as coisas, principalmente seus corpos. Este se tornou um fenômeno explicado pela ciência em geral e pela Física, que pôde medir a interferência quântica das ondas eletromagnéticas cerebrais no ambiente externo. Além de poderem alterar a constituição das coisas, conseguiam também manipular as possibilidades quânticas das realidades de suas vidas escolhendo os eventos e probabilidades favoráveis que queriam que se concretizassem em sua realidade dimensional.
Costumeiramente, tentavam curar outros doentes, mas, na maioria das vezes, não conseguiam, devido aos padrões de emissão eletromagnética dos doentes ser estático e inalterado. Este bloqueio repelia as partículas eletromagnéticas que realizariam a cura, uma espécie de choque.
A capacidade cerebral de manipulação quântica molecular desses seres humanos especiais era tão grande que, quando se cortavam ou quebravam um osso, a regeneração acontecia quase que instantaneamente, bastando apenas que elas olhassem para a parte do corpo danificada e as enxergasse perfeita, sem o dano. Em poucos segundos o corpo se tornava intacto novamente. Havia poucos com esse poder, e aqueles que o possuíam usavam obrigatoriamente um chip de contenção em seus cérebros.
Nebulosa Marylin
Nebulosa Marylin sentiu mais uma vez aquela dor aguda no estômago. Com uma cara amarga, ela entrou na cápsula médica popular de injeção nanorrobótica, mas sem nenhuma ansiedade, pois já tinha certeza sobre qual seria o diagnóstico.
— Olá, senhorita Nebulosa Marylin. Diagnóstico em cinco segundos... Atenção para o diagnóstico... Câncer no estômago recidivo... Pressione seu polegar no canto esquerdo do painel holográfico para ativar a dose de injeção nanorrobótica estomacal. Obrigada... Após algumas horas seu câncer estará eliminado – disse a voz gravada no sistema.
— Muito obrigada, máquina! Já é a quarta vez que estou aqui com a mesma doença. Sim, os nanorrobôs destroem o meu câncer em poucas horas, mas depois de alguns meses ou anos a doença sempre volta! – Nebulosa disse, decepcionada com a máquina.
Nebulosa havia concluído há pouco tempo um curso profissionalizante de Supervisora de Androides Domésticos. Constantemente os ricos das cidades ecológicas contratavam pessoas assim para supervisionarem seus androides programados para serviços gerais.
Naquele século, a riqueza de um indivíduo não era medida pela quantidade de dinheiro que se tinha, mas sim pela quantidade de bens naturais que possuía. No caso de Nebulosa, ela era da classe média porque morava no apartamento de sua mãe onde havia um vaso de plantas e uma horta de tomates na sala específica de cultivo natural.
Existiam pessoas bilionárias por serem donas de um jardim de flores coloridas ou de um cachorro. Animais assim apenas os ricos das cidades ecológicas possuíam, principalmente pelo fato da maioria desses seres vivos vegetais e animais serem gerados somente nos laboratórios de reprodução e clonagem.
Nas megalópoles as pessoas só conheciam animais e plantas artificiais, sintéticos, robóticos ou por imagens holográficas.
— Nebulosa querida, e então, como foi na cápsula médica? – perguntou Persis.
Nebulosa entrou casmurra em casa, sentou-se na poltrona e respondeu:
— Nenhuma novidade, mãe. Câncer no estômago pela quarta vez! Eu não aguento mais aquelas injeções nanorrobóticas que não me curam definitivamente. Se ao menos eu tivesse condições de consultar um médico androide em uma cidade ecológica, seria tudo diferente! – ela reclamou, cruzando os braços.
— Não diga isso, Nebulosa! Não reclame assim! Lembre-se que no passado as coisas eram mais complicadas, os tratamentos eram feitos com remédios alopáticos, enchiam o corpo das pessoas com produtos químicos pesados e a maioria delas morria com o corpo debilitado por causa desses medicamentos. Hoje ninguém morre de câncer.
— Nem me fale sobre o passado! Nem sei o que é pior.
— O tratamento do câncer era pré-histórico, muito debilitante! Bombardeavam o corpo das pessoas com radioatividade na tentativa de destruir as células cancerosas, mas muitos morriam, não por causa da doença, e sim mais porque seus corpos não suportavam tanta química inútil!
— Não sei por que a senhora acha que falar da precariedade da medicina antiga vai me consolar.
— Você precisa visitar mais as cabines do tempo e ver as pessoas morrendo e chorando em filas de hospitais antigos. Hoje milhares de microrrobôs, do tamanho das nossas células, entram no nosso corpo e destroem os microrganismos em poucas horas ou minutos. Eles reconstroem nossos ossos em instantes, as cápsulas psiquiátricas curam a nossa mente em alguns segundos. Do que está reclamando? – Persis replicou.
— Mãe, as injeções nanorrobóticas não resolvem meu problema, o câncer sempre volta.
— Pare de falar assim. Amanhã volte à cápsula e veja se a doença foi completamente destruída. Pelo menos nem você nem ninguém morre mais de câncer como morriam nossos ancestrais.
— É, pode ser que você tenha razão, pelo menos isso. Não morremos mais de câncer, mas talvez de tristeza. As cápsulas psiquiátricas não nos impedem de sentir tristeza.
— Minha filha, tente ser feliz do jeito que podemos. Depois de tudo o que já aconteceu nesse mundo, é um milagre ainda estarmos aqui. Tenha um bom dia de sono, Nebulosa. Já vai amanhecer. Vou aumentar a temperatura do nosso sistema de refrigeração interna. Ouvi que hoje os termômetros marcarão quase sessenta graus Celsius, com sensação de setenta.
— Sobrevivemos pra isso, não é mesmo, mãe? Pra suportar o calor extremo e o frio extremo. Eu vou pro meu quarto. Boa noite.
