A Guerra da Ucrânia 2

O nome dele apareceu no televisor da clínica. A voz robótica e feminina dizia para ele se dirigir ao “consultório 4”. Ele se dirigiu. A sala da psicóloga era “minimalista”. Sim, escolhi uma palavra para suavizar a descrição da sala. Sofá do paciente e mesa da psicóloga estavam distantes, uns 3 ou 4 metros. Distanciamento prevalece apesar da fase mais preocupante da pandemia ter encerrado.

Conversa tem início. O rapaz vai direto ao ponto.

- Sinto prazer em matar pessoas no jogo “Guerra da Ucrânia”.

Ele se refere ao jogo que transfere a mente do jogador para um ciberespaço onde ele pode viver como se fosse um soldado (russo ou ucraniano) em plena invasão russa na Ucrânia.

- É só um jogo. - diz a psicóloga. - A gente comete barbáries num jogo, porque sabemos que nada daquilo existe.

- Não quando estou lá dentro, doutora. Parece real. Minha personalidade muda para se enquadrar dentro da lógica do jogo. Há algo de errado comigo. Aqui, no mundo real, eu tenho horror à violência. Lá dentro, eu sou um assassino, um criminoso de guerra.

Ele olha para a porta. Há um quadrado de vidro que dá para ver quem aparece do lado de fora da sala. Ele vê um rosto humano pintado, lembrando um soldado. Era um soldado inimigo olhando-o? Ele olhou a psicóloga e depois quando olhou a porta, o suposto soldado não estava mais por lá.

- Se a experiência está te horrorizando aqui fora, por que ainda entra?

A resposta era óbvia. Escapismo. Ele tinha uma vida de merda. Monótona. Sem graça. Era praticamente um misantropo. Não tinha amigos, nem namorada. O ciberespaço é o local em que os fracassados podem ser quem quiserem ser. Não podemos escolher como nascemos, como será nossa aparência, não escolhemos sequer nosso nome. Mas no ciberespaço, podemos escolher tudo, ele explicou.

- Então, você escolheu ser um criminoso de guerra?

- Se escolho o Mestre Bison, em Street Fighter, não quer dizer que eu seja uma má pessoa. Escolher o vilão do jogo é uma possibilidade legítima. Só não imaginavam que…

- Que…?

- Que deixaria de ser eu mesmo no ciberespaço. E mais do que isso: talvez a personalidade do criminoso de guerra esteja crescendo dentro de mim aqui fora.

- Isso é loucura!

Ele sabe que não é loucura.

- Comece se livrando desse jogo. Se está lhe fazendo mal, essa é a recomendação que posso lhe fazer. Quebre o jogo, o card, o aparelho. Jogue a droga Dosto fora. Fique longe disso.

A mão treme. Ele puxa uma faca de guerra e corre até a psicóloga. Puxa ela pelos cabelos e…

Era tudo imaginação. Tudo está na mesma.

- Vou tentar, doutora.

Em casa, a contragosto, pegou a marreta e quebrou o aparelho e o card. Jogou a droga Dosto na privada e deu descarga. Estava livre da Guerra da Ucrânia. Continuou tendo alucinações. Via soldados aliados e inimigos dentro de casa e onde quer que fosse. Mas pouco a pouco isso ia sumindo. Sua vida estava voltando ao normal.

O Rapaz começou a se relacionar com uma prostituta. Entendia que isso era o primeiro passo para se livrar da misantropia. Toda semana contratava ela. Por meses isso aconteceu. Até que uma relação de confiança teve início. Ele gostava de ser surpreendido. Chegar em casa e encontrá-la em sua cama lhe dava um prazer inefável. Até que um belo dia, foi surpreendido, porém não da maneira que queria.

Chegou em casa e viu a puta chorando e amarrada numa cadeira e um homem com uma arma em sua cabeça.

- Mas que diabos… - ele disse.

- Até que enfim chegou, líder! - disse o raptor.

- Líder, mas o que…

- Procuramos você por meses.

- Não dá para entender…

- Não lembra da Guerra? Precisamos que você volte, líder.

- Não sei do que você está falando, não sei quem é você. Deixe ela em paz!

- Porque esse não é meu corpo, então você não me reconhece. Esse também não é seu corpo, líder Zvierkov.

- Zvierkov?!

Era o nome dele no jogo Guerra da Ucrânia.

- Esse mundo aqui não é real. Nós entendíamos que você queria sair daquela vida. Essa vida é um escapismo. Você estava farto da guerra e veio para cá. Lá, no mundo real, você teve morte cerebral misteriosa. Entramos aqui para resgatá-lo. Se conseguirmos conectá-lo, seu cérebro voltará a funcionar no mundo real.

- Me deixem em paz! Aqui é o mundo real!

Puf puf puf. Três tiros. A puta foi executada.

“Zvierkov” fugiu assustado. O atirador poderia ter disparado pelas costas dele. Mas ele não mataria o líder.

- Ele está fugindo, encurralem ele na saída da rua.

- Como tem tanta certeza de que é ele?

- Examinamos os cenários salvos no jogo de Zvierkov e passamos meses comparando com os diversos cenários. Esse aqui tem 97% de semelhança, o mais próximo que conseguimos.

- Socorro! - grita o rapaz enquanto corre. Ele bate nas portas da vizinhança, em conspícuo desespero. Uma das portas abre. Sortudo. Era uma senhora viúva que morava sozinha. - Chame a polícia! Tem gente querendo me pegar.

Na rua:

- Ele não chegou à saída. Deve ter entrado em alguma das casas. Chame reforços. Vamos vasculhar uma por uma!

Na casa da viúva:

-Polícia!? Tem um rapaz dizendo que está sendo perseguido por um assassino! Venha imediatamente!

Ele olha para o fora e para cima e vê um míssel cortando os céus.

- Meu Deus, estão nos atacando! - ele grita! Que nada. Era alucinação dele, que voltou com tudo.

Não demorou para a porta da casa da Viúva ser arrombada. A pobre senhora se tornou mais uma vítima. “Zvierkov” é colocado para dormir com uma injeção. Os algozes o carregam para dentro do carro. Nesse momento a polícia chega. Os atiradores retiram armas de grosso calibre do porta-malas e destroçam a polícia facilmente. Era arma de guerra. O rapaz é levado até um “cativeiro”.

- Não sei que graça o senhor vê nesse mundo, Zvierkov.

- Ele foi totalmente absorvido pela personalidade do personagem do jogo. Teríamos o mesmo destino, mas ainda bem que conseguimos contornar isso. - disse um dos raptores.

Eles preparam a conexão. Aplicam a droga Dosto, conectam o USB. “Zvierkov” está preso na cadeira. - Não! - ele grita inutilmente. - Eu não quero ser um assassino! Chega!

- O senhor não é um assassino,é um patriota. Precisamos do senhor para vencermos a guerra. Não pode ficar nesse lugar enquanto somos atacados por mísseis antitanque.

A conexão tem início. O rapaz está voltando ao outro mundo. Está voltando a ser Zvierkov.

A conexão se completa.

- Bem-vindo, líder! Você ressuscitou!

Sob aplausos, Zvierkov levanta.

- Quanto tempo? O que aconteceu na minha ausência?

- 6 meses. Avançamos pouco. Precisamos de você.

- Ainda me sinto um pouco esquisito.

- Temos uns inimigos para você executar. Logo voltará a ser totalmente quem era.

FIM

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 09/07/2023
Código do texto: T7832852
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