Para além da Terra
Somos um instante quando comparamos nossas vidas aos inumeráveis séculos da história humana e, esse mesmo instante, se torna mais diminuto e inextricável quando perseguimos o fio da origem da vida na Terra a se perder num abismo cujo fundo jamais conheceremos.
No entanto, se numa escala cósmica a aventura humana equivale a um nada, para nós, seres rastejantes do planeta Terra, essa aventura está longe de terminar. É do futuro que resplandecem miragens inalcançáveis, mas que falam apenas daquilo que é profundamente humano.
— Estão vendo? — apontou Martius. — É o pensamento.
Dois garotos, Ulis, de nove anos, e Lori, de dez, acompanhavam com o olhar atento.
— Mas, vovô, — indagou Lori. — como isso pode pensar sendo tão diferente de nós?
— Ora, Lori! — respondeu o velho Martius. — É uma máquina tal como nós, a diferença é que somos biológicos, enquanto ela foi gerada a partir do autodesenvolvimento de um ecossistema cibernético. Assim como nós herdamos os genes dos nossos antepassados, essa máquina carrega em si os blocos de informação das máquinas que a criaram.
Os dois meninos entreolharam-se admirados. O robozinho era um pouco mais baixo do que eles, e os mecanismos do seu cérebro eletrônico podiam ser observados com o equipamento de Martius, uma espécie de microscópio capaz de observar as ondas mentais do robô.
— Quer dizer que as máquinas também têm uma alma? — questionou Ulis, ao seu avô cientista.
— Isso não. Para as máquinas terem alma seria necessário que elas tivessem criado os humanos e não o contrário.
Nesse momento, Martius foi alertado por um holograma de correspondência de que precisavam dele na sala de configuração computacional do clima.
— Garotos, eu tenho que ir! Deixarei vocês com o robozinho. Aprendam, pois em sua memória há um conhecimento equivalente a mil bibliotecas!
Os meninos, nascidos num orbe longínquo do Universo, pouco sabiam de que existira um dia um planeta chamado Terra. Havia vestígios desse planeta que dera origem às civilizações intergalácticas, mas a tal Terra se extinguira há cerca de quinhentos milhões de anos.
— Ulis, — disse o mais velho. — o vovô disse que no passado as pessoas mais poderosas se elevavam às custas do resto da humanidade.
— Como assim, Lori? — indagou o mais novo.
— Ora, elas acumulavam um tipo de metal que poderia comprar qualquer coisa, alguns acumulavam muito mais do que necessitavam...
— Já sei... Quando alguém tem mais do que necessita, a alguém falta o necessário.
— Sim, agora imagine alguns acumulando muito metal, muitíssimo mesmo: grande parte da população ficava sem metal e sucumbia na miséria.
— Que horrível!!
— Podemos perguntar para a máquina coisas sobre o planeta Terra. — falou Lori.
— Sim. — disse Ulis. — Robô, por que o planeta Terra chegou ao fim e como a humanidade conseguiu criar novas sociedades além da Via Láctea?
Nesse intante, o robozinho emitiu dois bips e começou a falar:
— O planeta Terra sucumbiu ante as consequências desastrosas do capitalismo. A ambição dos grandes capitalistas provocou danos ambientais irreversíveis, o que levou a destruição do planeta. Karl Marx, um dos mais importantes críticos desse sistema, foi uma das bases intelectuais que orientaram a construção da civilização intergaláctica. Os "construtores" como eram chamados os viajantes do espaço temiam que todo projeto humano estivesse fadado ao fracasso... Os computadores foram de grande valia para que os humanos sobrevivessem além da Terra... O Eniac foi o primeiro computador inventado pelo homem, posteriormente as máquinas mais avançadas se uniram à classe operária no estabelecimento do socialismo intergaláctico. Foi a união homem e máquina que possibilitou a continuação da vida humana em condições muito melhores.
O robô continuou falando por mais meia hora sobre a origem da humanidade no planeta Terra e de sua sobrevivência além dele, e os meninos estavam atentos a descoberta desse universo jamais imaginado nos seus jovens cérebros.
Nesse momento, Martius retornou à sala.
— Ora, vejo que estão aprendendo muito!
— Ah, vovô, que pena que o planeta Terra chegou ao fim! — exclamou Ulis.
— Teria sido possível evitar a sua destruição? — indagou Lori.
O velho Martius refletiu por um momento com uma expressão séria.
— Bem... Pensei que ainda eram muito novos para isso... Mas vejo que já estão prontos. Quero lhes mostrar algo. Venham comigo! — disse Martius.
Foram caminhando por algumas dezenas de metros, por um dos corredores da nave espacial — Martius, Lori, Ulis e o robozinho:
— Percebem que estamos caminhando por alguns minutos, mas, na verdade, já nos deslocamos por milhares de quilômetros? — arguiu Martius.
— Sim!! — responderam os meninos.
— Pois bem, isso é graças ao conhecimento científico atual das estruturas do espaço-tempo, que nos permite moldar as configurações iniciais do Universo, é um campo de estudos incrivelmente complexo!
Os dois garotos olharam-se espantados. Aquele conhecimento ia além do que eles poderiam compreender no momento. O robozinho emitiu dois bips e começou a falar:
— Alicia Janvitzi descobriu que as estruturas do espaço-tempo podiam ser reconfiguradas, permitindo viagens interestelares cada vez mais rápidas e longínquas, tanto na dimensão espacial quanto na temporal. Ela disse que subiu sobre ombros de gigantes. Isso ocorreu dez mil anos após o fim da Terra.
— É aqui, — disse Martius, estacando ante uma grande porta de aço. — Vou lhes mostrar o que sobrou da Terra.
Os meninos lhe seguiam curiosos. Quando Martius abriu a porta com sua senha cibernética, Lori e Ulis viram uma sala repleta de caixas enfileiradas.
— O que são essas caixas, vovô? — indagou Ulis.
— Dentro delas estão as memórias daqueles que habitaram a Terra.
— Por quê? — perguntou Lori embasbacado.
— Para que nós, os humanos e cientistas de agora, possamos estudar esse gigantesco esquecimento que representa a progressão da humanidade e, talvez, por meio das memórias de cada um desses humanos que habitaram nosso planeta de origem, lembrar-se daquilo que nós mesmos somos.
Os meninos estavam completamente fascinados.
Nesse instante, o robozinho, que também estava na sala, emitiu dois bips:
— Sistemas de máquinas funcionando perfeitamente, os humanos já podem ser reconfigurados.
E tudo pareceu se apagar para sempre.
"Além de todo o conhecimento atual, há algo de extremamente brilhante na humanidade que insiste em permanecer esquecido, está em cada um de nós, humanos, mas jamais alcançaremos." Johan Stirtis, um cientista terráqueo do século XXXII.