***
Nas clínicas das cidades ecológicas, os médicos especialistas eram androides muito bem treinados e programados. Todo conhecimento científico ficava armazenado em seus cérebros artificiais positrônicos, o que lhes dava vantagem sobre os seres humanos comuns. Além disso, durante a consulta, com seus olhos mecânicos eles examinavam a parte interna do corpo do paciente, diagnosticando a doença em poucos segundos.
Os médicos androides tinham a perfeita forma humana masculina, além de uma capacidade maior de identificar as causas das mais variadas doenças. Apontavam curas específicas com muito mais precisão que as cápsulas médicas e ainda indicavam injeções nanorrobóticas, mais caras e eficazes, feitas de modo manipulado em laboratório, especialmente para cada paciente.
Cada grupo de médicos androides era monitorado por uma médica humana através de microshipcâmeras instaladas nas salas de consulta.
Nebulosa voltou à cápsula médica onde recebeu a feliz notícia que seu câncer havia sido completamente destruído.
— Que bom. Espero que não volte nunca mais, eu não suporto essa doença nojenta! – ela praguejou.
As cápsulas médicas de partos realizavam inclusive as cesarianas, e quando a criança nascia morta, era ali mesmo lançada no tubo crematório onde as cinzas eram utilizadas para fabricar vidro, cristais e brilhantes. Os lucros dessas cinzas eram convertidos em créditos monetários para a mãe do feto.
Os cemitérios já não mais existiam, as cabines crematórias eram o local onde os corpos eram imediatamente lançados e incinerados após a morte do indivíduo. Posteriormente era feita uma cerimônia in memoriam na casa da família, isso quando decidiam fazê-lo, pois morrer em 2500 d.C. era algo considerado uma bênção e um alívio, principalmente entre os mais pobres.
***
Nebulosa Marylin foi convidada para uma festa naquele mesmo prédio. Era de uma amiga sua do curso de supervisão, que se chamava Ceres Áries. Era de classe média alta, seu pai possuía duas hortas de legumes e uma árvore de tamanho médio na sala de cultivo natural. Tinha seis esposas, doze filhas e dois filhos.
Todos pulavam ao som das músicas que simulavam explosões cósmicas, ambientes holográficos davam a sensação de estarem ao ar livre durante o dia. Nebulosa se encantara por um rapaz muito lindo que a olhara durante toda a festa. Ela nunca tivera um namorado, afinal, não havia homens suficientes para isso, mas a ocasião a deixara animada porque havia ali convidados de uma cidade ecológica, ou seja, jovens ricos, rapazes gerados sob encomenda de suas mães nos vitros geradores, local onde cresciam por quatro meses e meio, a metade do tempo de uma gestação natural.
O rapaz demonstrou coragem e foi até Nebulosa para conversar. Eles trocaram ideias um pouco ilógicas, mas o importante era que, pela primeira vez, ela teria um amigo. Mas sua alegria durou muito pouco. Infelizmente, no fim da festa, ela soube de algo decepcionante.
— Conversamos tanto neste dia de festa que eu me esqueci de perguntar seu nome. O meu é Nebulosa Marylin, e o seu? – ela questionou-o, sorrindo.
— Eu não tenho um nome, eu tenho um número, mas meu dono me chama de Ciclopis!
— O quê? Você é apenas um androide? – ela exclamou pasmada.
Ciclopis era apenas um boneco androide que estava ali na festa acompanhando o seu dono, um jovem rico da cidade ecológica e realmente humano.
— Ciclopis, vamos pra casa. Vai amanhecer o dia, é hora de dormir e desligar você – seu dono ordenou.
— Ei, me diga, qual é o Fator Silva do seu boneco androide? – Nebulosa perguntou decepcionada ao dono do robô.
— Oh, me desculpe, moça. Este meu androide seduz todas as mulheres bonitas. Ele é terrível! O pior é que elas nem desconfiam que ele é só um robô. Quando eu o comprei ele não era assim, mas de uns tempos pra cá ele desenvolveu um Fator Silva de 70% de humanidade. É quase um de nós! – ele explicou.
— Deveria mantê-lo trancado! Onde já se viu enganar uma moça honesta como eu? – reprovou a atitude do androide.
O Fator Silva era um padrão de medida de humanidade criado pelo engenheiro mecânico e cientista brasileiro Carlos Ferreira da Silva, ainda no século 21. Era um padrão universal que determinava o nível de humanidade adquirido por um ser androide (ou qualquer outro ser artificial). Procurava medir o quanto um ser artificial se aproximava do ser humano, tanto nas características físicas quanto nas características psicológicas.
Essa medida também podia ser aplicada em seres humanos, pois nem mesmo os seres humanos são cem por cento humanos, já que o baixo intelecto, doenças e deficiências físicas e psíquicas desqualificam o indivíduo, reduzem a percentagem do padrão humano perfeito.
Entretanto, esse padrão de medida só foi reconhecido pela academia científica europeia no começo do século 22. Em termos técnicos pode-se conceituar que o Fator Silva é o índice que mede o nível humano de um ser, dispositivo, androide ou assemelhado. Levam-se em consideração os padrões humanos conhecidos e entendidos como perfeitos, definindo o fator 1,0000. Da mesma maneira, a ausência total das características padronizadas define o fator 0,0000. São quatro os coeficientes avaliados para formar o total do Fator Silva: o coeficiente físico, que avalia as capacidades como visão, audição, olfato, paladar, sensibilidade à massa, pressão e peso, tato, força, noção de tempo e espaço, resistência à choque físico, água, fogo, pressão, descarga elétrica, expectativa de vida útil, reflexos, capacidade de atividades físicas, capacidade de reprodução, massa corpórea, altura, checagem de anatomia e consumo de energia; o coeficiente sentimental, que avalia a presença de emoções como raiva, calma, amor, ódio, inveja, desapego, soberba, humildade, gula, temperança, desonestidade, honestidade, medo, coragem, mentira, verdade, tristeza, alegria, luxúria, moralidade, avareza, generosidade, maldade, bondade, imprudência, prudência, desrespeito, respeito, desasseio, higiene, vaidade, simplicidade, roubar, merecer, curiosidade, naturalidade, violência, harmonia, preguiça, disposição; o coeficiente intelectual, que avalia a capacidade de raciocínio, tais como: noções de matemática e física, criatividade e memorização, conhecimento armazenado, memória recente, expressão, imaginação, criação, diálogo humano, expressão corporal e facial, identificação de sons, noções de espaço e lógica (área, volume e comprimento), capacidades dedutiva, indutiva e cognitiva; e, por fim, o coeficiente espiritual, que avalia as virtudes como fé, esperança, alma, solidariedade, renúncia, futuro, entusiasmo, conservação, vida, liberdade, amor, sonhar.
