Ela trouxe de volta

- Como ela fez isso? - Indaguei surpreso para o tenente Fitsum, um rapaz magro com longos dreadlocks caindo pelas costas do uniforme cinzento.

O oficial deu de ombros.

- Ninguém sabe como... só que ela é boa em consertar coisas.

Estávamos diante do console de astronavegação do cruzador imperial "Nakonza", um veículo maa'tik com pelo menos 300 anos de uso e que passara por vários ciclos de atualização. Os sistemas originais daquele tipo de astronave usavam cristais industriais que não eram mais produzidos há séculos e haviam sido substituídos por equivalentes mais modernos e precisos. Mas Amleset (esse era o nome da garota-prodígio) disse que preferia os circuitos originais.

- Ela falou que são menos sujeitos a interferências - explicou Fitsum de forma didática. - A sensibilidade vem com um preço.

- E os maa'tik não protestaram? - Questionei, mão no queixo.

- Por que fariam isso? - Fitsum me encarou intrigado. - Ela consegue consertar QUALQUER coisa, mesmo que nunca tenha visto essa "qualquer coisa" antes. Se para a "Nakonza" os sistemas adequados são os que Amleset restabeleceu, os maa'tik aceitam a palavra da especialista.

Um outro fator notável sobre Amleset, é que ela era humana, assim como Fitsum, o oficial que tecnicamente estava responsável por ela. Mas Amleset fora resgatada e criada desde os seis anos de idade pelos maa'tik, quando o transporte de colonos que levava a família dela e outras duzentas para Ro'tanyn-IV, fora destruído por uma flotilha nu'thar desgarrada. A maior parte dos adultos morrera no ataque, mas entre os sobreviventes, os maa'tik recuperaram Amleset e Fitsum, então um adolescente. Eles foram levados para um mundo imperial e ali viveram como membros da sociedade local, até que o contato com os demais humanos fora restabelecido, muitos anos depois. Contudo, a maior parte dos resgatados preferiu continuar a viver como cidadãos do império, visto que suas lembranças da sociedade humana eram longínquas.

- Eu gostaria de falar pessoalmente com Amleset. Você é a pessoa mais próxima dela com quem me deixaram ter contato... - comentei cautelosamente.

Fitsum me lançou um olhar de simpatia, mas sua resposta soou perfeitamente oficial.

- Não sei se meus superiores irão autorizar um encontro. Depois que foi descoberto esse... dom... da Amleset, ficaram ainda mais reticentes.

- Estão com medo de que queiramos raptá-la para estudos? - Fiz ar de ofendido. - Ela tem família em Gomera-II!

Fitsum não pareceu impressionar-se.

- As suas leis humanas não se aplicam a cidadãos do império; como eu e Amleset, por exemplo. Sabemos a quem devemos nossa lealdade. Vocês, não foram capazes de proteger nossos pais.

Ele tinha razão, até certo ponto. O encontro com os nu'thar fora fatal, mas completamente fortuito. Se um transporte civil maa'tik estivesse no lugar da nave dos colonos, muito provavelmente seria destruído de igual forma. E eu viera de muito longe para me dar por vencido tão facilmente.

- Concordo que não temos jurisdição ou ingerência sobre você ou Amleset, mas e se ela quiser falar comigo? Iriam impedi-la?

Fitsum ergueu os sobrolhos.

- Por que ela iria querer falar com um humano como você?

Apesar dele não ter os 2,5 m de altura de um maa'tik, antenas douradas ou olhos multifacetados, por um instante me pareceu estar diante de um. Talvez fossem os dreadlocks, usados em substituição das antenas pelos humanos incorporados ao império, ou o uniforme cinzento, os responsáveis por esta momentânea ilusão.

- Porque talvez Amleset possa utilizar o seu dom para ajudar outros humanos - revelei a Fitsum, sabendo que talvez estivesse queimando meu último cartucho.

Finalmente vi uma expressão de curiosidade surgir no rosto dele.

- Você quer dizer... Amleset poderia ajudar a consertar pessoas?

Fiz que sim com a cabeça.

- [12-08-2023]