Assim, no final dos cálculos, pode-se estabelecer o quanto uma inteligência artificial se assemelha à inteligência humana em todos os aspectos.
***
Nebulosa chegou a casa no início do dia, decepcionada e cansada daquela festa fatídica, onde pôde sentir mais uma vez a desilusão de nunca ter sido amada por um homem de carne e ossos. Estava pronta para ir ao seu quarto dormir. Notou sua mãe cabisbaixa, aproximou-se e questionou:
— Pelo que percebo, não fui só eu que tive uma noite ruim. O que houve, mãe?
— Nebulosa, sua irmã Adrasteia acaba de sair da cápsula de partos...
— E a criança nasceu morta... Era um menino – Nebulosa adivinhou o que havia acontecido a uma de suas irmãs por parte de pai.
— Sim, era um menino natimorto. Logo depois que o corpo da criança foi inserido no tubo crematório, Adastreia recebeu o pagamento de mil esmeraldas de crédito. Mas ela depositou o dinheiro no seu sistema monetário.
— E por que ela não quis o dinheiro?
— Disse que não se sentia nem um pouco feliz em receber um pagamento pelas cinzas do seu filho morto. Deve ser algo muito triste isso. Eu só tive filhas, então não sei como é essa dor – Persis declarou.
— Também me sinto triste, mas por outro motivo.
— O que houve?
— Pensei ter conhecido um lindo rapaz na festa. Ele conversou muito comigo, parecia interessado. Mas era só um boneco androide que estava acompanhando um riquinho de uma cidade ecológica que não demonstrou nenhum interesse por mim – Nebulosa explicou, respirando fundo em sinal de desânimo.
— E qual era o Fator Silva desse androide?
— Você nem vai acreditar! O fator inicial de fabricação era de 50 %, mas parece que depois de um tempo ele alcançou um Fator Silva de 80% de humanidade. É quase um de nós!
— Esses seres artificiais estão ficando cada vez mais perigosos e cada dia mais parecidos conosco, seres biológicos reais, verdadeiros! E ainda existem aqueles que lutam para que seres androides com Fator Silva a partir de 80% sejam considerados seres vivos e humanos, com os mesmos direitos que nós! Que absurdo! – Persis disse, convicta de seu ponto de vista.
— Mas, mãe, pense bem. Considerá-los seres humanos seria bom pra nossa sociedade, resolveria o problema das mulheres sem maridos. Os androides masculinos podem desempenhar esse papel, que infelizmente os poucos homens biológicos não estão conseguindo aqui na Terra – Nebulosa defendeu a ideia.
— Ora essa, Nebulosa, você não sabe o que está dizendo. Perceba toda a confusão que os androides masculinos e bonecos acompanhantes já causam em nossa sociedade! Hoje mesmo você foi desiludida por um deles. Agora quer que a lei declare uma mulher e um robô humanoide casados?
— E por que não? Seria a possibilidade de realizar um sonho para muitas mulheres.
— Humanos são humanos, robôs são robôs e não importa a aparência que tenham, não importa quão inteligentes e independentes eles sejam. Minha filha, como pode defender algo que acabou de te decepcionar?
— Estou sendo realista. Você mesma, mãe, tem que dividir seu marido com várias mulheres. Você só consegue vê-lo uma vez por mês, ou uma vez no semestre. Sente-se feliz assim? Sem uma companhia constante?
— Filha, você irradia tristeza em seus olhos. Como pode um robô que foi programado com fator Silva de 50%, para ser um simples boneco acompanhante e obedecer às ordens do seu dono, alcançar 80% de Fator Silva?
— A programação neurocerebral do androide evolui de modo independente. Eles dizem até ter sentimentos como nós, seres biológicos, temos.
— Será que ninguém percebe? A tecnologia está fugindo do controle humano. Ainda acho que isso terá consequências gravíssimas! – Persis contrariou o pensamento de Nebulosa, com tom de voz exaltado.
— Mãe, eu não estou falando de androides domésticos, muito menos de androides modelos que desfilam figurinos nas vitrines passarelas das lojas! Estou falando de androides projetados com um fator acima de 80%, ou seja, com o mesmo fator de nós, humanos. Muitas mulheres abandonadas poderiam ser felizes se a lei ajudasse! – finalizou a questão e foi para o seu quarto.
Cidade Ecológica
Devido à extinção da maioria das espécies animais, o consumo de carne, além de inviável, tornou-se algo ofensivo e proibido. Os animais que existiam eram gerados exclusivamente em laboratório sob encomenda dos ricos que desejavam um animal de estimação em casa. Os poucos insetos, ou qualquer tipo de animal que por ventura fosse encontrado, não poderiam ser mortos.
Eram produzidos nos laboratórios das cidades ecológicas apenas e exclusivamente pedaços de carne bovina, píscea e galinácea, utilizando-se células específicas desses animais. Eram consumidos por ricos moradores, poucas vezes por ano.
Durante aquela noite de lua cheia, Nebulosa Marylin voltava de uma cápsula médica de diagnósticos acompanhada de sua irmã Águia Caronte. Naquele tempo, ter o nome de um animal era algo muito honroso, um tributo aos seres vivos da natureza extintos pela maldade humana. Somente os mais ricos das cidades ecológicas tinham o privilégio de ter um animal doméstico gerado nas máquinas de gestação dos laboratórios de reprodução. As pessoas tinham nomes como Águia, Leão, Vaca, Porco, Galinha, Tucano-Cachorro, etc.
Tudo parecia muito tranquilo. A temperatura estava suportável, 45 graus Celsius com sensação térmica de 50 graus, as roupas térmicas e os respiradores nasais ajudavam a suportar o desconforto causado pelo clima abafado e seco. De repente, Nebulosa avistou alguém suspeito no canto de um beco da megalópole São Paulo.
— Águia Caronte, vi algo estranho naquele beco. Olhe, tem um homem ali, e está tentando se esconder de nós! – Nebulosa avisou.
— Um homem? Que incrível! Faz dias que não vejo um homem de perto.
— Sim, vamos nos aproximar e ver o que é... Isso não é comum! Por que um homem se esconderia em um beco escuro?
— Vamos ver logo o que é!
Foram até o final do beco, onde o sujeito se escondia. Nebulosa chamou por ele, que permanecia de costas.
— Hei! Você! – Águia Caronte interpelou-o.
O sujeito virou-se assustado e então elas vislumbraram uma cena horrorosa.
— Não pode ser! Você está comendo um pedaço de animal! A perna de uma galinha! É um traficante de carne! – Nebulosa exclamou nervosa, quase gritando.
— Que coisa horrível! – Águia Caronte lastimou, quase sem palavras.
— Não! Eu não sou um traficante de carne!
— Ah, não?
— Sou apenas um consumidor! Por favor, não chamem a polícia! Juntei dinheiro durante três anos pra comprar esse pedaço de frango! É a perna de um galo! Uma vez eu visitei um amigo muito rico na cidade ecológica e experimentei um pedaço de carne de frango produzida em laboratório. Eu gostei, mas haviam me dito que a natural, vinda direto do animal, era muito mais saborosa. Eu precisava sentir o gosto disso! – o sujeito se justificou, quase chorando.
— Onde você comprou esse pedaço de carne animal? Diga logo e não minta – Nebulosa exigiu resposta.
O homem tremia comendo o pedaço de frango.
— Onde é o cativeiro clandestino? Traficantes pecuaristas são os piores bandidos da Terra. Encomendam animais de laboratórios sem licença e depois os criam em cativeiro pra traficar a carne! – Águia Caronte manifestou sua indignação.
— Você enlouqueceu? Por acaso não sabe que é proibido matar animais pra consumo? Há séculos atrás os piores bandidos eram os traficantes de drogas. Depois que as drogas acabaram, vieram os traficantes de carne. Se alguém mais visse você fazendo isso, poderia ser espancado em público pelos revoltados que querem consumir isso e não podem, simplesmente por não poderem pagar fortunas aos laboratórios de produção alimentar. – Águia Caronte reforçava a ideia.
— Você é um homem. Não deveria estar aqui nesse beco cometendo esse crime! Pare! Pare de comprar isso! Pare de comer isso! Os traficantes são tão incompetentes que nem mesmo são capazes de produzir ou comprar animais em grande escala pra atender a demanda de consumidores clandestinos ou em potencial. Perceba o quanto é escassa a carne mesmo no tráfico – Nebulosa tentou conscientizá-lo.
O sujeito engoliu rápido o pedaço de carne enquanto elas falavam. Em seguida saiu correndo.
Águia Caronte não se conteve e começou a chorar, dizendo:
— Eu não consigo acreditar que séculos atrás isso acontecia naturalmente. Foi um biocídio sem piedade contra seres vivos inocentes! Já vi pessoas saírem chorando da cabine do tempo por verem gravações dos frigoríficos e açougues! Sabe, eu nunca quero entrar nessa cabine horrorosa, que mostra coisas piores ainda! Quase não acredito que naquela época ser chamado pelo nome de um animal era algo ofensivo. Principalmente cachorro, galinha, vaca, porco... Eu não entendo isso. Esses animais eram seres tão amáveis, maravilhosos e bondosos. É uma honra termos seus nomes hoje.
***
Nebulosa Marylin enfim conseguiu um emprego como supervisora de androides domésticos na Cidade ecológica Nova Florianópolis, a capital da América, localizada no interior do antigo estado de Santa Catarina.
Ela estava empolgada para conhecer uma cidade com ambientes naturais, com árvores, fontes com água limpa, jardins e vegetais em geral. Mas de tudo, sua curiosidade maior era de ver um animal doméstico de verdade bem de perto. Seria uma realização. Dione Titã, sua patroa, a contratou pelo bom currículo e pela simpatia.
A chegada de Nebulosa em Nova Florianópolis foi emocionante. Dione acompanhou-a desde a megalópole São Paulo até a cidade ecológica, ambas dentro do carro espacial da patroa, um carro capaz de voar até a órbita da Terra.
Os olhos da nova empregada brilharam ao ver de perto, pela primeira vez, árvores naturais.
Logo que entraram, os androides domésticos foram apresentados à sua nova supervisora. Eram eles: Órion, o motorista; Olho de Gato, o jardineiro das paisagens holográficas; Tarântula, a faxineira; Jápeto, a babá; e Helix, a cozinheira.
Assim como tudo naquela época, todos os androides também funcionavam a base de energia solar, eles se autorrecarregavam durante o dia em suas cabines com tubos que recebiam os escaldantes raios solares e os conduziam diretamente a seus corpos artificiais e, assim, ficavam abastecidos para trabalharem durante toda a noite.
Nebulosa cumprimentou cada um com um aperto de mão. Eles tinham um Fator Silva de 50 a 60%. Eram muito eficientes!
— Nebulosa Marylin, seja bem-vinda! Vou lhe mostrar toda a casa, você vai adorar! – Dione disse sorridente.
Todos os cômodos da casa foram apresentados, mas havia um lugar especial, a Sala da Rosa Vermelha, um local todo adaptado, com tubo de entrada de luz, ar-condicionado com temperatura ambiente e vidros com fertilizantes especiais. Aquela rosa havia custado muito caro, cerca de 500 mil esmeraldas de créditos, quase o preço de um carro voador sofisticado, por isso a necessidade de uma sala adaptada especialmente para a sobrevivência daquela flor.
— Nebulosa, esta é a Sala da Rosa Vermelha. Fique à vontade para admirá-la. Seu trabalho só começa amanhã. Ah! Acabamos de comprar uma cabine do tempo mais sofisticada. Quando quiser, sempre depois do seu expediente, pode usá-la. Nela se encontram armazenadas imagens, músicas, vídeos da antiga internet, programas antigos de entretenimento e transmissões de televisão e áudios dos últimos 555 anos, de todos os países do mundo. É só escolher o que quer ver. Tudo é holográfico em quatro dimensões. Você tem a real sensação de estar no local das gravações! Boa noite! – a patroa finalizou, saindo da sala.
Nem mesmo uma vida inteira seria suficiente para ver e ouvir tudo o que estava armazenado na cabine do tempo. Todas as transmissões de TV, internet e rádio estavam ali! Toda a história da humanidade!
Conforme Nebulosa se aproximava da rosa vermelha, seus olhos lacrimejavam de emoção por poder chegar perto daquela flor natural. Ela chorou de vez, as lágrimas escorriam como as águas correntes de um grande rio, pois nunca antes tinha visto uma flor tão de perto.
— Meu Deus! Nesses últimos vinte anos de vida eu sempre sonhei em tocar em uma rosa vermelha! E agora isso está acontecendo! É inacreditável! Essa sala inteira, toda equipada apenas pra manter a vida dessa rosa. As pessoas pobres nas metrópoles não têm uma sala assim, e essa rosa tem. Ela é linda e perfumada, perfume natural! – disse consigo mesma enquanto tocava e cheirava a flor.
***
Os primeiros dias de trabalho foram tranquilos para Nebulosa. Os androides domésticos eram simpáticos e obedientes. Com certeza ela não teria problemas.
— Como foi a noite hoje, Nebulosa?
— Foi uma noite tranquila, dona Dione. Os androides são quase perfeitos! Sabe, foi até engraçado, nesses dias eu esqueci que eles são apenas robôs e pensei que fossem seres humanos de verdade. A Helix me disse que estava triste e eu quase acreditei. Então refleti comigo mesma: sorte é a dela que não sente tristeza de verdade. E me vem a velha dúvida: não seria melhor ser um robô do que um ser um humano que sofre? – Nebulosa questionou séria.
— Essa é uma boa questão para se refletir. De certa maneira, sou contra a indústria produzir androides com Fator Silva tão alto, ainda mais robôs domésticos. Mudando um pouco de assunto, mas não menos curioso, falando da sua emoção por ter conhecido uma flor natural de perto, até duzentos anos atrás os homens ricos presenteavam as mulheres com joias. Hoje nos presenteiam com uma rosa, que custa muito mais caro do que joias de metal e pedras preciosas antigas. E o hilário é que há mais de 400 anos eles presenteavam as mulheres também dando-lhes rosas mortas! Os chamados “buquês de flores” duravam muito pouco e as rosas murchavam. Quem diria? Hoje temos até uma sala exclusiva para abrigar e manter uma flor viva! Hoje uma flor em um simples vaso custa mais caro do que um carro espacial! – Dione enfatizou.
— Eu não sabia deste antigo fato sobre os homens e as flores. Que loucura darem de presente flores mortas! Eu realmente chorei muito de emoção quando toquei a sua rosa.
— O comportamento dos nossos antepassados é algo difícil de compreender.
— Sim, e eu chorei muito mesmo, afinal, foi a primeira vez que vi uma rosa ao vivo. E garanto que isso é algo maravilhoso! As flores de holograma quase não têm beleza. Digo o mesmo sobre os animais robôs, que são até engraçadinhos e divertidos, mas claramente vemos que não são reais.
— É uma pena que os animais domésticos sejam tão caros e raros.
— Quando eu era criança e estava passando por um beco, na megalópole São Paulo, vi uma barata. Fiquei encantada com aquele inseto tão raro. E essa foi a única vez que vi um animal de verdade, tão de perto. Até corri e tentei pegá-la, mas ela foi mais rápida do que eu.
— Deve ter sido emocionante ver uma barata de perto, e viva.
— Sim, foi. Contei pra várias pessoas, mas ninguém acreditou em mim. Nas megalópoles praticamente não existe vida animal nem vegetal, nada pode sobreviver naquele ambiente ora extremamente frio, ora extremamente quente. Está cada vez mais difícil ficarmos no ambiente externo por lá, mesmo durante a noite, com as roupas térmicas e os respiradores.
— Entendo.
— A nossa sorte é que os governos já estão finalizando a construções dos túneis térmicos de pedestres. Isso pra quem não quiser andar de carro ou transporte público. Ouvi dizer que logo iniciarão túneis para os carros e outros transportes. As temperaturas extremas já estão danificando os automóveis – Nebulosa relatou.
— Aqui na cidade ecológica tudo é melhor. Temos a cápsula maior que protege nossos jardins durante o dia. Já esteve nos jardins durante a noite? Às vezes bilionários passam por lá exibindo seus animais domésticos. Pensei que já tivesse visto algum. Geralmente eles têm cachorros, mas eu já vi um tucano. Meu marido me prometeu um animal ainda para este ano. Em regra, os laboratórios de reprodução animal estão nas cidades espaciais, o que torna o preço mais caro.
— Dona Dione, me desculpe a indiscrição, mas quantas esposas o seu marido tem? – Nebulosa perguntou, curiosa e com coragem.
— Indiscrição por quê? Os homens milionários não têm menos que dez esposas. Meu marido tem vinte esposas.
— Vinte?
— Sim. Quase todas moram nas cidades espaciais ao redor da órbita do planeta, bem longe daqui. Ele também não mora aqui na Terra. Eu ainda não lhe disse, mas meu marido é administrador de uma estação de extração de água lunar. Eu o vejo poucas vezes por ano. Na maior parte dos meses, quando ele não está na Lua, ele está nas cidades espaciais.
— E você não se sente sozinha?
— Saiba que não! Acho que é porque os poucos momentos em que estamos juntos são bem aproveitados, são dias de qualidade. Mas sempre nos vemos e conversamos pelo microdispositivo holográfico em quatro dimensões. Parece que ele está diante de mim de verdade. Percebo que é só a imagem dele apenas quando me emociono e tento abraçá-lo, aí não sinto seu corpo. Eu sempre acabo atravessando a imagem.
— Ainda não usei esse microdispositivo, mas não tenho ninguém que eu goste tão longe de mim para precisar usá-lo. Mudando o assunto, tive câncer de estômago quatro vezes. As injeções nanorrobóticas não me curam totalmente. Temo precisar consultar um médico androide! – contou-lhe, insatisfeita.
— Não se preocupe com isso, Nebulosa! Aqui em Nova Florianópolis temos excelentes médicos androides em nossa clínica! Usufruir dela é um direito seu como nossa empregada, e só terá seu salário descontado caso precise de uma injeção nanorrobótica mais específica. – Dione apresentou a solução.
***
O doutor oncologista androide 4.321 era o melhor entre todas as cidades ecológicas da região de Nova Florianópolis. Seu Fator Silva era de 60%, com potencial para atingir 90%, conforme adquirisse experiências humanas, o que não era permitido para médicos androides. Eles deveriam estar exclusivamente recluídos no mundo da medicina, devendo apenas a isso se dedicar. Eram programados também para tratar o paciente com o máximo de humanidade possível, o que incluía respeito e consideração.
Mas o doutor 4.321 possuía algo especial: diferente dos outros médicos, ele tinha uma certa inclinação para sentir-se de fato um ser vivo, e sentia vontade de interagir fora da clínica. Entretanto mantinha essa vontade em segredo, porque sabia que se seus superiores descobrissem, certamente apagariam sua memória afetiva e o reprogramariam.
A regra máxima dizia que, no caso extremo em que um médico androide decidisse viver livremente na sociedade, antes ele deveria ter seus conhecimentos médicos deletados da memória, e então, só depois disso, poderia ser livre para conviver em sociedade. Mas o doutor 4.321 não queria perder sua memória médica. Ele gostaria de poder viver fora daquela clínica e ao mesmo tempo ajudar as pessoas. Tranquilamente ele se passava por humano, era alto, tinha os cabelos pretos, pele morena clara, olhos castanhos escuros.
Na casa de Dione surgiu uma novidade. A noite chegou tranquila naquela ocasião especial, mas houve um agito e todos correram para a sala. Era Marte de Pegasus, marido de Dione, trazendo consigo o novo e tão esperado presente para uma de suas famílias: um cachorro doméstico!
— Família querida, eu o trouxe diretamente do melhor laboratório de reprodução animal da cidade espacial número 12! Ele se chama Meteoros Aurora! – explicou o chefe da família.
Os olhos de suas filhas brilharam de emoção ao verem o cachorro de perto. Ceres Elly era a mais velha, tinha 16 anos de idade, e Galactica, a menor, tinha 8 anos. Dione, não menos emocionada, exclamou:
— Meu amor, finalmente nosso animal doméstico ficou pronto! Ele é lindo!
— Meu Deus! É um cachorro de verdade! – Nebulosa sorriu, vislumbrada.
— Sim, é um cachorro de carne e ossos! Vocês, moradores das megalópoles, sempre espantados quando veem um animal de verdade. Digo isso porque a empregada da minha décima esposa desmaiou quando viu uma borboleta real pela primeira vez. E a borboleta nem era nossa, era de uma exposição do museu biológico na cidade espacial 14.
— Senhor Marte, é que nas megalópoles não existem plantas nem animais! Não há pássaros voando livremente no céu. Aliás, mal podemos olhar para o céu. Eu mesma só conhecia a natureza por fotos e hologramas. Pude ver algo na cabine do tempo, e parece que nos séculos passados havia cachorros aos montes abandonados nas ruas. Os pobres animais eram cruelmente maltratados e assassinados. Que sociedade estranha foi aquela! – disse, relembrando as barbáries dos séculos passados enquanto afagava emocionada os pelos do cachorro.
— Sim, a mais estranha que já houve! Eles até se ofendiam quando eram chamados por nomes de animais. Como podiam ser tão maus assim? – Marte respondeu, enquanto afagava a cabeça do cachorro.
Todos passaram aquela noite brincando com o novo animal doméstico, até mesmo os androides domésticos, que puderam demonstrar um pouco mais de ternura diante daquele ser da natureza.
***
Nebulosa Marylin começou a frequentar a cabine do tempo. Procurava entretenimento, por isso, naquela sua noite de folga, entrou na cabine e seguiu em busca de músicas eletrônicas centenárias. Optou pela segunda década do século 21. A programação lhe apresentou alternativas, e então escolheu as seguintes sugestões: “Ouvir no show de Calvin Harris a música We’ll Be Coming Back, com Example”. Em segundos a cabine transportou Nebulosa até aquele show. Ao seu redor a programação holográfica reproduziu todo o ambiente festivo daquele espetáculo e daquela música.
Logo que a música iniciou, a supervisora de androides domésticos não conseguiu ficar parada. Começou a dançar, mexendo todo o seu corpo, dos pés à cabeça, onde se encontrava presa sua peruca longa; seus cabelos artificiais balançavam para todos os lados.
Nebulosa gostou tanto de dançar aquela música que repetia a diversão em quase todas as noites em que tinha folga. Seu trabalho ia muito bem, os androides domésticos não a incomodavam. Certa vez ela até comentou com Dione: “Na verdade, eu só lembro que eles são máquinas no fim do expediente, quando eu digo ‘entrar nas cabines de descanso e desativar’, ou no início da noite, ‘ativar, sair das cabines!’”
Outras duas músicas também emocionavam sua alma na cabine do tempo. Eram elas: “Eva” da centenária banda brasileira chamada Eva, excepcionalmente na voz da cantora Ivete, que inclusive foi clonada por dois séculos seguidos com intuito de proporcionar às pessoas o privilégio de ouvirem-na cantar ao vivo (Nebulosa sempre dizia: “A voz dessa mulher entra profundamente em minha alma e consigo sentir de modo tão real os acontecimentos que essa música descreve”); e por fim "Pursuit of Happiness" [Steve Aoki Remix] - Kid Cudi (feat. MGMT & Ratatat).
No planeta Terra ninguém mais mantinha o costume de ter cabelos na cabeça, devido a uma lei mundial, do final do século 21, que proibiu o uso da água potável e de outros recursos naturais para lavar os cabelos, roupas e outras futilidades. Desde então, homens, mulheres e crianças, a partir dos quatro anos de idade, mantinham suas cabeças raspadas. Tal costume se estendeu ao longo dos séculos seguintes, como lembrança de que os seres humanos jamais cometeriam o erro de esbanjar e degradar recursos hídricos potáveis, já tão escassos.
Tanto os homens quanto as mulheres e crianças usavam perucas de diversas cores e formatos. A preferência das mulheres era por perucas coloridas (rosa, verde, laranja, arco-íris, roxo, marrom, etc.) ao estilo Chanel para saírem e se divertirem; já para uso cotidiano as mulheres usavam perucas de comprimento médio ou longo de cor amarela, castanho escuro, preto, ruivo e castanho claro. Nebulosa costumava usar na cabeça a peruca longa de cor escura, uma tonalidade entre o castanho escuro e preto.
Já os homens geralmente usavam perucas curtas na cor branca, amarela, cinza ou azul. As maquiagens costumavam ser coloridas e variadas. Tanto homens quanto mulheres pintavam em seus rostos imagens de borboletas, pássaros e outros animais, pinturas que eram feitas através de uma máquina de maquiagem nanorrobótica, através da qual a pessoa inseria seu rosto, escolhia a pintura-maquiagem desejada e em poucos segundos seu rosto já estava maquiado. Havia ainda as maquiagens holográficas que podiam ser modificadas em instantes, assim como as estampas holográficas das roupas, que podiam ser trocadas a gosto de cada pessoa.
Em um projeto primitivo, elaborado pelos cientistas do final do século 21, foi congelado o DNA de artistas e intelectuais mais nobres da época. Posteriormente, com novos métodos de clonagem, a partir até mesmo de células humanas já mortas, esses indivíduos foram clonados. Assim, mesmo aqueles que não tiveram o DNA congelado foram reproduzidos e voltaram à vida através de seus clones. Essas clonagens eram mais bem-sucedidas quando se tratava de DNA de mulheres. Foi um milagre a clonagem utilizando o DNA do doutor Musk ter sido bem sucedida.
***
No início daquele dia, na hora do jantar, por volta das seis horas da manhã, Dione convidou Nebulosa para sentar-se à mesa:
— Sente-se conosco, Nebulosa! Hoje é dia de carne bovina! E o melhor de tudo: nenhum animal foi morto para que ela pudesse ser servida em nossos pratos. Tem dois bifes para cada um.
— Não estou acostumada com carne de laboratório. Pra falar a verdade, eu nunca comi carne nenhuma. Fiquei chocada ao ver, há uns dias, um homem comendo um pedaço de carne de galo, escondido num beco da megalópole!
— Está falando sério? – Dione perguntou, assustada.
— Sim, dona Dione! Minha irmã Águia Caronte estava comigo naquela hora e também ficou muito espantada.
— Onde este tal homem conseguiu aquele pedaço de carne?
— Ele disse que passou dois anos economizando dinheiro pra poder comprar aquele pedaço do que chamavam de frango. Era um pedaço da perna do animal. Foi uma cena horrível! Ele disse que havia comprado a carne de um traficante pecuarista. Pessoas assim não têm escrúpulos, compram animais clonados e vendem os pedaços por uma fortuna àqueles que têm vontade de experimentar. Animais são seres tão escassos, não foram feitos pra serem mortos nem comidos por nós, humanos.
— Nas cidades ecológicas consumimos apenas duas ou três vezes por ano essa carne, que é produzida em laboratório a partir de células animais coletadas de mamíferos gerados no vitro gestacional. Custa muito caro, afinal reproduzem somente as células de determinada parte do animal.
— Tão caro que nós nas megalópoles não podemos consumir.
— São muitas encomendas todo o ano aqui na cidade ecológica. Concordamos plenamente que é algo inaceitável o que esses traficantes pecuaristas fazem. Eles desobedecem a uma lei que foi feita pelo bem da natureza e da nossa sociedade. Sabe, eu não consigo me imaginar servindo nesta mesa um pedaço de animal morto numa bandeja. Sinto até arrepios só de pensar nessa hipótese absurda – declarou Dione, sentindo calafrio.
Nebulosa sentou-se à mesa e continuou a conversa:
— Estive vendo na cabine do tempo coisas ainda mais assustadoras! Uma verdadeira carnificina! A civilização passada matava bois e outros animais para vender a carne em escala industrial, e o mais desumano: penduravam as carnes dos pobres animais em ganchos de ferro pra vender como se fossem aparelhos eletrônicos.
— Eu já vi também essas coisas na cabine do tempo. Imaginem só, havia animais em quantidade suficiente para serem consumidos! Mas o que eu acho mais estranho de tudo era o tal churrasco. Era algo muito comum, praticado até como tradição aqui no sul do Brasil. As pessoas se reuniam ao redor de uma fogueira onde a carne era assada e depois servida. Pedaços inteiros do corpo do animal, principalmente a carne bovina, como se encontrássemos um boi em qualquer esquina. Bem, naquela época até havia um boi em cada esquina, mas ainda assim é algo cruel. – Dione se arrepiou mais uma vez ao lembrar os costumes das civilizações passadas.
— Hoje os bois são muito raros, só existem em poucos museus biológicos das cidades espaciais. Por vezes, eles trazem algum para ser exposto nos museus biológicos das cidades ecológicas aqui na Terra. Matar animais foi uma atitude praticada pelos primitivos da Terra por mais de 6000 anos. Ou seja, uma prática irracional para uma civilização de 300 anos atrás, que se dizia tão evoluída no início da grande Era tecnológica! – Nebulosa concordou.
— Sim, Nebulosa, é algo inaceitável! Você tem toda a razão – Marte entrou na conversa depois de dar uma garfada na carne. – Mas nas cidades ecológicas temos um sistema racional de consumo, e, pra falar a verdade, eu adoro comer carne de peixes. Aqui em Nova Florianópolis, a capital de toda a América, temos quatro grandes laboratórios que produzem. Comemos pelo menos umas quatro vezes por ano. É uma carne mais barata e mais fácil de reproduzir em laboratório. Nesses dias eu até ouvi um boato, e que isso fique só entre nós: parece que estão vendendo nossa carne de peixe a outras cidades ecológicas, o que é proibido. Cada cidade ecológica tem que produzir seu próprio alimento de origem celular animal.
— Falando nisso, eu também soube de algo. Tenho uma amiga que mora em uma cidade ecológica de São Paulo, e ela me disse que comeu carne de peixe vinda daqui. O mais misterioso é que ela disse que o peixe chegou inteiro. Não era simplesmente a carne de laboratório em pedaço, era o corpo do animal. É uma vergonha que o tráfico de carne animal também esteja acontecendo dentro de nossas cidades sagradas – revelou escandalizada. – Mudando de assunto, e já pedindo desculpas por minha curiosidade, dona Dione, me diga uma coisa: você conhece as outras esposas do seu marido?
Marte sorriu sem nenhum constrangimento.
— Não pessoalmente. A maioria delas vive nas cidades espaciais. Conversamos por transmissores holográficos de imagem. Sei apenas que uma delas era uma pobre mendiga que vivia pedindo esmolas na megalópole São Paulo. Triste vida! São milhares de mulheres solteiras, viúvas ou abandonadas, vivendo na miséria, mendigando pelas ruas. E por mais que milionários piedosos se casem com dezenas delas, o número só aumenta.
— A ciência tenta descobrir por que isso está acontecendo, por que estão nascendo tantas mulheres e pouquíssimos homens, tão poucos que mesmo os bilionários se casando com trinta esposas, a situação social só piora – Marte participou da conversa.
— Sim, todos os dias na megalópole, em cada esquina que eu passava, via um grupo de mulheres mendigas. Eu mesma seria uma delas se não tivesse conseguido o curso profissionalizante de supervisão de androides domésticos. Meu pai faleceu muito cedo, minha conseguiu se casar de novo, e meu padrasto, mesmo já com tantas esposas pra sustentar, deu um jeito de sustentar também a mim e minhas irmãs. Minha mãe o vê poucas vezes por ano. Mas é melhor do que ser sozinha.
— Nebulosa, nos conte: nunca encontrou nenhum homem que se interessasse por você? – Dione perguntou, curiosa.
— Uma vez um bilionário, dono de duas árvores enormes, um jardim e dois animais, parou o carro espacial do meu lado e pediu pra casar comigo. Ele me disse: “Case comigo e meus animais, árvores e jardim serão seus!”. Ele tinha mais idade, mas não era feio. Fiquei até um pouco vislumbrada com o pedido, mas neguei – Nebulosa contou à patroa, comendo um pedaço de carne em seguida.
— Por quê? Seria algo bom pra você!
— Simplesmente porque eu não quero me casar assim sem amar! Eu não quero me casar só pra ter um homem que pague as minhas cotas mensais de suprimento alimentar. Eu trabalho e pago. Sempre sonhei em ser uma mulher independente. Vi muitas amigas minhas aceitarem casamentos com milionários apenas para não ficarem na sarjeta, amontoadas em salões refrigerados nas noites e dias extremante quentes. E esse milionário ainda dizia que eu era muito linda, o que não me convenceu – justificou sua reação negativa ao pedido de casamento.
— Foi loucura sua ter recusado a proposta! E me diz, quantas mulheres ele já tinha? – Marte questionou-a muito curioso.
— Ele já tinha doze mulheres! Mas, pelo carro espacial dele, era mesmo muito rico, deveria ser chefe de alguma coisa em uma das cidades espaciais. Vi um selo no vidro do carro.
— E você teria sido a décima terceira! – Dione exclamou sorrindo.
— Imagine só: duas árvores, um jardim e dois animais para treze esposas! Eu acho pouco. Já vi milionários mais ricos do que ele, com uma árvore para cada esposa. Além do mais, acho desmotivador ter um marido e só vê-lo poucas vezes por ano. Por isso sou até a favor que os robôs androides com Fator Silva acima de 90% sejam considerados oficialmente humanos. Ao menos poderiam se casar com as mulheres que estão sozinhas e serem companheiros únicos até a morte – disse Nebulosa.
— Dezenas de mulheres para cada homem vivo! Os meninos nascem mortos sem apresentar nenhuma anomalia física. Acredito que deve haver um motivo além da nossa compreensão. Talvez uma causa divina! – supôs Dione, respirando fundo em sinal de dúvida e decepção.
Jamila Mafra